sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano novo com bom senso

Nunca soube dizer ao certo os motivos, e mesmo a hipótese que transcrevo a seguir talvez não passe mesmo disso: uma hipótese. O fato é que, há anos atrás, sempre que o ano estava para terminar, eu era tomado por uma nostalgia de proporções nada modestas. Não se comparava à melancolia descrita nos termos de Freud, mas era algo que tornava difícil associar a virada do ano com o humor que normalmente se requer para festas, principalmente de réveillon: uma euforia que, da parte de muitos, sempre me pareceu forçada. (Como se as pessoas se sentissem obrigadas a estar, ou ao menos parecer, intensa e extremamente felizes, sob pena de não serem consideradas convivas à altura da ocasião). Algumas das razões desse estado talvez sirvam de exemplo do quanto certas superstições podem ser nocivas em nossa vida, quando destituídas de um mínimo de bom senso. Como se sabe, o dia 31 de dezembro sempre foi, e continua sendo, uma das datas em que, mais do que qualquer outra, as mentes incautas são bombardeadas pelas mais diversas receitas de como ter sorte no ano novo, desde os três pulinhos com o pé direito, passando pela roupa branca, dando a volta na folha de louro cuidadosamente colocada na carteira, prosseguindo com uma série de medidas que estão longe do fim quando se fala nas sete uvas e nas lentilhas. Quando digo mentes incautas, não deixo de incluir a mim mesmo, que, na infância e adolescência, se a um tempo pouco crédito dava a todos esses rituais, por outro lado, por eventuais erros em sua realização, temia ter um ano desastroso pela frente, unicamente em função de, por exemplo, ter errado de pé ao dar os três pulinhos. Por uma natural falta de vocação para o misticismo, sempre fazia algo de errado nessa série sem fim de mandingas, se é que se pode usar essa palavra. E, para uma mente não muito madura, no caso de se suceder algo ruim num dos trezentos e sessenta e cinco dias subsequentes – mesmo de proporções modestas, algo de ruim, em um número tão longo de dias, sempre acontece -, a culpa, na minha imaginação, era sempre toda minha. Daí a tristeza antecipada já nas noites de réveillon. Além disso, sempre tive a impressão de ver nessas comemorações, por parte das pessoas, uma espécie de desejo ingrato de se livrar o mais rápido possível do ano prestes a findar, como se se tratasse de um fardo, pesado como tudo que se carrega a contragosto, como se nada houvesse nele de boas lembranças e de ricas experiências acumuladas.
Muitos anos se passaram. Se com eles não vieram o bom senso ou a sabedoria, ao menos deixei de acreditar em muitas coisas, afastando-me principalmente dessa tosca compilação de ideias prontas que atende pelo nome de senso comum. O início dessa ruptura se deu por meio da verificação do que havia por trás de textos como “De como filosofar é aprender a morrer”, de Montaigne. Através dessas palavras, o filósofo tinha em mente não necessariamente a morte em si; trata-se de uma espécie de ritual de natureza oposta à daquela descrita acima e que prescreve que devemos, com toda a lucidez de que somos capazes, abrir mão das superstições e, com toda a humildade, selar a paz com a nossa condição de mortais. Não se trata de um gesto de rebeldia, mas antes de tudo uma reconciliação com nós mesmos e com o que temos de mais natural: a finitude. Para muitos, enxergar as coisas dessa maneira é origem de tristezas, o que, na verdade, não constitui senão outro erro: a felicidade está aqui e agora, e vivê-la ou encontrá-la depende mais de nós do que de qualquer outra coisa, de iniciativas, ousadia, método, oportunidades, planejamento e, é claro, de um pouco de sorte.

A partir desse ensaio do grande pensador francês, iniciei uma busca pelo conhecimento não apenas nos livros, mas na observação dos fatos mais corriqueiros da vida. A respeito do além, lembro de haver escrito, há anos atrás, não me lembro onde, que “o vazio que se sucede é o mesmo que antecede”. Dito de maneira mais elaborada, temos a célebre frase de Schopenhauer: “Podemos classificar a vida como um episódio que perturba inutilmente a bem-aventurada tranquilidade do nada”. Foram muitos anos de leituras, vivências, perguntas e respostas, essas sempre de caráter temporário. Se me afastei do pessimismo dessa última citação, não foi exatamente por receio do inevitável, mas por algo que acabei encontrando apenas depois de voltar ao início do caminho, ou seja, a Montaigne: “A vida já me concedeu a oportunidade de encontrar centenas de artesãos e lavradores mais sábios e mais felizes do que muitos reitores”. Eis uma frase que revela uma grande verdade: as grandes respostas, se acaso elas existem, estão é na vivência cotidiana mesmo das vidas tidas como as mais simples, como as nossas próprias, longe das ostentações, com ou sem riqueza, independentemente de crença no sobrenatural. Quando me refiro a essa experiência do dia a dia, tenho em mente uma entrega por inteiro a cada momento, a cada atividade, seja nosso trabalho, seja um momento de lazer ou o diálogo com um amigo. E, entre uma atividade e outra, não esquecer de contemplar, de vez em quando, o pôr do sol, a paisagem à nossa volta, e jamais deixar de apreciar, com especial fervor, as noites estreladas, seja inverno ou verão, e lembrar que, através dessas formas nebulosas, estaremos muitas vezes vislumbrando o que há milhares de anos já deixou de existir e cujo brilho, não obstante isso, continua a nos encantar. Digo isso mesmo ciente de que não existem receitas prontas. O que sei é que, vivendo dessa maneira, tornando cada momento um acontecimento especial, as dúvidas que mais nos instigam e nos tiram o sono acabam se tornando questões secundárias. Contudo, seja qual for a resposta a essas interrogações, uma coisa existe de imutável: o compromisso ético, ou moral, com nossos semelhantes.
Quanto a mim mesmo, posso dizer que minhas averiguações estão longe de terminar, e é esse o meu maior desejo para o ano que se aproxima: poder continuar trabalhando, procurando, pesquisando, vivendo, escrevendo. (E se algo der errado, não será por ter pulado seis em vez de sete ondas no mar ou por não ter lembrado de usar branco na passagem do ano). Para o pouco que conseguir encontrar, sei de antemão que será sempre insuficiente e não mais que provisório. Para a maior parte das questões, as mais desafiadoras, não terei jamais possibilidade de dizer palavra alguma, mesmo que eu não seja completamente agnóstico. E se um dia me perguntarem a respeito de causas primeiras, da existência ou não disso que conhecemos como alma, do futuro ou do além, terei apenas uma réplica. Trata-se, talvez, na história da filosofia, da mais famosa das respostas: “Eu nada sei”. O que me torna apenas sincero, e não sábio.
Vincent Van Gogh: Noite estrelada, 1889

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Natal com outro espírito

Para quem trabalha em um jornal e ao mesmo tempo se permite ter crenças que se caracterizam pelo aspecto pouco comum, sem espaço para grandes esperanças, em nenhuma outra época do ano o espaço em branco provoca sentimentos tão contraditórios quanto no Natal. Trata-se de um tempo em que, ao menos para mim, se evidencia um significativo contraste entre o pensamento real e as ideias que o trabalho exige que expressemos. Isso porque o bom senso editorial prescreve que, em relação à data máxima do calendário cristão, o conteúdo dos textos esteja de acordo com uma série de elementos típicos desse período e que fazem parte da própria edição de Natal, como os anúncios, o tom das demais matérias, além de aspectos exteriores não menos importantes, como a elaborada decoração da cidade, em que se destacam os papais noéis de todos os tamanhos, pinheiros, velas, bolinhas, o trenó, as tradicionais renas, além de uma iluminação que realmente pode ser definida como possuidora de uma certa magia, mas cuja beleza por si só não interfere em nosso modo de pensar. E, por melhor que seja para o comércio, não faz muita diferença o fato de virem pessoas de vários municípios vizinhos especialmente para ver de perto essa ornamentação preparada por meses e elogiada por praticamente todos os cidadãos.
“O Natal só tem graça quando se é criança”, ouvi há poucos dias não de um, mas de dois colegas de trabalho, o que comprova que não estou só no descompasso. Sinto-me até em certa vantagem nesse sentido: não creio que essa data seja completamente destituída de encantos. De qualquer maneira, creio que eles estão certos: nada se compara aos natais da infância. O que ocorre é que, enquanto crescemos e desenvolvemos nosso pensamento, os significados dessa data tomam rumos que muitas vezes guardam pouco parentesco com o que eram de início. O Natal não perde o valor, mas passamos a priorizar aspectos que na infância sequer percebíamos, ou que ficavam em segundo plano. Como se não bastasse essa mudança trazida pelo abrir dos olhos, começa-se a perceber uma série de contradições que, se antes nos pareciam naturais, com o transcorrer do tempo nos parecem no mínimo contrastantes, para não dizer outra coisa.
Causam-me espanto sobretudo aquelas pessoas que, bem o sabemos, nunca simpatizaram muito conosco e que, de repente, como se tivessem sido atingidas por um raio de luz dourada (ou vermelha e verde), se desdobram em amabilidades e reverências diante de nossos olhos. As causas de perplexidade não param por aí. E isso me leva a imaginar coisas; uma pequena esperança antes inexistente aos poucos parece tomar forma, e de sua presença só nos apercebemos quando ela já se apoderou de nós. “A humanidade ainda tem chances”, refletimos, e nos alegramos com isso. E a imaginação, sempre célere, nunca decepciona quando se trata de ir além de si mesma: fico pensando, por exemplo, que há muitos milhares de anos, numa época em que os humanos ainda não haviam aprendido a acender o fogo, os grupos, em suas vidas caracterizadas pelo nomadismo, carregavam sempre uma tocha acesa - para afugentar feras, assar carne ou mesmo aquecer-se -, colhida em alguma árvore atingida por um raio, até o dia em que aprenderam a técnica para dispor desse elemento. E me pergunto se tal hábito, apesar de tão remoto, poderia ter algo a nos dizer. De que maneira poderíamos nós, nos dias de hoje, aprender com os nossos ancestrais, de modo que nos tornássemos capazes de carregar sempre conosco uma chama e não deixá-la apagar-se em momento algum? Seria possível alcançar essa façanha e trazer sempre vivo em nós os sentimentos de fraternidade que presenciamos apenas no Natal? Como figura de linguagem, a comparação pode até possuir algum sentido, mas bem sabemos que é inútil: o que se vivencia todos os dias acaba se revelando enfadonho. Quando chegar o dia 26 de dezembro, as centelhas da maior parte das pessoas já terão se extinguido. Todavia, sei do grande risco das generalizações apressadas e, por essa razão, peço o devido perdão às exceções, que realmente possuem tais sentimentos o ano inteiro – e que, digo com certeza, existem, e constituem um número significativo. É em grande parte por essas belas almas que salvam não apenas o Natal, mas todo o restante do ano, que torno a dizer: nem tudo está perdido para a nossa raça.
Porém, mesmo para os descrentes, existe uma maneira alternativa de vivenciar o Natal. Creio inclusive que podemos tentar de muitas maneiras, mas limito-me a um exemplo, recorrendo à história da música. Entre o Natal e a Epifania de 1734, numa igreja de Leipzig, Alemanha, Johann Sebastian Bach apresentava ao público o seu Oratório de Natal, obra para solistas, coro e orquestra que relata a natividade em forma de árias e trechos corais e orquestrais. Bach foi um dos tantos artistas que, por estarem muito adiante de seu tempo, confundiam os seus contemporâneos. Um dos principais alicerces do que veio a ser chamado música erudita e possuidora de uma profundidade talvez jamais superada, a música de Bach é hoje reconhecida como um universo no qual cada estudioso pode escolher de que forma irá perfazer seu próprio caminho. Alguns dos trechos do oratório fazem parte do repertório de peças que possibilitam aos humanos ouvir a música do cosmos. Exemplo particularmente eloquente é a ária Schlaffe, mein Liebster, geniesse der Ruh. De início, a orquestra introduz um motivo de um lirismo puríssimo; terminada essa exposição, enquanto a orquestra principia a repetição do tema, ouve-se emanar do conjunto uma voz de contralto, em seu registro grave e profundo, enunciando em longas notas a primeira frase do texto: “Dorme, meu querido, aproveita o repouso”, palavras dirigidas ao menino Jesus. Trata-se de um motivo em princípio sem maiores ornamentos, o que não impede que sua beleza tão rara encante a todos, amantes da música ou não. E é nesse momento, através de uma voz etérea, que se tem a impressão de que todas as reservas com que encaramos o Natal desabam, vitimadas por aquilo que a nossos olhos parece mais precioso: sua racionalidade. A partir dessa experiência, somos forçados a crer que existe, sim, algo de transcendente na humanidade, ou ao menos nas formas como ela se expressa, e que, por assim dizer, desafiam a nossa condição de simples mortais. Cabe registrar que não apenas o universo da música, mas também da literatura, da filosofia etc, estão repletos de exemplos que poderiam levar ao mesmo caminho, isto é, a momentos em que é dado aos mortais sentir o hálito da divindade.
Sim, eu sei, não se trata do espírito natalino como normalmente é conhecido. Porém, em relação ao outro, esse encantamento traz uma vantagem: ele não deixará de existir no dia 26 e pode ser vivenciado em qualquer mês, não necessariamente apenas em dezembro. E me pergunto: por não ser datado, não seria o espírito da música, sob certo aspecto, tão precioso quanto o espírito de Natal, ou o que quer que isso seja? Como início de resposta, posso sugerir que, mesmo não sendo uma tradição, Natal com o espírito da música também é Natal. E sem decepções no dia seguinte.

A adoração dos Reis Magos: iluminura de Livro de Horas de meados do século XV, Biblioteca Pública de Évora
Partitura autografada do Oratório de Natal



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sobre o tempo, esse fugitivo, ou Da beleza, essa também esquiva

De todos os lugares-comuns, esse talvez seja o mais repetido, e creio que já era assim em tempos anteriores a Shakespeare. Não planejava recorrer a ele, mas não fico mais surpreso por me ver outra vez às voltas com temas não planejados, em momentos também inesperados. Creio mesmo que não somos nós que decidimos, a saber, a respeito dos assuntos sobre os quais discorremos. Por serem anteriores a nós, pertencentes a uma tradição milenar, acredito que sejam eles que nos apontam o dedo, determinando sua escolha. A nós não resta senão aquiescer. Ao menos assim tem sido desde que resolvi parar de resistir a esse imperativo que determina a hora e o assunto a registrar, e, se hoje mais uma vez me coloco a postos para grafar o que não sou eu que decido, é no mínimo com certo enfado contrafeito que obedeço, em protesto contra a falta de tema melhor: a fugacidade do tempo – bem sabemos que a brevidade não é do tempo, mas uma coisa de cada vez. Com efeito, tenho a impressão de que ainda há poucos dias, bem poucos, planejava escrever um texto breve em homenagem a três grandes compositores cujos aniversários de morte se avizinhavam: Chopin (17 de outubro), Schubert (19 de novembro) e Mozart (5 de dezembro). A primeira entre essas datas simplesmente passou sem que eu percebesse; entre a segunda e a última, há não muitos dias, via-me já envolvido com os fatos da vida e da morte dessas três personalidades. Três vidas cujo aspecto em comum, ou seja, sua breve duração, me levava a desejar fazer justiça a esses mestres que souberam usar a seu favor todo o pouco tempo que tiveram. E queria fazer-lhes justiça também em razão de outro ponto de contato: o desamparo em que viveram seus últimos dias. E o que era para ser antes de tudo breve tomou proporções que inviabilizaram sua publicação neste espaço. (Também isso não é a primeira vez que acontece: quando mais desejamos fazer justiça à memória de alguém, vivo ou morto, a pretensão ao esmero, essa presunção, acaba nos forçando a relegar o tributo ao esquecimento. Consola-me pensar que a certos personagens da história, se vivos estivessem, seria indiferente ver seus nomes sob a pátina atroz do esquecimento ou saber que ainda há quem se dedique às suas obras).
Isso posto, retorno a esse aspecto fugidio que, não obstante a maneira como organizamos nossa rotina, apodera-se de todo o tempo que nos é dado e o dilacera em fragmentos que, se observados, deixam entrever o que ninguém ignora: que ele, o tempo, é inexistente, e o que se mostra a nós é um fluir ininterrupto, dividido em dias e noites, em diferentes estações que, à força de observarmos as variações e as constantes sucessões  entre o claro e o escuro, os períodos frios e quentes, parecem apontar, no modo contínuo e impassível como se sucedem, que tudo permanece imutável, exceto nós mesmos. Não seria errado concluir que é sob o signo dessa ordem própria ao que pertence à esfera da natureza e da duração, em seu esvair-se, em seu hibernar e reflorescer, que se inscreve aquilo a que se convencionou chamar nossa existência; e o modo como percebemos essa passagem aponta inelutavelmente, de modo inequívoco, para a nossa própria brevidade. E se acaso nos detivermos um pouco mais no exame desse processo, não demoraremos a perceber que esse intervalo que constitui nossa vida, visto sob um ponto de vista mais amplo - o pouco que nos é permitido ver, ou intuir, além de nós mesmos -, não é mais que uma impressão nossa. Breve e fugidia, como sempre são as impressões. 
Dito isso, interrogo: que proveito trará ao mundo debruçar-nos sobre esse ou aquele assunto; que percebamos ou não que passageiros somos nós; que, por pensarmos, existimos, até prova em contrário; que esse pensamento, registrado ou não, em nada irá alterar a ordem das coisas; que, por mais longos que sejam nossos dias, nossa existência sempre terá sido ínfima? Não obstante isso tudo, bem sabemos que, mesmo que ao mundo tanto faz como tanto fez o termos existido ou não, sempre faremos tudo ao nosso alcance por nós mesmos e pelo bem disso a que se chama humanidade, por gigantesca que se mostre nossa impotência. E que, feitas as contas e apesar das circunstâncias que às vezes nos são desfavoráveis, a vida, breve ou não, nos é tudo – e, ao mesmo tempo, nada...
Um filósofo escreveu certa vez que o inferno são os outros (Sartre: Entre quatro paredes). Por mais que eu tenha me esforçado, nunca concordei com essa máxima, e o mais provável mesmo é que não a tenha compreendido. Tendo em mente o título de uma obra recente de Todorov – A beleza salvará o mundo -, ocorreu-me tirar o verbo do futuro e situá-lo no aqui e agora, ao menos no modo como nos é dado vivenciar essa realidade. Por mais que, segundo Hume, “está na mente de quem a contempla”, aquilo que compreendemos por beleza, ou a fruição desse algo em que se reconhece antes de tudo sua inutilidade, possui a meu ver o dom de responder a cada uma das interrogações acima e, se não justificar, ao menos consolar-nos por cada deficiência não do mundo em que vivemos, mas do mundo que criamos. A beleza salva o mundo, sim, e os outros, em vez de inferno, são o veículo dessa salvação, talvez a única que exista. Ao menos foi isso que encontrei nos versos de Adam Zagajewski, que transcrevo a seguir: “Só na beleza criada/ pelos outros existe consolo,/ na música dos outros e nos poemas dos outros./ Os outros não são o inferno,/ se os virmos bem cedo, com/ suas frontes puras, lavadas pelos sonhos./ É por isso que me pergunto que/ palavra usar, ‘ele’, ou ‘você’. Todo ‘ele’/ é uma traição de um certo ‘você’ mas/ em troca o poema de outra pessoa/ oferece a fidelidade de um diálogo sensato”.
Sei que fugi ao assunto inicialmente proposto, e, como justificativa, não posso sequer dizer que foi sem querer. Porém, caso não seguisse a via que se apresentava, não estaria sendo sincero. E, entre as muitas coisas que já não me espantam mais, estão também os caminhos tantas vezes inexplicados que com frequência tomam o rumo, ou o lugar, de nosso pensamento. Ocorreu-me ainda agora: será que fugi mesmo ao assunto ou o tema do princípio não passava de um pretexto para atingir um objetivo antes insuspeitado? Sinceramente, não sei. De qualquer forma, é tarde para pensar numa resposta.

Salvador Dali: Soft watch at moment of first explosion, 1954

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Emil Cioran: Breviário de Decomposição (1)

Nascido na Romênia em 1911, Emil Cioran, depois de graduar-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste, mudou-se para a França com o objetivo de especializar-se no pensamento de Nietzsche. Jamais concluiu sua tese. Em contrapartida, sua dedicação à escrita e reescrita de sua obra fez com que a crítica o considerasse um dos “maiores prosadores da língua francesa desde Valéry”. A palavra que talvez o defina com maior precisão seja desencanto. Porém, diante da maneira clara e límpida como desenvolve e expõe seu pensamento, nenhuma exatidão significa muito. Comparado a Kierkegaard, Wittgenstein e ao próprio Nietzsche, Cioran muito provavelmente desdenharia dessa tentativa de defini-lo e de enquadrar sua obra dentro de parâmetros estabelecidos. “Um livro que, após haver demolido tudo, não se destrói a si mesmo, exasperou-nos em vão”, diz, em Silogismos da amargura. Seu título mais conhecido continua sendo Breviário de decomposição, publicado na França em 1949. Após ter sido reescrita quatro vezes, a obra recebeu em 1951 o prêmio Rivarol. Cioran morreu em Paris, em 1995. De sua autoria, além dos dois títulos mencionados, a Rocco publicou Exercícios de admiração e História e Utopia. Os trechos a seguir são do Breviário (Rio de Janeiro: Rocco, 2011).
“Quem não conhece o tédio encontra-se ainda na infância do mundo, quando as idades esperavam para nascer; permanece fechado para este tempo fatigado que se sobrevive, que ri de suas dimensões e sucumbe no limiar de seu próprio... porvir, arrastando com ele a matéria, subitamente elevada a um lirismo de negação. O tédio é o eco em nós do tempo que se dilacera..., a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que sustenta – ou inventa – a vida...”.
“No início, pensamos para evadir-nos das coisas; depois, quando fomos longe demais, para perder-nos no remorso de nossa evasão...”.
“Na aspiração nostálgica não se deseja algo palpável, mas uma espécie de calor abstrato, heterogêneo ao tempo e próximo de um pressentimento paradisíaco. Tudo o que não aceita a existência como tal, avizinha-se da teologia. A nostalgia não é mais do que uma teologia sentimental, onde o Absoluto está construído com os elementos do desejo, onde Deus é o Indeterminado elaborado pela languidez”.
“Ninguém pode corrigir a injustiça de Deus e dos homens: todo ato é apenas um caso especial, aparentemente organizado, do caos original. Somos arrastados por um turbilhão que remonta à aurora dos tempos; e se esse turbilhão tomou o aspecto da ordem, é apenas para nos arrastar melhor...”.
“A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em nossa excelência sobre o resto da matéria”.
“Fui, sou ou serei, é questão de gramática e não de existência. O destino – enquanto carnaval temporal – presta-se a ser conjugado, mas despojado de suas máscaras, mostra-se tão imóvel e tão desnudo como um epitáfio”.
“A vida tem dogmas mais imutáveis que a teologia, pois cada existência está ancorada em infalibilidades que fazem empalidecer as elucubrações da demência ou da fé”.
“O homem é o ser dogmático por excelência; e seus dogmas são tanto mais profundos quando não os formula, quando os ignora e os segue”.
Cada um é para si mesmo um dogma supremo; nenhuma teologia protege seu deus como nós protegemos nosso eu; e este eu, se o assediamos com dúvidas e o colocamos em questão, é apenas por uma falsa elegância de nosso orgulho: a causa está ganha de antemão”.
Fotografia: Emil Cioran, por John Foley

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Da impossibilidade de contar uma história

Partindo de fatos que me foram relatados, quis por minha vez dar testemunho de meus antepassados. Consultei lápides e epitáfios, certidões e registros, e ouvi relatos que me levaram a uma quantidade considerável de nomes e datas. Porém, em dado momento, a falta de um nome quebrou a continuidade do que mais tarde poderia vir a ser uma genealogia. Por mais que se tratasse de uma simples denominação, era impossível fazer de conta que esse elo não existia, pois não se tratava de simples palavras. Porque, quando transpostas à realidade, não se pode fingir que aos vocábulos não correspondem respiração, plasma, sangue, terra. Em todo caso, mesmo marcando o nome, a partícula incógnita de um elo maior, através de um ponto de interrogação, pus-me a registrar as diversas possibilidades de sequência de uma ancestralidade. Em determinado momento, como era de se esperar, o encadeamento levou a outro continente, mais precisamente ao solo germânico. Uma travessia que, desde o início, sabia ser inevitável.
A partir desse momento, minhas raízes, objeto inicial de minha pesquisa, passaram a abranger outra geografia, uma outra pátria, e se tornaram também as razões que levaram meus antepassados a deixar sua terra natal e partir em viagem rumo a uma aventura sem precedentes na história de seu povo. Depois de deparar-me com um período de franca industrialização, houve tratados iluministas, um contrato social, a desigualdade entre os homens, antecedido de outro sobre a servidão voluntária, numa cadeia que apenas aumentava à medida que recuava nos anos. E minha investigação, de repente, se tornou a história não apenas dos fatos, mas do pensamento e dos homens que escreveram tais tratados. Não demorou para que eu percebesse que, se continuasse a busca, iria chegar ao ponto em que quase sempre se chega quando se deseja descobrir algo com origem no passado: que a multiplicação de dados, de um instante a outro, torna inviável a demarcação exata que delimita o ponto onde termina uma história e o momento em que, sem saber, já estamos em outra, não prevista, mas cuja existência não podemos mais ignorar.
Percebe-se a partir de então, nessa sucessão de descobertas, a profundeza do tempo, através do qual as personalidades, por serem tantas, quase não diferem do anonimato, e os fatos são tão numerosos que somos forçados, por uma questão de ordem prática, a restringir temas e territórios, se não no que concerne à trajetória, ao menos no que diz respeito à identidade. Sobretudo, percebemos também que o objetivo de nossa busca tornou-se o oposto do que tínhamos em mente quando se começou a procura por respostas, e que o nome desconhecido há muito deixou de ter importância, pois a razão maior de nossa investigação deixou de ser o particular e se tornou o universal. Sim, sempre ele, mesmo que já tenha se tornado lugar-comum. E o território que antes tínhamos a intenção de delimitar tornou-se de uma hora para outra mais vasto que nunca – mesmo que se tenha caminhado em um círculo, não se deixou de percorrer um trajeto. Todavia, por mais amplo e por maior que seja a pretensão, é nesse solo que nos reconhecemos em nosso elemento. Trata-se, como se vê, de uma história impossível de ser contada. E nem poderia ser diferente: a julgar por Emil Cioran, “a fonte de nossos atos reside em uma propensão inconsciente a nos considerar o centro, a razão e o resultado do tempo. Nossos reflexos e nosso orgulho transformam em planeta a parcela de carne e consciência que somos. Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. Mas viver é estar cego em relação às suas próprias dimensões...”.
E é com a consciência das dimensões ínfimas que cabem a cada um de nós, posicionando-nos num limiar que possibilita não mais que uma precária visão do conjunto – a única possível -, podemos examinar apenas alguns de seus aspectos, por meio de fragmentos escolhidos, e que chegam a nós como restos de uma aventura entremeada de grandes momentos, e, embora desse passado não tenhamos mais a grandeza heroica, em seu lugar recebemos uma herança mais preciosa que qualquer título. Assim, revestidos de nossa pequenez, estaremos testemunhando sobre o que temos em comum: o legado de nossos antepassados. E, através de seu usufruto, minoramos nossa insignificância, conscientes de que ao menos nisso todas as diferenças desaparecem, caminhos antes opostos passam a convergir e fazem sua obra maior: tornar-nos parceiros de uma mesma jornada.
Ilustração:
Caspar David Friedrich

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Relendo Todorov: A literatura em perigo

Muitas vezes, dependendo da intensidade com que as leituras se sucedem, um exame mesmo que rápido nas estantes pode trazer belas surpresas. A voracidade com que não raro nos atiramos ao novo, lendo de forma quase indisciplinada ou mesmo descuidada, nos faz lembrar que o conhecimento se dá mesmo é no vagar desigual da releitura. Nesse sentido, livros lidos nos primeiros meses do ano revelam passagens sublinhadas (a lápis) que, se não fosse o acaso nos fazer retomar o volume, estariam na antevéspera ingrata do esquecimento. Destaco hoje a redescoberta de uma obra vibrante de Tzvetan Todorov: A literatura em perigo (Rio de Janeiro: DIFEL, 2010).
“Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver (...). Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano”.
“Se a poesia não deve se submeter à procura da verdade e do bem, é porque ela é em si mensageira de uma verdade e de um bem superiores àqueles que podemos encontrar fora dela”.
“(...) não somente a arte conduz ao conhecimento do mundo, mas (...) ao mesmo tempo revela a existência dessa verdade cuja natureza é diversa”.
“A arte interpreta o mundo e dá forma ao informe, de modo que, ao sermos educados pela arte, descobrimos facetas ignoradas dos objetos e dos seres que nos cercam”.
“A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto espaço de tempo”.
“A leitura de romances, segundo [Richard Rorty], tem menos a ver com a leitura de obras científicas, filosóficas ou políticas do que com outro tipo bem distinto de experiência: a do encontro com outros indivíduos. Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista de seu autor. Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo nosso universo. (...) Essa aprendizagem não muda o conteúdo do nosso espírito, mas sim o próprio espírito de quem recebe esse conteúdo (...). O horizonte último dessa experiência não é a verdade, mas o amor, forma extrema da ligação humana”.
Michael Ancher: Sick girl, 1882

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A verdureira, ou Da necessidade de ganhar a vida

Ela costumava vir nos finais de tarde, quando as cores do dia já anunciavam uns tons alaranjados ou róseos nos céus ora claros, ora cinzentos de dias já remotos. Embora passasse sempre por volta do mesmo horário, isso não quer dizer que o seu dia de trabalho não começasse cedo, nas primeiras horas da manhã. Eu, que na época vivia brincando na rua, tinha como obrigação diária avisar minha mãe que a verdureira vinha chegando à frente de nossa casa. Naquele tempo, eu ainda falava alemão, idioma em que pronunciei minhas primeiras palavras e cujos rudimentos dialetais usava para designar brinquedos, pessoas e os animais de que vivia cercado. Referia-me a ela simplesmente como Die Frau, “a senhora”, assim mesmo, não como se fosse a única que existisse, mas a única que importava naquele contexto específico dos afazeres cotidianos de minha mãe e dos quais eu tomava parte simplesmente chamando-a no momento em que a referida personagem chegava. Como vim a concluir mais tarde, o modo no singular como a designava nada tinha de arbitrário. Mas deixemos isso para depois. Preocupado que estava em decorar suas rugas, suas feições e, mais tarde, nos primórdios de meu interesse por psicologia, em descobrir os sentimentos que sua fisionomia e tons de voz deixavam por vezes adivinhar, dedicava toda a minha atenção a esses detalhes, não chegando jamais a descobrir ao certo em que consistia o carrinho que ela empurrava. Visto que era com as mãos que o impulsionava, não chegaria a constituir um erro chamar aquela estranha estrutura em madeira coberta de carrinho de mão, embora nada tivesse em comum com os tradicionais veículos chamados por esse nome. Na verdade, ao menos levando em consideração o seu conteúdo, o instrumento de trabalho de Die Frau era muito mais pesado, e causava admiração a leveza com que ela o fazia deslizar rua acima e, da mesma forma, o cuidado que tinha para não o deixar despencar ladeira abaixo, com suas frutas, verduras e hortaliças.

“Ela precisa ganhar a vida”, disse-me meu irmão quando observei, certa vez, a sua assiduidade em dias tanto de sol implacável como da mais forte chuva, nos quais Die Frau se protegia, tanto nuns como nos outros, com um simples lenço por sobre os cabelos. Lembro que a expressão me causou certa perplexidade: não ganhamos a vida de uma vez só, no instante em que nascemos? Interrogado a esse respeito, meu irmão se perdeu em explicações que mais me trouxeram dúvidas e inquietações que esclarecimentos. Se precisávamos garantir a vida um dia depois do outro, e assim por toda a existência até o momento em que deixaríamos de viver, o que poderia fazer eu, um menino de cinco, seis anos? E assim me detinha em pensamentos e indagações sobre valores cujos nomes só vim a saber muito mais tarde, como dever, constância, humildade, coragem, resistência, perseverança, fé – lições que jamais aprenderemos tão corretamente como deveríamos –, além de coisas que mesmo hoje, tendo se passado décadas, embora eu saiba de que são feitas e como se faz para vivê-las e conservá-las, ainda não sei nomear, mas que fazem parte do meu dia-a-dia. Pois não é constituído apenas de virtudes, nobres valores e de imperfeições o mundo dos adultos, mas sim de elementos que pertencem mais ao universo das intuições e dos sentimentos de plenitude, mistérios que revestem o absurdo de significado e realizam o milagre cotidiano de atribuir sentido ao que, em última instância, é puramente aleatório ou, com maior exatidão, simplesmente caótico.
Mas eis que me deixo levar por divagações que conduzem sempre a lugar nenhum e perco de vista a minha personagem. Sempre me chamava a atenção, ao ver a verdureira, o rosto coberto de suor no verão ou a maneira desordenada como se protegia do frio nos dias mais rigorosos de inverno. A nós, que viéramos do interior não fazia muito, pouco habituados a presenciar os reveses da pobreza, aquelas roupas nada eram além de trapos, tal como o lenço improvisado sobre a cabeça. Os anos foram passando, e, de menino conhecedor de apenas alguns rudimentos de alemão, passei à condição de pequeno cidadão alfabetizado, esquecendo o dialeto germânico em detrimento da língua pátria. Mudamo-nos para o outro lado da cidade, e a verdureira, passando quase sempre à mesma hora, levava-me a fantasiar acerca de misteriosos e secretos dons de onipresença, revelados apenas a iniciados. É preciso antes dizer que, como acontece às vezes, algumas pessoas a que nos habituamos a ver com frequência, pelas mais diversas razões, acabam se tornando de certa forma especiais para nós, por adquirirem o simbolismo de algo intangível, característico, e que jamais conseguiremos decifrar por completo. Talvez por estarem por perto durante tempos tanto bons quanto difíceis, acabam se tornando testemunhas de parte nossa história, e nós da trajetória desses seres. Quanto a Die Frau, nunca lhe dirigi a palavra, nunca soube onde morava nem como se chamava, mas aquela senhora passou a ser para mim, para todo o sempre, e sem exagero, muito mais que essas pessoas que costumam nos apontar rotineiramente como modelos a serem seguidos. O que a revestia de tanto significado, ao menos a meu ver, tinha origem talvez no pouco que sabíamos a seu respeito, características, qualidades e histórias que, afeito que já era à leitura, encontrava na ficção e, desejoso de vislumbrar na vida cotidiana um pouco da realidade entressonhada nas páginas, atribuía alguns dos enredos que lia à verdureira. Creio que, se soubesse mais sobre sua vida, com certeza ela jamais teria adquirido nenhum dos sentidos que vejo nela até hoje, não apenas em retrospecto. A verdade é que alguns personagens dos nossos primeiros anos acabam se tornando, se não ícones, ao menos a personificação dos aspectos mais complexos, algumas vezes contraditórios, outras simplesmente banais e por vezes causadores mesmo de perplexidade, esses elementos que, reunidos, compõem o todo de uma vida humana.
Pois bem: certo dia, quando eu já era um adolescente, ocupado com os enigmas próprios desse período, aconteceu de uma notícia vir obscurecer os assuntos na vizinhança: o fato era que a filha da verdureira, filha que para ela significava mais que a sua própria vida, havia morrido. Todos pensaram, como acontece nessas ocasiões, que por dias, talvez semanas, deixaríamos de ver a mulher, alterando dessa forma um dos elementos de que se compunha nossa rotina de então. Foi por essa ocasião que se revelou para mim o real imperativo daquela expressão que meu irmão usara, mostrando-me um lado que me pareceu cruel: no dia seguinte ao enterro da filha, de maneira completamente inesperada, vi ao longe, avançando na rua, no mesmo horário de sempre, a sofrida verdureira. Naquele dia, contrariando completamente o seu costume de deixar que o viço de suas frutas e verduras falasse por si mesmo, ela se pôs a fazer algo que nunca antes fizera: elogiar o verdor das alfaces, a cor das cenouras, a aparência das maçãs. E o fazia com lágrimas nos olhos, correndo volumosas pela face, mostrando que ela, mesmo não vestindo luto, estava completamente ausente em pensamento. Um detalhe: as lágrimas não se limitariam àquele único dia, mas durariam meses. Sim, meu irmão estava certo: era necessário ganhar a vida. Um dia depois do outro. Nem que, para isso, se precisasse expor aos olhos de todos o que temos de mais íntimo e particular: as lágrimas da alma.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A escrita e o silêncio, esse elo perdido

Talvez por conterem em seu significado a origem de diversos outros temas, alguns assuntos parecem possuir, a meu ver, um caráter de quase urgência. Por essa razão, seja qual for o momento em que forem abordados, virão sempre acompanhados de uma sensação de atraso, como se, por mais que nos apressemos em falar a seu respeito, será sempre tarde demais. Contudo, exatamente por essa premência, essa importância, qualquer alusão que se lhes faça, por banal que seja, é possível que não seja destituída totalmente de valor, mesmo que feita um tanto às pressas, como é o caso aqui. Mas é com esperança de acrescentar nem que seja um grão de areia que principio, com cautela e receoso de não encontrar as palavras exatas. Bem sei que esta não será a única vez que toco nesses assuntos. Querendo ou não, sei que os retomarei ainda muitas vezes: a escrita e o silêncio.
Sei que talvez pareça estranho, até absurdo; mesmo assim, confesso que durante muito tempo escrever era coisa me enchia de assombro. Isso por uma razão que talvez nem seja difícil de compreender: durante muitos anos, por sugestão de professores, além de outros motivos, os únicos livros cuja leitura me parecia valer a pena eram os clássicos; o tempo já havia comprovado grandemente seu mérito. Sendo assim, os autores que lia, ou ao menos a maior parte deles, no momento em que tomava contato com seus escritos, estavam mortos há muito tempo; em alguns casos, há séculos. Por essa equação simples, pode-se compreender a circunstância um tanto grave que, em meu pensamento, cercava esse universo misterioso da escrita. E era um mistério cercado de rituais, como esses que deixamos o mais das vezes para os que já se foram. Talvez compreenda-se, portanto, que em muitos momentos, mesmo em relação aos textos mais simples, era como se eu estivesse redigindo meu próprio epitáfio. Isso, claro, é um certo exagero. Mesmo assim, não posso negar que escrever sempre foi para mim uma atividade que aparentemente colocava em comunhão os dois mundos distintos que, em minha mente, existiam: o dos vivos e o dos mortos.
Pelo prolongamento involuntário de certos sentimentos e de algumas outras características minhas ao longo da vida, não sei se digo isso da criança que fui ou do adulto que sou hoje. Pelas dúvidas, e para não incorrer em erros, digamos que isso se refira a nós dois. E percebo dessa forma que não é apenas a fronteira referida acima que desaparece diante do ato de escrever. Talvez essa seja uma definição razoável da escrita: buscar, através das palavras, obscurecer os limites conhecidos, tais como o eu do autor e o do leitor, passado e presente, realidade e ficção, e fazer deles a fusão de novas possibilidades em termos de realidade concreta. Bem se sabe que uma das definições do escrever é, por eventuais descontentamentos com a realidade imediata, colocar-se a criar outra, através de outro elemento, diferente dos quatro conhecidos: o vocabulário.
Digam o que disserem, as palavras revelam-se tudo de que dispomos para restaurar a ordem em um mundo desorientado e para pacificar os contrários. Gostaria de ter alguma certeza, ao menos uma que fosse, mas não obtive essa graça. Em todo caso, posso dizer que creio nas palavras. Não se trata de fé, pois esta exige convicção absoluta em relação ao que não se sabe. Pois bem: creio firmemente no dom transformador das palavras, mas como em tudo, porém, existem dois lados, não são poucos os efeitos nocivos que se têm obtido através do uso inadequado da linguagem: a luz que alumia também pode ser usada para assustar, confundir, mostrar falsos caminhos, isso sem que as pessoas, enquanto vivem, se apercebam do engano. Entristeço-me ao ouvir os discursos enganadores dos muitos que possuem o nobre ofício de guiar. Seria de esperar que ao menos quem tem a missão de conduzir soubesse aonde vai, mas não parece ser o caso.
Como afirmei acima, eu creio no dom de transformação das palavras, na possibilidade de redenção das criaturas humanas através da literatura, essa arte brotada do âmago do silêncio, do cerne de uma existência. Se a linguagem não é capaz disso, nada mais o será. Contudo, sei que talvez pareça incoerência, mas acredito que isso apenas se dará no momento em que as pessoas se voltarem novamente para o silêncio, esse elo quase perdido – é apenas na ausência absoluta de sons que a literatura, assim como a escrita, pode renascer e reinar. Todavia, pelo que observo, nunca estivemos tão distantes desse momento. Nunca se lamentará nem se dirá o suficiente o quanto é grande a perda dos que não sabem suportar o silêncio - o seu próprio e particular silêncio. E a quietude é algo que não se precisa apenas buscar, mas resistir e desbravar, como a terra. E preparar. Creio que nada existe de tão semelhante à terra quanto as palavras. Contudo, é necessário observar ainda que fala e escrita são dois polos opostos a lutarem pela primazia em nossa vida. É uma questão de escolha, mas também de destino e tudo que ele traz de irrevogável, e também de inaudito.
Lembro de uma frase muito repetida de Franz Kafka: “Existe muita esperança, mas não para nós”. Se isso é verdade, por que então se escreve? Não sou porta-voz, mas creio que posso usar a primeira pessoa do plural para a resposta e falar em nome de vivos e mortos, presentes ou ausentes: escrevemos simplesmente pelo fato de não termos escolha. Escreve-se porque estamos vivos, porque nos sabemos mortais, e as frases que rabiscamos constituem expressões plenas de vida, e não de epitáfios ou de lápides, dos quais emulamos apenas o silêncio. Há que cuidar para não abusar desse vocábulo; receio que, à força de repeti-lo, ele perca não a aura, mas a sacralidade de que ele, e só ele, é guardião. Enquanto ainda disponho de alguns momentos, expresso minha esperança de que as pessoas acordem para o silêncio. Não, não se trata de votos e de claustros, e sim de libertação. A resposta à interrogação no início do parágrafo não estaria completa sem uma passagem de André Comte-Sponville, meu filósofo de cabeceira: “Escreve-se porque não se pode calar, ou porque não se quer. O silêncio também é um inimigo, também uma prisão, quando fecha, quando esmaga, quando mata, e às vezes mata. Escreve-se para devolver-lhe sua leveza, sua transparência, sua abertura, sua luz, mas sem o quebrar realmente, como faria a fala, sem sair dele, sem o renegar. Escreve-se no âmago do silêncio, aonde a fala quase não vai. (...) Toda fala é do instante, toda escrita, da duração. É essa duração que o leitor descobre, redescobre, habita. Isso faz como que um tempo redescoberto, no vácuo do cotidiano, um pouco de tempo no estado puro, como diria Proust, e é isso a que a chamam a eternidade: o tempo que passa sem se perder, o presente que muda e continua, o devir que permanece...”.
O que mais se pode dizer?

Johannes Vermeer: Mulher escrevendo uma carta com sua criada, óleo, 1670-1671

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma missa para a cidade de Arras

Em 1458, a cidade de Arras, norte da França, enfrentou uma peste que dizimou cerca de um terço de sua população. Os sobreviventes tiveram de lutar, por sua vez, contra um mal tão feroz quanto o anterior: a fome. Como não havia quem se dispusesse a vir de outras cidades para a manutenção de alimentos, não havia um grão de trigo, um grão de arroz, e, como em todo corpo em que se anima um espécime humano há também um germe insuspeitado de loucura, nenhum profeta foi capaz de prever os horrores que se sucederam naqueles dias. O canibalismo foi moeda corrente; registrou-se inclusive o caso de uma mãe que devorou seu filho recém-nascido. A multidão, enlouquecida por uma espécie de clamor do estômago, invadiu até o mais improvável dos locais para calar seu apetite: o cemitério. Passadas a peste e a fome, a vida foi voltando ao normal em Arras, dentro do possível. Porém, em cada habitante ficaria para sempre a marca dos horrores que vira, vivera ou cometera. Três anos depois, um acontecimento banal – a morte de um cavalo - deu início àquilo que entrou para a história como a Vauderie d’Arras. A partir desse fato meramente casual, passou-se a uma campanha de purificação e à busca por possíveis culpados. Procurou-se entre os rogadores de pragas, entre pessoas que conspiravam com o demônio. Não houve dia em que alguém não ia para a fogueira. E, nessa busca, os caçadores olhavam para todas as direções, menos para dentro de si mesmos. Ao final de tudo isso, chega uma autoridade e, com a maior naturalidade, afirma: “O que aconteceu não aconteceu, o que foi não foi!”.

Esses acontecimentos constituem o enredo de Uma missa para a cidade de Arras, do polonês Andrzej Szczypiorski (São Paulo: Estação Liberdade, 2001). Pelo que se pode deduzir, trata-se de uma obra com várias possibilidades de interpretação. À parte as mais comuns, prefiro ressaltar a direção seguida por essa busca por culpados: como se os seres humanos fossem perfeitos, todos os males são atribuídos a causas externas, como influências malignas, pragas etc. Não é preciso observar muito para constatar que, a cada dia, a história de Arras se repete em quase todos os cantos do mundo. Nada pode haver de mais cômodo que cometer um erro, ou mesmo uma atrocidade, e transferir a culpa a forças exteriores e ocultas. É como se o livre-arbítrio tivesse deixado de existir.
Em resumo, é através de acontecimentos como os retratados nessa obra que se vislumbra o abismo que se abre entre o pensamento do povo e a teoria das autoridades e pensadores. Um abismo que parece existir em grande parte apenas para que possamos constatar o tamanho de nossa impotência. E vem-me à mente Carlo Ginzburg e seus Andarilhos do bem e O queijo e os vermes. A respeito do episódio de Arras, é de se perguntar se, em certos casos, não seria a razão tão cega quanto o próprio fanatismo que procura combater.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia de Finados: o que se pode fazer pelos mortos?

Sempre me pareceu um tanto ambígua a existência, ou a necessidade de haver, no calendário, um dia para lembrar dos mortos. Da mesma maneira como a criação de uma lei proibindo matar só tem sentido para um povo potencialmente homicida, o Dia de Finados parece significar que saudade é coisa que se sente com hora marcada, ou, no outro extremo, existe apenas para que os vivos não se esqueçam de seus mortos. Em resumo, parece típico da única espécie que tem consciência da própria finitude e, por isso mesmo, não sabe como agir diante dos mortos e, por extensão, da morte em si.

Contudo, a instituição do 2 de novembro como Dia de Finados parece sugerir que a crença na imortalidade da alma sobrepujou todos os limites impostos pela ciência e pela Filosofia. Nessa data, diversos hábitos, tais como levar flores aos túmulos, limpá-los, acender uma vela ou mesmo simplesmente visitá-los parecem sugerir a certeza de que tais gestos são a última coisa que se pode fazer pelos falecidos. E sempre há os que nem questionam o significado dessas homenagens: apenas as respeitam por tradição, ou simplesmente obedecem-nas porque quase todos o fazem. De fato, essa é uma data em que todos os cemitérios parecem tornar-se verdadeiros jardins: o que mais se pode oferecer aos mortos além de flores, essência da natureza e, no caso, um símbolo da brevidade da vida?

No entanto, essa singela e simbólica homenagem cede lugar a outros questionamentos. Quais outros tributos poderíamos prestar àqueles que, antes de nós, foram conhecer a resposta ao grande enigma da morte? O que mais podemos fazer por eles além de seguir cegamente usos que o tempo e a tradição estabeleceram? As respostas podem ser muitas, mas dependem, basicamente, da consciência de cada um. Algumas delas poderiam vir, por exemplo, da negação, do ceticismo: nada mais podemos fazer pelos nossos entes queridos, além do que tradicionalmente já se faz. Outra resposta possível é a seguinte: o que podíamos fazer por eles já fizemos em vida e tais ações exigem verbos no passado. Ter sido um bom filho, um bom pai, um bom amigo, um bom aluno etc. Orar, segundo os católicos, é outra alternativa.

 Em seu romance O filósofo e o lobo, Mark Rowlands nos traz uma preciosa reflexão: “Mas existe outra forma, mais profunda e importante, de nos lembrarmos: uma forma de lembrança que ninguém jamais pensou em honrar com um nome. Trata-se da recordação de um passado que se imprimiu em nós, em nosso caráter e na vida que levamos – e que molda esse caráter. Não temos, normalmente, consciência dessas lembranças; muitas vezes nem são coisas que estão em nosso consciente. São elas, mais que qualquer outra coisa, que fazem de nós o que somos. Essas lembranças se manifestam nas decisões que tomamos, nos atos que praticamos e na vida que levamos. É em nossas vidas, e não, fundamentalmente, em nossas experiências conscientes, que encontramos as lembranças dos que se foram. Nossa consciência é instável, não é digna do trabalho de se lembrar. O modo mais importante de se lembrar de alguém é ser a pessoa em que este alguém nos transformou – pelo menos em parte – e viver a vida que ele nos ajudou a moldar (...). Levarmos uma vida que ele ajudou a moldar não é apenas um modo de nos lembrarmos dele; é como honramos sua memória”.

Ilustração:
Albrecht Dürer: Melancolia

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Algumas considerações

Muito já se discutiu a respeito do que consistiria o ato de escrever, e tanto a quantidade quanto a qualidade dessas opiniões intimidam quem deseja se atrever a acrescentar algo mais a esse verdadeiro legado sobre um legado anterior. Entre tudo que se escreveu, existe a carta de um escritor a um jovem poeta ensinando-nos sobre algo com que, na prática, já nos havíamos defrontado e que diz respeito àquilo que não se produziu por mero capricho, por uma simples vontade distraída de rabiscar algo, mas que teve origem numa necessidade quase visceral, como se o que surgisse em forma de palavras já tivesse vida plena e apenas ansiasse por vir à luz. A despeito disso, ou exatamente em razão do tom imperioso que às vezes caracteriza esse ato, receio ter de concordar, submisso ante tais palavras. Essa noção de algo já preexistente e pleno de vida a querer brotar traz à memória outra ideia: há quem compare a escrita a adentrar uma caverna completamente escura, sem qualquer recurso para iluminar o caminho, e voltar de lá trazendo algo em mãos, obtido através da única arma de que se dispõe: as palavras. Em outras vezes, as frases surgem prontas como que de um outro mundo, revestidas de uma voz que não é a nossa, mas à qual devemos nos submeter e registrar. Para ter paz, não nos resta senão obedecê-la. Percebe-se dessa forma que se trata de um processo no qual não nos cabe muita escolha: não é a nossa opinião que interessa, e sim das vozes que ouvimos.

Existe uma frase bastante conhecida de Liev Tolstoi que gostaria de recordar aqui, por ver nela um desafio maior a ser alcançado um dia, objetivo do qual me encontro extremamente distante: “Não há grandeza quando não há simplicidade”. A própria frase parece sintetizar na forma o que diz em conteúdo: eis a grandeza de um mestre. Em outro contexto, o autor de Anna Karênina nos mostra o que caracteriza sua simplicidade: “Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”. Ao mesmo tempo em que nos revela humildemente sua grandiosidade, Tolstoi nos aponta nosso próprio lugar no mundo. Mesmo assim, existe um resto de ambição nessa frase que me incomoda: longe estou da presunção de querer ser universal. E, se fosse olhar minha própria história, constataria ter vivido em tantas cidades que, feitas as contas, acabo sendo de lugar nenhum, por mais significativo que seja o fato de ter escolhido Candelária como meu chão, cidade amada, cuja história tanto me encanta e que neste espaço gostaria de recordar. Porém, por lealdade a Schubert, gostaria de fazê-lo como um viandante, aquele que, mesmo vivendo há muitos anos na cidade, sente nitidamente estar apenas de passagem e cuja estadia responde pelo nome do provisório. Não saberia fazer de outra maneira. A isso, soma-se outro aspecto: o resto de fidelidade que tenho para com as outras cidades que me acolheram me levam a amar não somente este município, mas a estender meu apego à terra como elemento, a amada terra, elemento que nos dá vida e que depois nos acolhe maternalmente em seu regaço.
Por obra do acaso ou não, a cidade que hoje conhecemos como Candelária começou com uma simples estrada – a Estrada do Botucaraí. Uma picada, não mais do que isso, uma via de acesso, lugar por onde se precisa passar para chegar a outro. Não o destino em si, mas um caminho. E as avenidas que hoje conhecemos como Pereira Rego e Getúlio Vargas, em outros tempos, não eram mais que um pequeno trecho dessa estrada. Seria certamente um exagero dizer que isso, de algum modo, nos define, mas talvez o fato diga alguma coisa sobre a nossa condição de cidadãos, moradores que somos de uma antiga vereda. Caminhantes? Peregrinos? Ou seria excesso de imaginação? Talvez a simplicidade universal de nossa condição, do parentesco entre terra e palavras e da terra em si esteja na impressão que ela nos traz, mesmo viandantes, de pertencermos a um todo maior e que foge a qualquer tentativa de definição mais exata. Trata-se da famosa sensação de pertencimento, de que muitos se sentem privados. Quanto aos candelarienses, talvez baste vislumbrar os contornos do Botucaraí para que nos tornemos sentimentais a ponto de perceber um pulsar em ritmo diferente do coração. O vínculo com a terra, mais cedo ou mais tarde, se revela sempre soberano, e se ainda acreditamos desconhecer a resposta, o próprio elemento primordial se encarrega de responder ao que em nós é um silencioso e respeitoso reconhecimento de que algumas coisas não somos nós que decidimos.
Em 1907, o compositor austríaco Gustav Mahler, influenciado pela precoce morte da filha, de apenas quatro anos, começou a musicar um ciclo de antigos poemas chineses, criando uma grande obra para solistas e orquestra, intitulada A Canção da Terra. Trata-se de uma das páginas de maior profundidade e de transcendente beleza do repertório erudito. Como que sentindo a proximidade da própria morte e ciente de que a amada terra voltaria a florescer para ele apenas poucas vezes, Mahler deu à última peça o nome de O Adeus. A partitura descreve uma comovente despedida entre dois amigos e a expressão do desejo de voltar à terra natal para ali viver os últimos dias. Os versos finais, significativamente, são do próprio compositor: “Em toda parte, a amada terra floresce e fica novamente verde! Em toda parte, para sempre, os horizontes serão azuis e brilhantes! Para todo o sempre... Em toda parte... Eternamente... Eternamente...”.

Ilustrações
Caspar David Friedrich: O viajante acima de um mar de nuvens, óleo, 1818
Candelária e o Botucaraí: foto de Odete Jochims
Gustav Mahler em 1892

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Leitura: felicidade clandestina ou conquistada?

Entre os diversos tipos de leitores, existe uma espécie que pode ser reconhecida a grandes distâncias. Não se trata daqueles que leem por obrigação, por acaso ou ocasionalmente. Falo daqueles que têm na leitura não um hábito, mas um vício do qual não podem prescindir sem que sua rotina seja com isso não apenas completamente abalada, mas levada à total inviabilidade. São aqueles que fazem da leitura algo como que uma missão de vida, tarefa à qual se dedicarão enquanto restar neles um sopro que seja de vida, não se importando com os reveses às vezes da realidade mais imediata, favorável ou não: nada conseguirá distraí-los de sua missão. Para esse público, não obstante a variedade de gostos ou demais distinções entre as inúmeras possíveis, o livro como objeto pode ser definido por palavras que talvez encontrem eco em cada um, em diferentes graus; trata-se de uma expressão usada num texto sobre Clarice, não lembro agora por quem: promessa de felicidade. No seu conto “Felicidade clandestina”, a personagem é deliberada e impiedosamente submetida a uma indizível tortura antes de ver realizado seu simples desejo de receber um livro em empréstimo. Terminada a espera, a narradora conclui: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. Interpretações à parte, a frase encerra uma realidade que todo leitor por vocação conhece bem: o crescimento e o amadurecimento na companhia desses objetos tão amados, que na verdade pouco ou nada têm em comum com os demais objetos, tanto da infância quanto da vida adulta: neles estão contidos nada menos que o trabalho – muitas vezes de uma vida inteira - de nossos autores preferidos. Se se fizessem tentativas, perderia-se a conta na impossível tarefa de contar as horas passadas dessa forma, definida por Proust como “dias que tenhamos deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido”. É possível que nesses dias “não vividos” estejam algumas das horas que vivemos mais plenamente e de forma mais intensa.
Muitas vezes me interrogo em que consiste essa devoção fiel aos escritores de todas as épocas e lugares. Quanto mais me pergunto, menos seguro fico em relação à resposta. Mesmo assim não me dou por vencido, e, por mais que me veja tentado a reconhecer que a leitura é um verdadeiro mistério, não aceito de bom grado as respostas prontas. E, por mais que eu deteste cair no lugar-comum, esse interrogar incessante me leva a considerar que o desejo de ler é uma dessas pulsões de satisfação momentânea, que se saciam parcialmente e que depois se refazem, renovadas pelo próprio ato diário de as alimentar. Assim como ocorre com as demais pulsões, lemos para sobreviver, ou para tornar a vida possível. Mas a semelhança acaba aí. A nossa necessidade de alimentos é algo previsível; com os livros, existe uma diferença, e esta diz respeito ao grau de insaciabilidade que, com o passar do tempo, se desenvolve em nós. Um livro leva a outro, assim como a resposta a uma dúvida gera outra dúvida, a ser sanada, ou não, conforme o nosso grau de resistência ao que essa voracidade tem de inelutável. Mas dessa sede impossível de ser saciada torno a falar depois.
Já se disse que a leitura exprime uma inconformidade com a nossa realidade, e, através do mergulho nas páginas dos livros, colocamo-nos a procurar um universo que nos convenha mais do que este que temos à nossa volta. Pode ser. Mas, entre os mais diferentes leitores, vejo muitos que nada têm dessa tal inconformidade. Antes pelo contrário: é por amor à vida, às pessoas e ao real que dedicam as horas aos livros, no desejo de saber sempre mais a respeito de tudo – emprego essa palavra com o que ela possui de mais absoluto. É essa busca pelo conhecimento que possibilita ao leitor uma visão panorâmica de todas as eras, mesmo as que já sucumbiram diante do tempo. Entregar-se de corpo e alma a um livro tem isso de inigualável: os segredos, a sabedoria, a suma do pensamento de todos os tempos está ali, acessível, como que numa esfera à parte dentro de nosso mundo, à qual temos livre acesso. Todas as épocas coexistem sem atritos; cessam as guerras e mesmo os povos inimigos depõem as armas para ficarem lado a lado, para sempre pacificados.
Também muito já se repetiu que ler possibilita viver diversas vidas, em vez de apenas uma. E é com a flexibilidade de verdadeiros atores que vivemos, por assim dizer, os mais variados papéis, e não raro com mais intensidade do que aquela com que vivenciamos nossa própria rotina, aquela que ninguém jamais poderá cumprir em nosso lugar. Entrega sem reservas ao que constitui o outro talvez seja uma expressão adequada para definir essa capacidade que temos de vivenciar outras existências, respirar em outras atmosferas com a mesma naturalidade como a que temos quando nos encontramos em nosso próprio elemento. E isso com a tal ânsia insaciável que deixei em suspenso acima, para retomá-la aqui: mais especificamente, o que é mesmo que buscamos nesse deixar-se viver pelos outros? Uma possível resposta está acima, disfarçada, através de uma palavra repleta dos mais variados significados: o absoluto.  “Repleta” talvez não seja a palavra exata; “prenhe” talvez seja melhor, por simbolizar as peripécias futuras por que passaremos em nossa vida de leitores. O filósofo André Comte-Sponville fornece-nos uma bela síntese do que estaria representado pelo absoluto: “uma espécie de salvação, ali onde tudo se funde, ali onde tudo forma apenas um: a eternidade no presente, a vida na morte, o amor na solidão, a serenidade no desespero...”.
A felicidade, para a personagem de Clarice, era clandestina porque veio através de um livro emprestado. Contudo, a satisfação que experimentamos na leitura mesmo de livros alheios constitui um grau elaborado de nossa condição de cidadãos de um mundo sempre em mutação, próprio a seres cuja gênese não acaba jamais e vem a ser interrompida apenas pela nossa morte. Vivemos nos formando, tornando-nos algo que foge à nossa mais acurada capacidade de definição e mesmo de percepção, fundindo-nos a esse eterno absoluto descrito acima. Sim, é verdade que somos mortais e que nossas horas estão contadas; neste mundo sim, é fato que somos clandestinos. Todavia, mesmo assim, não importa o que pertence a quem: a felicidade que alcançamos como leitores é genuinamente nossa, e de mais ninguém – embora, como toda grande felicidade, sempre se deseja compartilhá-la -, tão mais legítima quanto mais nos dedicamos nessa busca incessante de viver tanto experiências nossas como as alheias. Egoísmo, individualismo, opinam alguns. Contudo, como poderia haver egoísmo num desejo que, por ser fusão, transformação, evolução, revela mais amor ao próximo que a nós mesmos? Talvez seja oportuno retomar a frase de Proust, e concluir que as horas que vivemos mais intensamente foram justamente aquelas que vivemos sob outros nomes, em outras esferas, num esquecimento total – e absoluto.  Muitas vezes, precisamos ser outros para sermos mais fiéis a nós mesmos, no que temos de mais característico. E isso é algo que não sei definir, mas que tem relação com outro aspecto que nos distingue dos outros animais: a vocação que temos para jamais nos darmos por satisfeitos, buscando sempre além o que às vezes pode estar adormecido em nós mesmos, à simples espera de ser despertado para ser vivido em seu devido tempo.
Ilustração:
Pierre-Auguste Renoir: A leitora, óleo sobre tela, 1875

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Dos improvisos

Se para falar das contemplações precisei recuar no tempo e voltar à infância, para falar dos improvisos creio que seja necessário, além desse mesmo retorno, um esforço extra no que tange à memória dos estados de espírito, igualmente de dias distantes. A tarefa me é facilitada pelo fato de, já naquele período, ter tido a rara felicidade de haver encontrado seres que me possibilitaram a vivência de momentos únicos; se não os lembrasse, seria menos humano quem aqui escreve. Nenhuma diferença faz o fato de que essas criaturas que tanta riqueza e intensidade me trouxeram não estivessem mais vivos no momento em que me foram apresentados, pela voz grave de um locutor de rádio. Não se tratava de uma emissora como essas que passam os dias a tocar apenas as músicas mais pedidas e as que mais vendem. Salvo o programa “A hora do Jazz”, a rádio da Ufrgs tocava apenas música erudita. Que a audiência fosse mínima e que naquela programação eu pouco encontrava sobre o que conversar com meus colegas de escola, pouco importava. Até onde eu saiba, ou até prova em contrário – a gente nunca sabe -, ninguém é julgado pelas músicas que ouve e, se é, a condenação fala mais de quem julga do que do gosto de quem é assim avaliado.
Pois bem: há muitos anos, numa determinada tarde, um desses momentos em que já não se espera mais nada para o dia, o locutor anuncia os Improvisos opus 90, de Franz Schubert. Lembro de haver lido, naqueles dias, sobre os esforços e as dificuldades de ninguém menos que Beethoven na tarefa da criação, sobre suas crises de impaciência e insatisfação quanto aos resultados obtidos, e me pareceu estranho aquela palavra – improviso - ser aplicada à música. Pois o que assim se denomina é algo feito na hora, sem preparo prévio. Para exemplificar a simplicidade que a palavra improviso sugere, basta dizer que o dicionário não lhe traz sinônimos, ao não menos em uma palavra equivalente. Mas não importa. As quatro peças de Schubert, ouvidas sucessivamente, somam cerca de vinte e sete, vinte e oito minutos, e nem é preciso dizer que de improviso só trazem o nome. De modo particular, a terceira e a quarta peça são possuidoras de uma beleza que nenhuma palavra, por mais eloquente que seja, é capaz de descrever. O que me colocou diante de um paradoxo, tanto musical como linguístico: sendo a mais requintada simplicidade de que eu tinha notícia, o dicionário a tratava com reserva e parcimônia; o que se daria então no caso de uma beleza sem paralelos? Cheguei a uma conclusão que na época considerei provisória, mas que hoje, tendo-se passado décadas, continua em vigor, ao menos para mim: não procurar descrever o fenômeno da música através de palavras. Ainda mais quando se trata de Schubert.
Essa é uma regra que procuro seguir até hoje. Em todo caso, não estarei violando minha própria interdição se buscar expressar algo não da música em si, mas do significado representado pela audição daquelas quatro peças em uma tarde tão distante no tempo, mas tão viva na memória. Sei dos limites das palavras, do valor do silêncio. Mais ainda, sei dos limites de minha própria capacidade quanto à expressão, verbal ou não, e tenho consciência de estar adentrando um território em que definições, descrições e mesmo lembranças se tornam difusas, indistintas. Mas talvez esteja aí, nessa região obscura, em que os significados se confundem e se interpenetram, a origem de uma palavra sinônima de que o dicionário nos privou. O que se procura fazer além dessas fronteiras sempre indeterminadas talvez pertença sempre ao campo da improvisação, não esquecendo também o quanto os nossos dias têm de improvisado, de imprevisto, de soluções e resoluções tomadas muitas vezes às pressas, sem que se tenha tempo ou mesmo lucidez para refletir a respeito dos rumos de acontecimentos, e, em escala não mais modesta, de sentimentos e de consequências. Os Improvisos de Schubert, naquela tarde reencontrada toda vez que torno a ouvi-los, talvez tenham tido significado não muito diferente da ária Uma furtiva lagrima para Macabéa, em A hora da estrela: a intuição da possibilidade de uma existência em tudo mais elevada. Talvez também a consciência de que, assim como nosso ouvido, nossos outros sentidos podem também ser habituados a voos mais altos, a esferas espiritualmente mais etéreas. Não sei por que o grande compositor vienense escolheu nome tão modesto para peças tão bem-acabadas, que hoje estão à altura de outras obras-primas do repertório pianístico. Mas conheço suficientemente a alma de Schubert para saber que tudo nele era modéstia, eclipsado que se via pelos vultos de Beethoven e de Mozart, em quem, a despeito dele mesmo, tudo é divino. E basta isso para lembrar o quanto a história da música pode ser cruel para com seus maiores gênios. O tempo, se não pode reparar as injustiças, ao menos pode resolver a questão da indiferença e da ignorância.
Sendo os improvisos de Schubert, tal como se procurou demonstrar acima, de uma beleza tão excepcional, pode parecer arrogância usar aqui a mesma palavra para designar esses rascunhos, frutos o mais das vezes do acaso. Todavia, tenho consciência de que as peças do compositor vienense, assim como suas sonatas, sinfonias e canções, foram feitas para a eternidade. Mas, sabendo-me mortal, talvez seja mesmo por ter a exata noção de minha transitoriedade o que me tenha levado a escolher tal nome para isso que, por mais que eu fizer, não passarão de rascunhos que, de eternidade, possuem apenas a imperfeição. O que busco é uma espécie de justaposição: a matéria perecível colocada ao lado de algo de caráter mais durável, como as paredes, digamos, da Abadia de Westminster. Enquanto elas não me esmagarem, estarei feliz, mesmo ciente de que tudo nesse mundo, até o rochedo, é passageiro, e que não dispomos mais do que do momento presente, para todo o sempre e constantemente tornando-se passado. Nesse escoar sem fim, enquanto não escoamos também nós, tratemos de escrever um pouco e obter, desse modo, se não a salvação, ao menos a impressão, transitória, como tudo o mais, e a despeito de nossa pequenez, a impressão de que colaboramos em alguma coisa que seja para mudar, por mínimo que seja, a paisagem à nossa volta.

Das contemplações

Uma das primeiras imagens que me surgem evocadas pela palavra contemplação é a pintura de Caspar David Friedrich, “Homem e mulher contemplando a lua”, da década de 1830. Não saberia dizer quando a vi pela primeira vez, mas era ainda criança. Foi aproximadamente na mesma época em que, tendo perdido um familiar querido, postava-me à janela da sala de minha casa, antes do anoitecer, e ficava a espiar as nuvens em seus tons cambiantes entre o róseo, o alaranjado e uns restos de azul, para conseguir surpreender um movimento que não fosse o lento deslocar-se dessas belas e instigantes formas nebulosas. Isso porque, na minha imaginação e com base no que me haviam dito, era lá, por entre as nuvens, que os mortos passavam a viver depois de irem-se deste mundo, e ali permaneciam, contemplando, por sua vez, a terra de uma maneira diversa daquela como a haviam conhecido. Segundo a crença que me foi ensinada, ali ficavam em um estado de beatitude que, naquele momento, longe estava de causar-me inveja. Antes pelo contrário: aquela ausência de atividade e de uma espécie de vida mais instintiva me causava arrepios. Mesmo assim, e de qualquer modo, era necessário comportar-me bem, pois eles, para quem o tempo passara a ser eterno e possivelmente não tinham mesmo nada melhor a fazer, com certeza não perdiam um detalhe dos acontecimentos cá de baixo.
Anterior a esse referido contemplar, um outro mundo havia já semeado em mim raízes definitivas: as palavras. Dou meu testemunho de fé a respeito do que se diz: é verdade que tudo começa com um sim. Em suas diversas classes gramaticais, as palavras, como acontece com todos, acompanharam-me desde que aprendi a olhar o mundo, mas foi a partir de sua forma escrita que elas fizeram em mim sua obra. Se dessas sementes brotou algo bom é coisa que ignoro até hoje. Lembro-me de haver questionado, certa vez, a respeito do traço definitivo que a leitura constante nos traz aos poucos, com o transcorrer dos anos. Em meus pensamentos, interrogava-me o que seria preferível, caso pudéssemos escolher: uma felicidade ignara ou uma inquietação elevada? Nunca perdi a esperança de um dia encontrar uma resposta. Em todo caso, do ler e do reler nasceu o amor aos livros, tanto ao suporte como ao conteúdo, e à obra dos grandes autores, em especial por obras cujo valor já foi comprovado pelo mais implacável dos juízes: o passar do anos e, muitas vezes, dos séculos, sem que o poder de impacto de sua leitura tenha sido abalado o mínimo que seja.
As palavras acima talvez transmitam a falsa ideia de uma postura inativa perante o mundo e seus acontecimentos. Nada poderia ser menos verdadeiro, e o simples fato de estar constantemente receptivo às diversas manifestações do gênio humano é prova mais que cabal de um posicionamento, ou, em outras palavras, de uma escolha. Posso dizer em minha defesa que deixar uma obra repercutir com toda sua força em nós é estar sempre pronto para a novidade, para os acontecimentos, e, ao mesmo tempo em que nos colocamos em devoção, significa também não nos perder jamais de nós mesmos. Muito pelo contrário. Há quem diga que a apreciação de uma obra, seja ela literária ou musical, significa em parte incorporá-la a nós, através de uma forma de absorção. As afirmações nesse sentido são numerosas, mas reconhecer sua verdade exige uma arrogância que me desagrada. Contudo, não conheço ninguém que tenha perdido algo ao ler Shakespeare, Proust ou Kafka; a verdade inegável é que viveram, por meio de tais autores, experiências de verdadeira epifania. Da mesma forma, não sei de ninguém que tenha sentido dor nos ouvidos ou nos olhos por contemplar uma pintura de Vermeer ou por ouvir um concerto de Bach. Talvez um início de resposta esteja na já mencionada lua de Friedrich, a eterna musa dos contemplativos: basta olhá-la por alguns poucos segundos, e nem há necessidade de ser lua cheia. O efeito do sol está lá, resplandecendo não apenas sobre ela, mas também sobre as estrelas e asteroides. Sinceramente, à exceção de raros momentos, tenho a forte impressão de que o mundo é um imensurável, inestimável e constante céu estrelado a oferecer-se por inteiro a quem o quiser ver. Responder ou não a esse apelo, perceptível em todos os cantos do planeta, de igual modo a todas as classes sociais, depende única e inteiramente de nós. Basta uma pequena e simples palavra em assentimento.