sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano novo com bom senso

Nunca soube dizer ao certo os motivos, e mesmo a hipótese que transcrevo a seguir talvez não passe mesmo disso: uma hipótese. O fato é que, há anos atrás, sempre que o ano estava para terminar, eu era tomado por uma nostalgia de proporções nada modestas. Não se comparava à melancolia descrita nos termos de Freud, mas era algo que tornava difícil associar a virada do ano com o humor que normalmente se requer para festas, principalmente de réveillon: uma euforia que, da parte de muitos, sempre me pareceu forçada. (Como se as pessoas se sentissem obrigadas a estar, ou ao menos parecer, intensa e extremamente felizes, sob pena de não serem consideradas convivas à altura da ocasião). Algumas das razões desse estado talvez sirvam de exemplo do quanto certas superstições podem ser nocivas em nossa vida, quando destituídas de um mínimo de bom senso. Como se sabe, o dia 31 de dezembro sempre foi, e continua sendo, uma das datas em que, mais do que qualquer outra, as mentes incautas são bombardeadas pelas mais diversas receitas de como ter sorte no ano novo, desde os três pulinhos com o pé direito, passando pela roupa branca, dando a volta na folha de louro cuidadosamente colocada na carteira, prosseguindo com uma série de medidas que estão longe do fim quando se fala nas sete uvas e nas lentilhas. Quando digo mentes incautas, não deixo de incluir a mim mesmo, que, na infância e adolescência, se a um tempo pouco crédito dava a todos esses rituais, por outro lado, por eventuais erros em sua realização, temia ter um ano desastroso pela frente, unicamente em função de, por exemplo, ter errado de pé ao dar os três pulinhos. Por uma natural falta de vocação para o misticismo, sempre fazia algo de errado nessa série sem fim de mandingas, se é que se pode usar essa palavra. E, para uma mente não muito madura, no caso de se suceder algo ruim num dos trezentos e sessenta e cinco dias subsequentes – mesmo de proporções modestas, algo de ruim, em um número tão longo de dias, sempre acontece -, a culpa, na minha imaginação, era sempre toda minha. Daí a tristeza antecipada já nas noites de réveillon. Além disso, sempre tive a impressão de ver nessas comemorações, por parte das pessoas, uma espécie de desejo ingrato de se livrar o mais rápido possível do ano prestes a findar, como se se tratasse de um fardo, pesado como tudo que se carrega a contragosto, como se nada houvesse nele de boas lembranças e de ricas experiências acumuladas.
Muitos anos se passaram. Se com eles não vieram o bom senso ou a sabedoria, ao menos deixei de acreditar em muitas coisas, afastando-me principalmente dessa tosca compilação de ideias prontas que atende pelo nome de senso comum. O início dessa ruptura se deu por meio da verificação do que havia por trás de textos como “De como filosofar é aprender a morrer”, de Montaigne. Através dessas palavras, o filósofo tinha em mente não necessariamente a morte em si; trata-se de uma espécie de ritual de natureza oposta à daquela descrita acima e que prescreve que devemos, com toda a lucidez de que somos capazes, abrir mão das superstições e, com toda a humildade, selar a paz com a nossa condição de mortais. Não se trata de um gesto de rebeldia, mas antes de tudo uma reconciliação com nós mesmos e com o que temos de mais natural: a finitude. Para muitos, enxergar as coisas dessa maneira é origem de tristezas, o que, na verdade, não constitui senão outro erro: a felicidade está aqui e agora, e vivê-la ou encontrá-la depende mais de nós do que de qualquer outra coisa, de iniciativas, ousadia, método, oportunidades, planejamento e, é claro, de um pouco de sorte.

A partir desse ensaio do grande pensador francês, iniciei uma busca pelo conhecimento não apenas nos livros, mas na observação dos fatos mais corriqueiros da vida. A respeito do além, lembro de haver escrito, há anos atrás, não me lembro onde, que “o vazio que se sucede é o mesmo que antecede”. Dito de maneira mais elaborada, temos a célebre frase de Schopenhauer: “Podemos classificar a vida como um episódio que perturba inutilmente a bem-aventurada tranquilidade do nada”. Foram muitos anos de leituras, vivências, perguntas e respostas, essas sempre de caráter temporário. Se me afastei do pessimismo dessa última citação, não foi exatamente por receio do inevitável, mas por algo que acabei encontrando apenas depois de voltar ao início do caminho, ou seja, a Montaigne: “A vida já me concedeu a oportunidade de encontrar centenas de artesãos e lavradores mais sábios e mais felizes do que muitos reitores”. Eis uma frase que revela uma grande verdade: as grandes respostas, se acaso elas existem, estão é na vivência cotidiana mesmo das vidas tidas como as mais simples, como as nossas próprias, longe das ostentações, com ou sem riqueza, independentemente de crença no sobrenatural. Quando me refiro a essa experiência do dia a dia, tenho em mente uma entrega por inteiro a cada momento, a cada atividade, seja nosso trabalho, seja um momento de lazer ou o diálogo com um amigo. E, entre uma atividade e outra, não esquecer de contemplar, de vez em quando, o pôr do sol, a paisagem à nossa volta, e jamais deixar de apreciar, com especial fervor, as noites estreladas, seja inverno ou verão, e lembrar que, através dessas formas nebulosas, estaremos muitas vezes vislumbrando o que há milhares de anos já deixou de existir e cujo brilho, não obstante isso, continua a nos encantar. Digo isso mesmo ciente de que não existem receitas prontas. O que sei é que, vivendo dessa maneira, tornando cada momento um acontecimento especial, as dúvidas que mais nos instigam e nos tiram o sono acabam se tornando questões secundárias. Contudo, seja qual for a resposta a essas interrogações, uma coisa existe de imutável: o compromisso ético, ou moral, com nossos semelhantes.
Quanto a mim mesmo, posso dizer que minhas averiguações estão longe de terminar, e é esse o meu maior desejo para o ano que se aproxima: poder continuar trabalhando, procurando, pesquisando, vivendo, escrevendo. (E se algo der errado, não será por ter pulado seis em vez de sete ondas no mar ou por não ter lembrado de usar branco na passagem do ano). Para o pouco que conseguir encontrar, sei de antemão que será sempre insuficiente e não mais que provisório. Para a maior parte das questões, as mais desafiadoras, não terei jamais possibilidade de dizer palavra alguma, mesmo que eu não seja completamente agnóstico. E se um dia me perguntarem a respeito de causas primeiras, da existência ou não disso que conhecemos como alma, do futuro ou do além, terei apenas uma réplica. Trata-se, talvez, na história da filosofia, da mais famosa das respostas: “Eu nada sei”. O que me torna apenas sincero, e não sábio.
Vincent Van Gogh: Noite estrelada, 1889

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Natal com outro espírito

Para quem trabalha em um jornal e ao mesmo tempo se permite ter crenças que se caracterizam pelo aspecto pouco comum, sem espaço para grandes esperanças, em nenhuma outra época do ano o espaço em branco provoca sentimentos tão contraditórios quanto no Natal. Trata-se de um tempo em que, ao menos para mim, se evidencia um significativo contraste entre o pensamento real e as ideias que o trabalho exige que expressemos. Isso porque o bom senso editorial prescreve que, em relação à data máxima do calendário cristão, o conteúdo dos textos esteja de acordo com uma série de elementos típicos desse período e que fazem parte da própria edição de Natal, como os anúncios, o tom das demais matérias, além de aspectos exteriores não menos importantes, como a elaborada decoração da cidade, em que se destacam os papais noéis de todos os tamanhos, pinheiros, velas, bolinhas, o trenó, as tradicionais renas, além de uma iluminação que realmente pode ser definida como possuidora de uma certa magia, mas cuja beleza por si só não interfere em nosso modo de pensar. E, por melhor que seja para o comércio, não faz muita diferença o fato de virem pessoas de vários municípios vizinhos especialmente para ver de perto essa ornamentação preparada por meses e elogiada por praticamente todos os cidadãos.
“O Natal só tem graça quando se é criança”, ouvi há poucos dias não de um, mas de dois colegas de trabalho, o que comprova que não estou só no descompasso. Sinto-me até em certa vantagem nesse sentido: não creio que essa data seja completamente destituída de encantos. De qualquer maneira, creio que eles estão certos: nada se compara aos natais da infância. O que ocorre é que, enquanto crescemos e desenvolvemos nosso pensamento, os significados dessa data tomam rumos que muitas vezes guardam pouco parentesco com o que eram de início. O Natal não perde o valor, mas passamos a priorizar aspectos que na infância sequer percebíamos, ou que ficavam em segundo plano. Como se não bastasse essa mudança trazida pelo abrir dos olhos, começa-se a perceber uma série de contradições que, se antes nos pareciam naturais, com o transcorrer do tempo nos parecem no mínimo contrastantes, para não dizer outra coisa.
Causam-me espanto sobretudo aquelas pessoas que, bem o sabemos, nunca simpatizaram muito conosco e que, de repente, como se tivessem sido atingidas por um raio de luz dourada (ou vermelha e verde), se desdobram em amabilidades e reverências diante de nossos olhos. As causas de perplexidade não param por aí. E isso me leva a imaginar coisas; uma pequena esperança antes inexistente aos poucos parece tomar forma, e de sua presença só nos apercebemos quando ela já se apoderou de nós. “A humanidade ainda tem chances”, refletimos, e nos alegramos com isso. E a imaginação, sempre célere, nunca decepciona quando se trata de ir além de si mesma: fico pensando, por exemplo, que há muitos milhares de anos, numa época em que os humanos ainda não haviam aprendido a acender o fogo, os grupos, em suas vidas caracterizadas pelo nomadismo, carregavam sempre uma tocha acesa - para afugentar feras, assar carne ou mesmo aquecer-se -, colhida em alguma árvore atingida por um raio, até o dia em que aprenderam a técnica para dispor desse elemento. E me pergunto se tal hábito, apesar de tão remoto, poderia ter algo a nos dizer. De que maneira poderíamos nós, nos dias de hoje, aprender com os nossos ancestrais, de modo que nos tornássemos capazes de carregar sempre conosco uma chama e não deixá-la apagar-se em momento algum? Seria possível alcançar essa façanha e trazer sempre vivo em nós os sentimentos de fraternidade que presenciamos apenas no Natal? Como figura de linguagem, a comparação pode até possuir algum sentido, mas bem sabemos que é inútil: o que se vivencia todos os dias acaba se revelando enfadonho. Quando chegar o dia 26 de dezembro, as centelhas da maior parte das pessoas já terão se extinguido. Todavia, sei do grande risco das generalizações apressadas e, por essa razão, peço o devido perdão às exceções, que realmente possuem tais sentimentos o ano inteiro – e que, digo com certeza, existem, e constituem um número significativo. É em grande parte por essas belas almas que salvam não apenas o Natal, mas todo o restante do ano, que torno a dizer: nem tudo está perdido para a nossa raça.
Porém, mesmo para os descrentes, existe uma maneira alternativa de vivenciar o Natal. Creio inclusive que podemos tentar de muitas maneiras, mas limito-me a um exemplo, recorrendo à história da música. Entre o Natal e a Epifania de 1734, numa igreja de Leipzig, Alemanha, Johann Sebastian Bach apresentava ao público o seu Oratório de Natal, obra para solistas, coro e orquestra que relata a natividade em forma de árias e trechos corais e orquestrais. Bach foi um dos tantos artistas que, por estarem muito adiante de seu tempo, confundiam os seus contemporâneos. Um dos principais alicerces do que veio a ser chamado música erudita e possuidora de uma profundidade talvez jamais superada, a música de Bach é hoje reconhecida como um universo no qual cada estudioso pode escolher de que forma irá perfazer seu próprio caminho. Alguns dos trechos do oratório fazem parte do repertório de peças que possibilitam aos humanos ouvir a música do cosmos. Exemplo particularmente eloquente é a ária Schlaffe, mein Liebster, geniesse der Ruh. De início, a orquestra introduz um motivo de um lirismo puríssimo; terminada essa exposição, enquanto a orquestra principia a repetição do tema, ouve-se emanar do conjunto uma voz de contralto, em seu registro grave e profundo, enunciando em longas notas a primeira frase do texto: “Dorme, meu querido, aproveita o repouso”, palavras dirigidas ao menino Jesus. Trata-se de um motivo em princípio sem maiores ornamentos, o que não impede que sua beleza tão rara encante a todos, amantes da música ou não. E é nesse momento, através de uma voz etérea, que se tem a impressão de que todas as reservas com que encaramos o Natal desabam, vitimadas por aquilo que a nossos olhos parece mais precioso: sua racionalidade. A partir dessa experiência, somos forçados a crer que existe, sim, algo de transcendente na humanidade, ou ao menos nas formas como ela se expressa, e que, por assim dizer, desafiam a nossa condição de simples mortais. Cabe registrar que não apenas o universo da música, mas também da literatura, da filosofia etc, estão repletos de exemplos que poderiam levar ao mesmo caminho, isto é, a momentos em que é dado aos mortais sentir o hálito da divindade.
Sim, eu sei, não se trata do espírito natalino como normalmente é conhecido. Porém, em relação ao outro, esse encantamento traz uma vantagem: ele não deixará de existir no dia 26 e pode ser vivenciado em qualquer mês, não necessariamente apenas em dezembro. E me pergunto: por não ser datado, não seria o espírito da música, sob certo aspecto, tão precioso quanto o espírito de Natal, ou o que quer que isso seja? Como início de resposta, posso sugerir que, mesmo não sendo uma tradição, Natal com o espírito da música também é Natal. E sem decepções no dia seguinte.

A adoração dos Reis Magos: iluminura de Livro de Horas de meados do século XV, Biblioteca Pública de Évora
Partitura autografada do Oratório de Natal



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sobre o tempo, esse fugitivo, ou Da beleza, essa também esquiva

De todos os lugares-comuns, esse talvez seja o mais repetido, e creio que já era assim em tempos anteriores a Shakespeare. Não planejava recorrer a ele, mas não fico mais surpreso por me ver outra vez às voltas com temas não planejados, em momentos também inesperados. Creio mesmo que não somos nós que decidimos, a saber, a respeito dos assuntos sobre os quais discorremos. Por serem anteriores a nós, pertencentes a uma tradição milenar, acredito que sejam eles que nos apontam o dedo, determinando sua escolha. A nós não resta senão aquiescer. Ao menos assim tem sido desde que resolvi parar de resistir a esse imperativo que determina a hora e o assunto a registrar, e, se hoje mais uma vez me coloco a postos para grafar o que não sou eu que decido, é no mínimo com certo enfado contrafeito que obedeço, em protesto contra a falta de tema melhor: a fugacidade do tempo – bem sabemos que a brevidade não é do tempo, mas uma coisa de cada vez. Com efeito, tenho a impressão de que ainda há poucos dias, bem poucos, planejava escrever um texto breve em homenagem a três grandes compositores cujos aniversários de morte se avizinhavam: Chopin (17 de outubro), Schubert (19 de novembro) e Mozart (5 de dezembro). A primeira entre essas datas simplesmente passou sem que eu percebesse; entre a segunda e a última, há não muitos dias, via-me já envolvido com os fatos da vida e da morte dessas três personalidades. Três vidas cujo aspecto em comum, ou seja, sua breve duração, me levava a desejar fazer justiça a esses mestres que souberam usar a seu favor todo o pouco tempo que tiveram. E queria fazer-lhes justiça também em razão de outro ponto de contato: o desamparo em que viveram seus últimos dias. E o que era para ser antes de tudo breve tomou proporções que inviabilizaram sua publicação neste espaço. (Também isso não é a primeira vez que acontece: quando mais desejamos fazer justiça à memória de alguém, vivo ou morto, a pretensão ao esmero, essa presunção, acaba nos forçando a relegar o tributo ao esquecimento. Consola-me pensar que a certos personagens da história, se vivos estivessem, seria indiferente ver seus nomes sob a pátina atroz do esquecimento ou saber que ainda há quem se dedique às suas obras).
Isso posto, retorno a esse aspecto fugidio que, não obstante a maneira como organizamos nossa rotina, apodera-se de todo o tempo que nos é dado e o dilacera em fragmentos que, se observados, deixam entrever o que ninguém ignora: que ele, o tempo, é inexistente, e o que se mostra a nós é um fluir ininterrupto, dividido em dias e noites, em diferentes estações que, à força de observarmos as variações e as constantes sucessões  entre o claro e o escuro, os períodos frios e quentes, parecem apontar, no modo contínuo e impassível como se sucedem, que tudo permanece imutável, exceto nós mesmos. Não seria errado concluir que é sob o signo dessa ordem própria ao que pertence à esfera da natureza e da duração, em seu esvair-se, em seu hibernar e reflorescer, que se inscreve aquilo a que se convencionou chamar nossa existência; e o modo como percebemos essa passagem aponta inelutavelmente, de modo inequívoco, para a nossa própria brevidade. E se acaso nos detivermos um pouco mais no exame desse processo, não demoraremos a perceber que esse intervalo que constitui nossa vida, visto sob um ponto de vista mais amplo - o pouco que nos é permitido ver, ou intuir, além de nós mesmos -, não é mais que uma impressão nossa. Breve e fugidia, como sempre são as impressões. 
Dito isso, interrogo: que proveito trará ao mundo debruçar-nos sobre esse ou aquele assunto; que percebamos ou não que passageiros somos nós; que, por pensarmos, existimos, até prova em contrário; que esse pensamento, registrado ou não, em nada irá alterar a ordem das coisas; que, por mais longos que sejam nossos dias, nossa existência sempre terá sido ínfima? Não obstante isso tudo, bem sabemos que, mesmo que ao mundo tanto faz como tanto fez o termos existido ou não, sempre faremos tudo ao nosso alcance por nós mesmos e pelo bem disso a que se chama humanidade, por gigantesca que se mostre nossa impotência. E que, feitas as contas e apesar das circunstâncias que às vezes nos são desfavoráveis, a vida, breve ou não, nos é tudo – e, ao mesmo tempo, nada...
Um filósofo escreveu certa vez que o inferno são os outros (Sartre: Entre quatro paredes). Por mais que eu tenha me esforçado, nunca concordei com essa máxima, e o mais provável mesmo é que não a tenha compreendido. Tendo em mente o título de uma obra recente de Todorov – A beleza salvará o mundo -, ocorreu-me tirar o verbo do futuro e situá-lo no aqui e agora, ao menos no modo como nos é dado vivenciar essa realidade. Por mais que, segundo Hume, “está na mente de quem a contempla”, aquilo que compreendemos por beleza, ou a fruição desse algo em que se reconhece antes de tudo sua inutilidade, possui a meu ver o dom de responder a cada uma das interrogações acima e, se não justificar, ao menos consolar-nos por cada deficiência não do mundo em que vivemos, mas do mundo que criamos. A beleza salva o mundo, sim, e os outros, em vez de inferno, são o veículo dessa salvação, talvez a única que exista. Ao menos foi isso que encontrei nos versos de Adam Zagajewski, que transcrevo a seguir: “Só na beleza criada/ pelos outros existe consolo,/ na música dos outros e nos poemas dos outros./ Os outros não são o inferno,/ se os virmos bem cedo, com/ suas frontes puras, lavadas pelos sonhos./ É por isso que me pergunto que/ palavra usar, ‘ele’, ou ‘você’. Todo ‘ele’/ é uma traição de um certo ‘você’ mas/ em troca o poema de outra pessoa/ oferece a fidelidade de um diálogo sensato”.
Sei que fugi ao assunto inicialmente proposto, e, como justificativa, não posso sequer dizer que foi sem querer. Porém, caso não seguisse a via que se apresentava, não estaria sendo sincero. E, entre as muitas coisas que já não me espantam mais, estão também os caminhos tantas vezes inexplicados que com frequência tomam o rumo, ou o lugar, de nosso pensamento. Ocorreu-me ainda agora: será que fugi mesmo ao assunto ou o tema do princípio não passava de um pretexto para atingir um objetivo antes insuspeitado? Sinceramente, não sei. De qualquer forma, é tarde para pensar numa resposta.

Salvador Dali: Soft watch at moment of first explosion, 1954

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Emil Cioran: Breviário de Decomposição (1)

Nascido na Romênia em 1911, Emil Cioran, depois de graduar-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste, mudou-se para a França com o objetivo de especializar-se no pensamento de Nietzsche. Jamais concluiu sua tese. Em contrapartida, sua dedicação à escrita e reescrita de sua obra fez com que a crítica o considerasse um dos “maiores prosadores da língua francesa desde Valéry”. A palavra que talvez o defina com maior precisão seja desencanto. Porém, diante da maneira clara e límpida como desenvolve e expõe seu pensamento, nenhuma exatidão significa muito. Comparado a Kierkegaard, Wittgenstein e ao próprio Nietzsche, Cioran muito provavelmente desdenharia dessa tentativa de defini-lo e de enquadrar sua obra dentro de parâmetros estabelecidos. “Um livro que, após haver demolido tudo, não se destrói a si mesmo, exasperou-nos em vão”, diz, em Silogismos da amargura. Seu título mais conhecido continua sendo Breviário de decomposição, publicado na França em 1949. Após ter sido reescrita quatro vezes, a obra recebeu em 1951 o prêmio Rivarol. Cioran morreu em Paris, em 1995. De sua autoria, além dos dois títulos mencionados, a Rocco publicou Exercícios de admiração e História e Utopia. Os trechos a seguir são do Breviário (Rio de Janeiro: Rocco, 2011).
“Quem não conhece o tédio encontra-se ainda na infância do mundo, quando as idades esperavam para nascer; permanece fechado para este tempo fatigado que se sobrevive, que ri de suas dimensões e sucumbe no limiar de seu próprio... porvir, arrastando com ele a matéria, subitamente elevada a um lirismo de negação. O tédio é o eco em nós do tempo que se dilacera..., a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que sustenta – ou inventa – a vida...”.
“No início, pensamos para evadir-nos das coisas; depois, quando fomos longe demais, para perder-nos no remorso de nossa evasão...”.
“Na aspiração nostálgica não se deseja algo palpável, mas uma espécie de calor abstrato, heterogêneo ao tempo e próximo de um pressentimento paradisíaco. Tudo o que não aceita a existência como tal, avizinha-se da teologia. A nostalgia não é mais do que uma teologia sentimental, onde o Absoluto está construído com os elementos do desejo, onde Deus é o Indeterminado elaborado pela languidez”.
“Ninguém pode corrigir a injustiça de Deus e dos homens: todo ato é apenas um caso especial, aparentemente organizado, do caos original. Somos arrastados por um turbilhão que remonta à aurora dos tempos; e se esse turbilhão tomou o aspecto da ordem, é apenas para nos arrastar melhor...”.
“A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em nossa excelência sobre o resto da matéria”.
“Fui, sou ou serei, é questão de gramática e não de existência. O destino – enquanto carnaval temporal – presta-se a ser conjugado, mas despojado de suas máscaras, mostra-se tão imóvel e tão desnudo como um epitáfio”.
“A vida tem dogmas mais imutáveis que a teologia, pois cada existência está ancorada em infalibilidades que fazem empalidecer as elucubrações da demência ou da fé”.
“O homem é o ser dogmático por excelência; e seus dogmas são tanto mais profundos quando não os formula, quando os ignora e os segue”.
Cada um é para si mesmo um dogma supremo; nenhuma teologia protege seu deus como nós protegemos nosso eu; e este eu, se o assediamos com dúvidas e o colocamos em questão, é apenas por uma falsa elegância de nosso orgulho: a causa está ganha de antemão”.
Fotografia: Emil Cioran, por John Foley

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Da impossibilidade de contar uma história

Partindo de fatos que me foram relatados, quis por minha vez dar testemunho de meus antepassados. Consultei lápides e epitáfios, certidões e registros, e ouvi relatos que me levaram a uma quantidade considerável de nomes e datas. Porém, em dado momento, a falta de um nome quebrou a continuidade do que mais tarde poderia vir a ser uma genealogia. Por mais que se tratasse de uma simples denominação, era impossível fazer de conta que esse elo não existia, pois não se tratava de simples palavras. Porque, quando transpostas à realidade, não se pode fingir que aos vocábulos não correspondem respiração, plasma, sangue, terra. Em todo caso, mesmo marcando o nome, a partícula incógnita de um elo maior, através de um ponto de interrogação, pus-me a registrar as diversas possibilidades de sequência de uma ancestralidade. Em determinado momento, como era de se esperar, o encadeamento levou a outro continente, mais precisamente ao solo germânico. Uma travessia que, desde o início, sabia ser inevitável.
A partir desse momento, minhas raízes, objeto inicial de minha pesquisa, passaram a abranger outra geografia, uma outra pátria, e se tornaram também as razões que levaram meus antepassados a deixar sua terra natal e partir em viagem rumo a uma aventura sem precedentes na história de seu povo. Depois de deparar-me com um período de franca industrialização, houve tratados iluministas, um contrato social, a desigualdade entre os homens, antecedido de outro sobre a servidão voluntária, numa cadeia que apenas aumentava à medida que recuava nos anos. E minha investigação, de repente, se tornou a história não apenas dos fatos, mas do pensamento e dos homens que escreveram tais tratados. Não demorou para que eu percebesse que, se continuasse a busca, iria chegar ao ponto em que quase sempre se chega quando se deseja descobrir algo com origem no passado: que a multiplicação de dados, de um instante a outro, torna inviável a demarcação exata que delimita o ponto onde termina uma história e o momento em que, sem saber, já estamos em outra, não prevista, mas cuja existência não podemos mais ignorar.
Percebe-se a partir de então, nessa sucessão de descobertas, a profundeza do tempo, através do qual as personalidades, por serem tantas, quase não diferem do anonimato, e os fatos são tão numerosos que somos forçados, por uma questão de ordem prática, a restringir temas e territórios, se não no que concerne à trajetória, ao menos no que diz respeito à identidade. Sobretudo, percebemos também que o objetivo de nossa busca tornou-se o oposto do que tínhamos em mente quando se começou a procura por respostas, e que o nome desconhecido há muito deixou de ter importância, pois a razão maior de nossa investigação deixou de ser o particular e se tornou o universal. Sim, sempre ele, mesmo que já tenha se tornado lugar-comum. E o território que antes tínhamos a intenção de delimitar tornou-se de uma hora para outra mais vasto que nunca – mesmo que se tenha caminhado em um círculo, não se deixou de percorrer um trajeto. Todavia, por mais amplo e por maior que seja a pretensão, é nesse solo que nos reconhecemos em nosso elemento. Trata-se, como se vê, de uma história impossível de ser contada. E nem poderia ser diferente: a julgar por Emil Cioran, “a fonte de nossos atos reside em uma propensão inconsciente a nos considerar o centro, a razão e o resultado do tempo. Nossos reflexos e nosso orgulho transformam em planeta a parcela de carne e consciência que somos. Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. Mas viver é estar cego em relação às suas próprias dimensões...”.
E é com a consciência das dimensões ínfimas que cabem a cada um de nós, posicionando-nos num limiar que possibilita não mais que uma precária visão do conjunto – a única possível -, podemos examinar apenas alguns de seus aspectos, por meio de fragmentos escolhidos, e que chegam a nós como restos de uma aventura entremeada de grandes momentos, e, embora desse passado não tenhamos mais a grandeza heroica, em seu lugar recebemos uma herança mais preciosa que qualquer título. Assim, revestidos de nossa pequenez, estaremos testemunhando sobre o que temos em comum: o legado de nossos antepassados. E, através de seu usufruto, minoramos nossa insignificância, conscientes de que ao menos nisso todas as diferenças desaparecem, caminhos antes opostos passam a convergir e fazem sua obra maior: tornar-nos parceiros de uma mesma jornada.
Ilustração:
Caspar David Friedrich