quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Sonho de sombra passageira: pequena reflexão sobre o tempo, a verdade e a beleza – outra vez

Lembro de haver me referido, há cerca de um ano atrás, sobre o desejo de escrever sobre os aniversários de morte de três compositores – Chopin, 17 de outubro; Schubert, 19 de novembro; e Mozart, em 5 de dezembro. Fiz longos esboços, ressaltando o fato de não dar tanta importância aos nascimentos, por acreditar que estes sempre se parecem entre si, enquanto que, ao morrer, um artista já percorreu todo o caminho que o fez tornar-se o grande homem que é – ou era, sendo sua morte, única. Passou-se um ano, e eis que me vejo pela segunda vez com essa mesma intenção, mas com as mãos vazias. A necessidade de escrever a seu respeito ainda é a mesma, e o mérito desses grandes mestres tem o tempo a seu favor. Do ano passado, guardo renovada também a gratidão a essas três celebridades, que me propiciaram tantas horas mais ricas e mais felizes, e prometo a mim mesmo voltar a falar deles e de suas obras em momento mais oportuno. Deixo-os para outro dia em função de uma impressão que me acomete às vezes, de tempos em tempos, e que, apesar de me ser já familiar, não possui nome – ao contrário desses males que levam as pessoas ao divã, embora não seja esse o caso. Não se trata de nada que seja exclusividade minha – se o fosse, não escreveria sobre o assunto; outras pessoas que conheço também sentem algo semelhante a um aceleramento na percepção da passagem do tempo, como se este, de um momento a outro, se fizesse ainda mais fugidio do que sempre foi, no seu escoar-se constante. Além disso, há uma sensação algumas vezes incômoda de que o tempo, em alguns períodos específicos, se revela mais abrasivo em sua passagem, além de trazer uma impressão de que os dias são, a cada ano, mais e mais breves, sem que necessariamente tenhamos adquirido algo com sua passagem, seja experiência, seja conhecimento, mesmo que tenhamos o hábito de não deixar passar uma hora sequer em brancas nuvens. Para muitos, trata-se de tema batido, mas não para mim. Sei da existência de várias tentativas de explicar tal impressão, ou fenômeno, mas não é meu objetivo deter-me nelas. Ocorre-me que, em vez de grandes teorias envolvendo o mundo globalizado e o modo como somos bombardeados por informação, ao mesmo tempo em que muitos se cercam de toda espécie de aparelhos a cada hora mais e mais modernos, talvez em parte isso que procuro descrever seja simples amor à vida, e um desejo maior, em comparação a outros momentos, de não vê-la passar de modo tão esquivo. Em seu romance Niels Lyhne, Jens Peter Jacobsen nos diz, através de seu personagem Erik: “(...) sinto que o tempo me foge, as horas, as semanas, os meses, passam por mim sem deixar vestígio, e não consigo fixá-los por meio de nenhuma obra. Não sei se você me compreende, isso tudo é apenas um sentimento meu, pessoal, mas eu preciso que uma obra de minha autoria me faça senhor de uma certa porção de tempo. Compreende? O tempo que gasto em pintar um quadro continua a me pertencer, ou pelo menos deixa sempre alguma coisa, não acaba todo apenas porque passou”.
Arte, beleza, consciência de finitude, sensação de fugacidade do tempo e o desespero por conseguir fixá-lo são alguns dos temas examinados por Edward W. Said em sua obra – inacabada - Estilo tardio. O autor se refere a certas obras que se caracterizam pelo fato de seus autores, “em vez de se acomodar a uma maturidade tranquila e conciliatória, radicalizam o descompasso com a época em que vivem e evidenciam uma relação problemática com a tradição artística em que se inserem”. Essa sensação incômoda a que me refiro talvez guarde certo parentesco às interrogações de Píndaro ao se referir “às criaturas de um dia, o que é qualquer uma delas? O que não é? O homem não é senão o sonho de uma sombra. No entanto, quando surge, como uma dádiva do céu, um lampejo do sol, pousa sobre os homens uma luz radiante e, oh! Uma vida benigna”.
Sendo eu nada mais que sonho de sombra passageira, não tenho maiores ilusões em conseguir dizer alguma coisa que acrescente algo à obra cada uma incomparável, a seu modo, de Chopin, Schubert e Mozart, e, com essa consciência, não empreendo sequer a primeira linha. Pois, sob o jugo dessa impressão referida acima, talvez uma consciência, mais lúcida – ou menos equilibrada - que em outros momentos, que o dia presente pode ser o último – impressão a que não nego a aparência de algo obsessivo, ou mesmo doentio -, busco dar um passo em direção aos objetivos que normalmente temos em vista, mas que, quando buscamos uma definição, as palavras nos fogem. Seria possível referir-se, com algum acerto, a uma nesga de verdade e a um raio de beleza? Serão a verdade e a beleza compatíveis, ou serão como essas substâncias que não se misturam? Quanto à primeira, não há como não lembrar de Nietzsche, para quem “não existem fatos, apenas interpretações”. Creio que o caminho passa por várias etapas sucessivas, como renúncia, humildade, prontidão e entrega, e é certo que não acaba aí.
Quanto à beleza, da mesma forma como acontece com a verdade, as opiniões variam. Não sei se existe assunto em que haja unanimidade de opiniões; quando a questão é gosto, é muito menor a chance de se chegar a um consenso. Em todo caso, vale lembrar Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra”. Nesta área, o que é resposta para alguns consiste em etapa vencida para outros. Tem-se muito trabalho, diga-se, porque muito do que havia foi destruído em outros tempos. O que restou talvez tenha ficado pelo simples fato de ter passado despercebido, ou, segundo o pensamento de Sabina, em A insustentável leveza do ser: “Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda por alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estágio da história da beleza”. Prefiro pensar que ainda há esperanças, embora não aviste nada na linha do horizonte que possa trazer alento. A respeito do que ainda resta, gosto de pensar nesse pouco como algo indefinível, mais ou menos como as palavras de Norman Del Mar: “É prerrogativa da grande arte suscitar emoções sem nome, mas capazes de nos dilacerar”. Por outro lado, há ainda a beleza como elemento próprio da rememoração do tempo passado, num sentimento que funde senso estético com nostalgia. Como exemplo, são bastante eloquentes as palavras de Claudio Magris, em seu texto que prefacia a edição brasileira de Niels Lyhne: “’Mas chorava uma saudade da vida, / muda e sem nome’, diz um poema de Hoffmannstahl, que compara essa saudade à melancolia de quem passa num navio, à noite, diante da cidade natal, vê as ruas e os jardins familiares da infância, vê a si mesmo ainda criança na margem, gostaria de responder a uma luz que o saúda de uma janela mas é levado para longe pelo navio”.
Integrando o vasto universo temático do romance de Jacobsen, encontra-se um trecho que, creio eu, obtém êxito em colocar beleza e verdade lado a lado. Trata-se da descrição de uma pintura de Erik, em que se percebe a necessidade de fazer escolhas, considerando que a cada uma equivale uma infinidade de renúncias: “(...) uma jovem procurava tirar a própria sorte, à moda italiana. Está ajoelhada num lugar onde a terra parda aparece em meio à erva curta; coração, cruz e âncora de prata batida, destacados do seu colar jazem no chão, e ela ajoelhada, os olhos conscienciosamente fechados, cobertos por uma das mãos, enquanto a outra se estende para encontrar a felicidade suprema do amor, ou o amargo sofrimento mitigado pela fé, ou o destino comum de paciência e de esperança. Ainda não ousou tocar o solo. E é tão tímida aquela mão na sombra fria e misteriosa, as faces enrubescem e a boca hesita entre a prece e o pranto. (...) Ah, se soubesses! Felicidade indizível no amor, amargo sofrimento mitigado pela cruz, ou a esperança e a paciência do destino comum?”.
Em praticamente todo guia destinado a aspirantes a escritor, aparece em posição de destaque o fato de o tempo do leitor ser precioso; aconselham-nos, portanto, a sermos breves, se não quisermos ficar no anonimato. Tendo em vista que meu tema hoje é a fugacidade do tempo, creio não poder discordar: sei que, no que depender de minha prolixidade, os leitores passarão longe deste blog. Para encerrar, portanto, além de me desculpar pela extensão do texto, gostaria de acrescentar que não, não creio que a beleza tenha desaparecido por completo. Em todo caso, sou levado a pensar que o belo se oferece mais facilmente e com maior generosidade não apenas por engano, como nas palavras de Sabina, mas quando não temos dúvidas sobre onde procurá-lo, e quando se tem em mente que ele pode ser encontrado às vezes mesmo por acaso – o que faz do encontro algo ainda mais comovente. Em todo caso, sugiro com humildade as páginas imortais de todos os grandes mestres da literatura. E, obviamente, as obras de Chopin, Schubert e Mozart.

sábado, 10 de novembro de 2012

Um ano de "Contemplações"

Quando criei este espaço, tinha em mente apenas de forma um tanto vaga quais eram os meus objetivos primordiais. Confesso que, de início, faltava humildade nos propósitos: era meu desejo abarcar assuntos como livros e literatura, música, filosofia, arte em geral – ou seja, um leque que se revelou vasto demais e que, pela falta de uma maior precisão na abordagem, acabou por tornar obscura a meta inicial, que deveria ser a ênfase na leitura e nos escritores. Posso acrescentar ainda, sobre esse início, outro fato, também relativo a inícios, mas, no caso, aos textos como unidade: sempre que me ponho a escrever algo, é com um sentimento de comoção, em geral por algo lido ou ouvido ou mesmo por algum elemento ainda em germe na ideia e a ser definida na escrita. Essa comoção existe mesmo se o texto em questão acaba permanecendo inacabado, por uma ou outra razão. E creio poder dizer hoje que a intensidade, assim como a experimento, não esteve ausente nessa minha breve jornada, seja nas crônicas – realmente não sei como classificar meus escritos -, seja no todo. Uma comoção com mais perplexidade que eloquência, é verdade, e, por causa disso, também caracterizada pelo tom balbuciante, mais que prolixo em seus esgares, que em conteúdo revela certo parentesco com a mais completa mudez. Não creio estar sendo rígido demais comigo mesmo, mas sincero. Pois, passado pouco mais de um ano, vejo o quanto faz falta um foco mais preciso na escolha e na condução dos assuntos. Creio não ser exagero dizer que, tal como um viajante deslumbrado, deixei-me muitas vezes distrair e fascinar por inúmeros cantares, dos quais me pareceu por bem dar testemunho, e acabei me desviando daquilo que havia tomado como objeto inicial, muito bem resumido por Elias Canetti, que, escrevendo sobre literatura, se referiu a obras “das quais precisamos, de uma outra maneira, certamente, mas não menos que de nosso pão de cada dia, pois seríamos nutridos e sustentados por elas mesmo se nada mais nos restasse, mesmo se nem ao menos soubéssemos o quanto elas nos sustentam, ao mesmo tempo que, em vão, procuram em nossa época por algo que se possa igualar”.
Pois bem: quis dar a conhecer autores, compositores, obras, comentá-los, interpretá-los. Contudo, e talvez esse tenha sido o meu erro, deixei-me conduzir com ânsia talvez exagerada quando procurei tratar de vivê-las, essas obras, e de acomodá-las em minha rotina, ao lado de meus demais afazeres e obrigações. Por outro lado, pergunto-me se a voz daquele que está sob o encanto de determinada melodia, imerso em contemplação, não constituiria talvez um ponto de vista suspeito para descrever tal música, tal canto, tais livros. E, não sabendo viver sem entusiasmo, esse humilde deus interior que habita de forma diferente em cada um de nós, minha voz passou a ser, para mim mesmo, objeto de desconfiança, ou mesmo indigna de crédito, ao menos no que se referia a tais assuntos. Tornou-se necessária então uma pausa, uma tomada de consciência, para buscar lançar sobre as metas uma luz mais precisa, única maneira de distingui-la em meio às sombras. Vem-me à mente a ideia vaga dos peixes, que descobrem a existência da água em que estão mergulhados apenas no momento em que ela lhes falta; de modo semelhante, talvez não sejamos as melhores testemunhas do mundo que nos rodeia.  É verdadeiro o fato de haver comoção nesse deixar levar-se, nessa imersão no elemento poético, na linha melódica; mas, para o leitor, é indispensável que haja objetividade, sob pena de se deixar de saber, de um momento a outro, o que esperar. Por uma série de boas razões, estou muito distante de ver-me como poeta ou escritor; ao examinar o fruto de minha dedicação, vejo antes de tudo o limite, as falhas - sobretudo a presunção na escolha de alguns dos temas - e a grande distância da sonhada simplicidade. Talvez o tempo mude esse meu modo de ver. É nesse ponto, a respeito da necessidade de um norte, e de que esse ponto seja bem definido, que me valho outra vez de Canetti: “O poeta está mais próximo do mundo quando carrega em seu íntimo um caos; no entanto, e este foi o nosso ponto de partida, sente responsabilidade por esse caos – não o aprova, não se sente bem com ele, não se crê importante por ter em si espaço para tanta coisa contraditória e desconexa, mas odeia o caos, e não perde jamais a esperança de dominá-lo em prol dos outros e de si mesmo”. A respeito disso, acrescento: não é necessário ser poeta para ter em si esse estado de aparente desordem: basta ser leitor. Considero-me um sujeito muito feliz pelo privilégio de poder viver em meio a um “caos” de trabalho, livros, animais, música, amigos, letras, textos, e sou muito grato à vida por essa possibilidade. Mesmo que me faça feliz, porém, o caos, seja de que elementos for, é sempre aquela desordem que, de forma completamente diversa daquele universo caótico primordial de que temos uma vaga descrição, se faz de elementos já definidos, mas que, bem ou mal, precisam conter entre si uma certa harmonia, sob pena de esse elemento de instabilidade que às vezes lhe é próprio passar a reger nossos dias, já numa coloração mais obscura. As palavras de ordem parecem ser clareza de objetivos e ajuste de foco – não em mim mesmo, mas nas leituras e nos autores. Mesmo que o eco àquilo que se escreve não seja outro senão o mais absoluto silêncio; trata-se, mais do que nunca, da típica questão de satisfazer antes de tudo a si mesmo.
Há alguns meses, escrevi sobre a maneira como Michelangelo fazia suas esculturas, comparando em seguida seu método à formação de uma voz, através da retirada de tudo que não era forma, sucessivamente, até que não restasse senão a escultura. Ignoro de que maneira nasce a voz que ouvimos ao ler uma obra literária; ignoro também se meus textos, salvo as falhas, possuem qualquer aspecto característico, no sentido de timbre, pois minha maneira de escrever é antes de tudo instintiva. E é dessa intuição que me vem a ideia de que elaboramos nossa tessitura em primeiro lugar lendo, lendo muito, e relendo, até que uma grande multiplicidade de vozes tenha ressonância em nosso silêncio interior. Posso estar errado, mas creio que parte do processo se resuma em buscar conferir um estado de harmonia a essas vozes, embora não lhes retirando de todo os tons dissonantes; e creio que isso se faz sobretudo ouvindo-se a si mesmo. O arranjo das palavras que se elevam desse coro, de seus desajustes e de seu estado inicialmente confuso, comporão nossas linhas. A respeito disso, talvez seja pertinente recordar aqui algumas palavras de Danilo Kis: “Eles jogaram os livros no chão, pisoteando-os e rasgando-os diante de mim. (...) E eu disse que não os rasgassem, pois uma multidão de livros nunca é perigosa, mas um livro só é perigoso; e eu disse que não os rasgassem, pois a leitura de inúmeros livros leva à sabedoria e a leitura de um só, à ignorância armada de loucura e ódio”. Não creio poder dizer a meu respeito que a leitura me tenha trazido alguma sabedoria; não guardo mais esperanças quanto a isso. Pois, se o próprio Montaigne fala da ilusão que vez ou outra temos de que, com a idade, nos tornaremos mais maduros, vemos essa ideia ir por água abaixo quando a idade vem por si, com o tempo, e percebemos que ela, fora os anos a mais, nada nos traz em acréscimo. Segundo o filósofo francês, por mais que estar ciente disso seja um pequeno princípio de conhecimento, não é coisa que valha muito. Contudo, talvez seja suficiente para que não nos enganemos. Em todo caso, e lembrando a maneira como Comte-Sponville encara a esperança, inicio este segundo ano em estado de consciente desespero em relação a melhorar em algo, isso no sentido de que o crescimento, como se sabe, só vem através de muito esforço. E disso não tenho medo. Tampouco a quase inexistência de eco - salvo as exceções que fazem desta uma regra menos penosa - é motivo para maiores desânimos. Pois, por menor que seja nossa contribuição, caso ela seja honesta e sincera, teremos, ao final, um roteiro escrito de nossa jornada, mesmo que esta seja apenas mais uma entre muitos milhões – e mesmo que esse roteiro exista apenas para uso próprio, em função da precária capacidade de nossa sempre ineficiente memória.
Caspar David Friedrich: “Moonrise over the Sea”