domingo, 16 de setembro de 2012

Coisas que perdemos no caminho

Existem vezes em que o espaço em branco representa um desafio maior do que realmente o é nas outras vezes, e a tarefa de escrever, na maior parte das vezes uma atividade tranquila, apesar dos percalços e dos eventuais silêncios, se torna um verdadeiro desafio. Isto acontece, entre outros fatores, pelo fato de alguns assuntos representarem uma verdadeira prova à nossa capacidade de exposição e de síntese. E quando nos propomos escrever sobre os rumos incertos do mundo atual e seus descaminhos, há que se ter cuidado com as palavras. Em sua obra A resistência, o escritor argentino Ernesto Sabato traça um preocupante painel de nossa realidade; ao concluir a leitura desses textos, verifica-se que o adjetivo “sombrio”, usado para descrevê-los no texto da contracapa, nada tem de inadequado, tendo em vista que o qualificativo define muito bem os dias atuais, que estão longe de constituir um cenário pacífico. Talvez uma das melhores maneiras de descrever um determinado período seja através da enumeração de coisas que perdemos ao longo do tempo. Ao iniciar esse inventário, a nossa primeira descoberta é que, ao mesmo tempo em que nos cercamos de toda espécie de artefatos de utilidade duvidosa, por outro lado nos privamos de coisas essenciais. Podemos citar um trecho em que Sabato afirma que um mundo sem espírito não passa de uma terra devastada, ou, resumindo as suas palavras em outros termos, trata-se de uma paisagem de grande desordem, estado estabelecido sem que algo de maior gravidade tenha necessariamente acontecido de uma hora para outra. Se minha leitura foi correta, a ameaça se encontra justamente nessa forma sutil como o caos se instaura. De modo mais específico, segundo o escritor, “o momento de maior empobrecimento de uma cultura é esse em que o mito começa popularmente a ser definido como uma falsidade”. Se concordarmos com Luc Ferry, para quem a mitologia ocupa o elevado grau de pré-história da filosofia, percebemos a real gravidade da situação: com efeito, que tipo de pensamento pode surgir de uma sociedade desprovida de todo o arsenal do imaginário, lembrando uma realidade da qual até mesmo os relatos mais essenciais desapareceram? Pensando no papel exercido tanto pelo imaginário como pela mitologia, podemos nos interrogar, juntamente com Sabato: “E acaso são explicáveis os grandes valores inerentes à condição humana, como a beleza, a verdade, a solidariedade ou a coragem? O mito, assim como a arte, exprime um tipo de realidade da única forma como ela pode ser expressa”, escreve, salientando a inutilidade de toda tentativa de racionalização da mitologia: “Defronte a questões inefáveis, é infrutífero tentar aproximar-se por meio de definições”.
Deparei-me com essas palavras do autor de Sobre heróis e tumbas de uma daquelas maneiras que nunca sei se posso considerar casuais ou aleatórias. De qualquer maneira, casualmente ou não, estava há poucos dias lendo um documento que me permitiu ter uma ideia das reais proporções de nossas perdas, não apenas em termos de mitologia, mas em relação a um contato mais vívido com o mundo natural e à convivência pacífica com a natureza. Da maior parte das coisas que perdemos só nos damos conta muito tempo depois, quando lançamos um olhar em retrospecto. Em 1852, o governo dos Estados Unidos fez um inquérito sobre a aquisição de terras tribais para destiná-las a imigrantes que chegavam ao país. Em resposta, o chefe Seattle escreveu uma carta – hoje bastante conhecida, embora não respeitada como merece - que tenho na conta de uma declaração de princípios e de ética poucas vezes superada. A seguir, transcrevo alguns trechos: “O presidente, em Washington, informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu, ou a terra? A ideia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte da terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e na experiência do meu povo. Conhecemos a seiva que circula nas árvores, como conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos parte da terra, e ela é parte de nós. (...) Se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do meu pai. (...) Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara. O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro. O vento também dá às nossas crianças o espírito da vida. Assim, se lhes vendermos a terra, vocês deverão mantê-la à parte e sagrada, como um lugar onde o homem possa ir apreciar o vento, adocicado pelas flores da campina. (...) O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. (...) Amamos esta terra como o recém-nascido ama as batidas do coração da mãe. Assim, se lhes vendermos nossa terra, amem-na como a temos amado. Cuidem dela como temos cuidado. Gravem em suas mentes a memória da terra tal como estiver quando a receberam. Preservem a terra para todas as crianças e amem-na, como Deus nos ama a todos”.


Como se percebe, a carta não trata de apenas um assunto, mas de uma infinidade de valores de que hoje, em razão de nossa memória de curto alcance, entre tantos outros fatores, nos vemos privados, de uma maneira que me recuso a considerar irreversível. Em termos descritivos, talvez não seja tão difícil definir a sociedade atual. Vejo a história da pintura como uma coleção de imagens cuja eloquência não se perdeu com o passar dos séculos. Antes pelo contrário: nela estão refletidas várias etapas pelas quais passamos, estejam elas no passado ou no presente, com alcance para além do futuro. Nesse sentido, creio que uma das imagens mais condizentes com nosso tempo é o “Narciso”, em que Michelangelo Merisi da Caravaggio retrata o jovem que, segundo a lenda grega, apaixona-se pelo próprio reflexo na água, paixão que o leva a afogar-se. (Este é apenas um entre tantos exemplos de como os mitos podem iluminar fenômenos humanos). A alusão não podia ser mais clara nem mais atual: tão entretidas em contemplar a própria face, as pessoas perderam a capacidade de se relacionar com o mundo. Não se enxerga o outro porque, além de os olhares terem se desviado em direção ao espelho, perdeu-se a empatia. E o mais irônico disso, e também o mais grave, é que os olhos estão voltados apenas para a superfície, incapazes de olhar para dentro de si, ou melhor, para seu interior. Em parte, talvez isso aconteça porque o interior não contém coisa alguma. Ignoro se é possível a alguém aperceber-se do próprio vazio sem uma interferência externa. Em todo caso, é sempre bom lembrar que muitas coisas brotaram de uma consciência do vazio – desde que essa consciência seja sincera. Em sua obra O poder do mito, Joseph Campbell fala do modo como o nosso relacionamento com o mundo exterior pode variar de acordo com as palavras que usamos: “Os índios se dirigiam a todo ser vivente como ‘vós’ – as árvores, as pedras, tudo. Você também pode se dirigir a qualquer coisa como ‘vós’, e se o fizer sentirá a mudança na própria psicologia. O ego que vê um ‘vós’ não é o mesmo que vê uma ‘coisa’. E quando se entra em guerra com outro povo, o objetivo da imprensa é transformar esse povo em ‘coisas’”. Creio que seja assim mesmo. A respeito disso, se passássemos a dedicar aos assuntos alheios um décimo do empenho e da atenção que costumamos dedicar aos nossos próprios interesses, não teríamos uma sociedade tão individualizada. Utopia? Talvez. Mas prefiro pensar que, ao menos em alguns lugares, longe ou perto, compreensão e lealdade ainda não sejam coisas de um passado mítico e que a ética ainda respira, não obstante seu estado de fragilidade.
Depois de falar da lucidez de Ernesto Sabato, da terra vista pelos olhos dos índios, de Narciso e de uma nova maneira de ver a natureza e a sociedade, gostaria de evocar uma outra imagem como complemento à anterior. Uma imagem que não signifique resignação, mas aceitação do fato de que o mundo está passando por dificuldades e que precisamos colocar-nos em atividade para recuperar o que foi perdido. Existe uma fotografia que retrata a biblioteca da Holland House, em Kensington, atingida por um bombardeio em 22 de outubro de 1940. O que se vê, tendo como fundo uma realidade destroçada, são as estantes de livros em meio à destruição, examinados por três homens. Quem os descreve é Alberto Manguel, em sua obra Uma história da leitura: “Eles não estão dando as costas para a guerra, nem ignorando a destruição. Não estão escolhendo os livros em vez da vida lá fora. Estão tentando persistir contra as adversidades óbvias; estão afirmando um direito comum de perguntar; estão tentando encontrar, uma vez mais - entre as ruínas, no reconhecimento surpreendente que a leitura às vezes concede – uma compreensão”. Não gosto da expressão “indigência cultural”, pois sempre me pareceu elitista e um tanto exagerada. Mas, ao ver tal imagem, em contraposição ao mundo de hoje, é impossível deixar de me perguntar se haveria, atualmente, numa atmosfera constituída por destroços, alguém que, depois de um bombardeio e em meio ao caos, se pusesse a ler os títulos nas lombadas. É difícil responder. Gosto de pensar nas futuras gerações com certa dose de esperança e na possibilidade de um tempo melhor após algumas décadas. Em todo caso, não creio poder viver para ver esse momento em que uma nova escala de valores será inaugurada. Mas talvez eu esteja enganado. Queria imensamente que assim fosse: um engano, nada mais que isso, e que sim, deve-se dar um voto de confiança à humanidade. Até prova em contrário.
(Tendo em vista o assunto, não sei se respondi à altura à prova do espaço em branco. Isso é algo que apenas o leitor saberá dizer. Em todo caso, o som da chuva, lá fora, é sussurro que me diz, ao pé do ouvido, que, antes de pensar em responder, devo esperar a madrugada passar).
Caravaggio: “Narciso”
Holland House Library, Kensington, outubro de 1940