quinta-feira, 31 de maio de 2012

Algumas palavras sobre a ausência e o silêncio


Creio não terem passado despercebidos aos leitores deste blog o tom reticente dos últimos textos e, por fim, o abandono em que agora se encontra este espaço. Justamente por serem poucos, esses leitores não são menos que especiais, preciosos, e me pareceu incorreto deixá-los sem uma palavra de esclarecimento sobre tal silêncio. A eles, espero que as palavras a seguir sirvam ao mesmo tempo para explicar e para agradecer pela atenção.
No último mês, estive em viagem a terras estrangeiras, onde tive a rara oportunidade de visitar lugares históricos e museus, jardins e palácios. Nesse período, aquela característica que Balzac usava para definir a idade de um homem, o entusiasmo, algo que creio sempre ter tido de sobra, foi em mim reavivada, e eu, de volta à minha terra, busquei condições para satisfazer a necessidade quase física de conhecimento. Falo aqui de entusiasmo no sentido grego da palavra: “estar possuído por um deus”, e isso se refere ao interesse vital que nos mantém vinculados à realidade mais imediata, bem como à curiosidade, ou necessidade premente, como disse acima, de buscar sanar a própria ignorância, de uma ou de outra maneira. E então entreguei-me mais do que nunca à literatura, à música, e dos encantos e da felicidade que tais artes, além da filosofia, costumam proporcionar, apenas poucos, muito poucos podem compreender.
Das viagens, leituras e ensaios de música, as lições aprendidas se somaram a outro fator que só pude perceber aos poucos, observando a vida e os costumes ao alcance de meus olhos; algo cuja existência eu nunca ignorei, mas que, em razão de certos contrastes, as circunstâncias me revelaram ser na verdade um grande deserto. Lembrei de uma frase de Einstein que, até pouco tempo atrás, me parecia um tanto presunçosa: a sentença em que ele afirma existirem apenas duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Hoje percebo que a presunção estava em mim, por pensar que talvez o grande físico houvesse exagerado. (E hoje me questiono acerca da natureza da estupidez. Interrogo-me, por exemplo, se se trata de algo de nascença, de estado gerado por falta de oportunidades ou se simplesmente é opção de vida). E, ao mesmo tempo em que me admirava diante da magnitude de algumas das grandes criações do gênio humano, sob outro aspecto inquietava-me com o que alguém, muito apropriadamente, chamou de “deserto de almas”; um deserto que teve sobre mim um efeito muito maior do que as exceções, que, felizmente, não são poucas. Diante disso, optei pelo silêncio, mesmo porque não havia outra escolha.
Não é segredo para ninguém que a vida muitas vezes nos reserva circunstâncias que nos levam a calar. Para quem está habituado a fazer da escrita uma das razões de viver, o silêncio, em tais momentos, é duplo: ao mesmo tempo em que nós mesmos, por questões racionais, optamos por nada dizer, a voz que literalmente nos obriga a enfrentar quase todo dia o espaço em branco, outrora plena de ardor, parece por sua vez ausentar-se, como se nunca tivesse existido. Por experiência própria, sei que esses bloqueios são temporários e que acontecem de tempos em tempos. Talvez seja mera impressão, mas me parece que tais períodos sempre contribuem para um aprimoramento, mesmo que ínfimo ou imperceptível em seu resultado final: as palavras.
Não foram poucas as tentativas de romper esse silêncio. Todavia, tudo que busquei escrever trazia a marca da distração, da ausência, de quem não está realmente presente naquilo que redige. Tenho para mim que os meus poucos leitores merecem algo muito melhor. E quando o nível dos textos está aquém dos meus próprios níveis de exigência, o mais adequado mesmo é prolongar o silêncio. É necessário ressaltar que, ao menos na minha concepção, isso não significa inatividade. Antes pelo contrário: quer dizer estudo, leituras, aprofundamento, esforço. Isso sem falar na busca incessante pelo aperfeiçoamento, que possivelmente não passa de uma quimera. Porém, é sabido que todos precisamos de um pouco de ficção; e, por outro lado, ao menos o desejo de melhorar, se insatisfeito, não nos traz prejuízo algum.
Dado o caráter limitado de todas as nossas experiências, tudo, para o bem ou para o mal, tem um fim. E, como em certos antídotos produzidos a partir da própria substância que lhe é antagônica, creio ter encontrado as primeiras palavras deste texto na própria inexistência de qualquer sinal que prenunciasse algo parecido a um pensamento mais digno de ser partilhado, e que me levou a buscar alento na negação. É de Cioran a seguinte frase: “Tudo pode ser sufocado no homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, assim como ao desaparecimento da religião sobre a terra”. Qualquer que seja o nome desse Absoluto, muitas vezes ele é tudo que nos resta – o que não significa pouco. A aceitação desse fato pode se dar por diferentes vias, algumas dolorosas, outras extasiantes, e, algumas vezes, simplesmente banais, como as coisas mais triviais do cotidiano.
Ignoro se as linhas acima cumpriram o objetivo de explicar as razões do silêncio. Tampouco sei dizer se o presente texto é o fim de um bloqueio, se é um recomeço ou uma retomada do ponto onde parei. Talvez o mais adequado seja vê-lo como um novo ponto de partida; daqueles pontos dos quais saímos cientes da inexistência de linha de chegada mais específica, nos quais nos movemos sem saber se percorremos um espaço horizontal, vertical ou circular. Em todo caso, seja ele o que for – um ponto luminoso entre um silêncio e outro -, não esqueçamos do essencial: lembrar que, seja qual for a natureza de nosso pensamento, jamais conseguiremos nos distanciar muito  da dúvida, causa de tantos mistérios – os quais, por sua vez, talvez sejam a origem maior do fascínio de tanta coisa que está sempre ali, ao nosso redor. E que às vezes pedem apenas um simples olhar.
Por enquanto, era isso o que eu tinha a dizer. Peço aos que me leem perdão pelo tom confessional, mas em alguns momentos ele se torna necessário. Agradeço pela compreensão e, de resto, até breve.

Caspar David Friedrich: Viandante sobre mar de nevoeiro, 1818

sábado, 5 de maio de 2012

Das escolhas que fazemos - digressões

No momento de iniciar este texto, deparo-me com vários inícios possíveis. Sei porém que, entre essas possibilidades, apenas uma é a correta: como num jogo. Caso eu escolha a via errada, o futuro mais provável destas linhas é o esquecimento, destino frequente de muitos outros começos que, a despeito de terem parecido em princípio as palavras certas, não conduziram a coisa alguma além do vazio da obviedade. Desde muito tempo – talvez desde uma infância precocemente consciente de algumas coisas - convivo com essa necessidade incontornável, ou responsabilidade, de fazer as escolhas certas, na verdade desde muito antes que o escrever passou a fazer parte de minha rotina – ou seja, desde outros inícios, esses mais prementes e sem muitas possibilidades de escolha. Todavia, apenas hoje me ocorreu mencionar esse detalhe dos bastidores porque, casualmente ou não, ele vem ao encontro do meu tema de hoje: uma sensação estranha, muito difícil de definir, que algumas vezes acompanha a forma como atendemos aos chamados da vida, e a própria possibilidade de escolhermos entre atender ou não a esses chamados. A vida entre as palavras e as letras, com talento ou não, é uma existência à qual só podemos nos entregar por amor ao ofício, e, ao contrário do que muitos pensam, ela nos reserva, além de eventuais dificuldades, surpresas não raro fascinantes, que nos surgem das mais diversas formas, e que, além de serem momentos de uma enorme felicidade, nos dizem como que distraidamente, antes de voltarem ao mundo do esquecimento, de onde saíram por uma questão de poucos momentos, que sim, tomamos a decisão certa. Saber se o resultado é bom ou não torna-se questão secundária. Essas surpresas podem vir na forma de uma ideia à qual procuramos em vão, por dias sucessivos, uma maneira de revestir com as palavras mais adequadas, não encontrando, todavia, a despeito dos esforços nesse sentido, uma forma que satisfaça ao nosso senso de exigência; até que chega o momento, depois de já termos desistido tanto da busca como da ideia, em que ela nos surge por um desses dois caminhos: ou de uma consciência repentina, um lampejo de poucos segundos num dos momentos mais comuns do nosso cotidiano, ou ainda reproduzida da forma mais simples possível, através das palavras de um grande escritor. (A simplicidade, a ausência de esforço, a concisão, são essas as eternas marcas que revelam o abismo entre os grandes escritores e nós, simples e mortais, embora constantes, amontoadores de palavras. “Que ninguém se engane”, escreveu Clarice, a inesquecível, em A hora da estrela: “só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”.
Um desses pensamentos a que busquei em vão dar forma, na verdade apenas uma noção vaga, não obstante revestida de certa perplexidade, surgiu, certo dia, em algumas linhas de Jens Peter Jacobsen (escritor dinamarquês que, assim como Ibsen e Strindberg, me parece sempre subestimado e, infelizmente, assim como estes, muito pouco lido). Com palavras na aparência quase banais, escreveu ele que existem pessoas que vivem como se viver fosse a coisa mais natural do mundo. Trata-se de uma afirmação simples, mas que ao mesmo tempo me enche de espanto, especialmente porque se trata de uma verdade que pode ser constatada facilmente dia após dia, observando e comparando a nossa vida com a de outros viventes. Para muitos, viver é coisa que se faz com uma destreza toda peculiar, uma naturalidade intrínseca, que me leva a concluir que tal leveza é coisa para poucos eleitos, além de nos incutir a semente da dúvida: o que precisamos fazer para atingir tal estado de intangibilidade, de despreocupação daqueles cujo lema parece ser aquele antigo clichê segundo o qual “a vida é muito simples; nós é que a complicamos”? Quanto mais me interrogo, parece-me, mais distante me encontro de uma resposta que, começo a desconfiar, simplesmente não existe, embora em nada me agrade a ideia de render-me ao simplismo de certas ideias (“as coisas são como são”, entre outras). E não posso deixar de comparar o modo como tais seres conduzem suas vidas com a sucessão de afazeres, entre lazer e trabalho, além de outras atividades, que compõem a minha rotina. Parte dessas tarefas são ditadas pelas leis mais imediatas da vida, como o trabalho e tudo a ele relacionado. Contudo, como se trabalha tendo em vista a qualidade das horas ociosas, outras atividades vão se somando, sobrepondo-se umas às outras, gradualmente, entre convites de que não se pode declinar, além de encargos que aceitamos sem hesitar, tendo em vista, entre outros fatores, nossos princípios éticos mais elementares. Isso sem esquecer que a vida tem também seu lado estético. E assim acabamos nos comprometendo com a música, em ensaios para apresentações, ou com a escrita de roteiros para espetáculos. Enquanto procuramos nos desincumbir desses compromissos, os livros encomendados, sempre em quantidade maior em comparação aos poucos a que realmente podemos nos dedicar, continuam chegando, em caixas que já vêm se avolumando, empoeiradas, há anos nas estantes, onde permanecem à espera dos momentos, a cada dia mais breves, em que podemos nos dedicar a eles com toda a atenção e o cuidado que seus autores merecem. Tão vital quanto a leitura, há a necessidade quase física de escrever. Soma-se a isso o pacote da viagem com que tanto sonhamos, que pagamos com certo sacrifício e que, quando se aproxima, a despeito de ter sido planejada com meses de antecedência, parece vir em momento impróprio: como poderemos nos ausentar por tantos dias, deixando todo o resto em suspenso? E é nesse estado de total imersão nas obrigações e dúvidas sem possibilidade de resposta que surgem lembranças que talvez não passem de uma impressão errônea que o transcorrer do tempo muitas vezes confere ao passado: uma aparência de tranquilidade de dias em que nada havia de urgência ou de pressa que fosse. Um tempo que talvez nem sequer tenha existido, mas cuja lembrança, talvez não mais que um equívoco, nos traz a ideia de um fluir constante, calmo e, mais do que tudo, em estado de paz absoluta.
Ignoro se existem amálgamas perfeitos; embora se produzam em um processo natural, ao menos na aparência, existem conjunções, encontros de circunstâncias e de elementos, que me remetem mais uma vez a conceitos em que me detive não faz muito, a saber, de identidade. Na verdade, este talvez integre o vasto espectro dos assuntos que, quanto mais pensamos a respeito, mais nos afastamos da verdade – que talvez seja algo muito mais simples do que inicialmente suspeitamos. Entretanto, há uma interrogação que, por mais difícil que seja encontrar as palavras, não posso deixar de ao menos tentar verbalizar. No caso, a dúvida vai um pouco além da definição segundo a qual somos o que fazemos. Pergunto-me se acaso não se confere importância exagerada ao resultado de nossos esforços, em detrimento das circunstâncias que nos permitiram a realização do que nos propusemos fazer, somadas a algo inescapável: que o tempo que levamos na consecução das tarefas, na defesa de ideais, na realização de sonhos, constitui um elemento, esse sim, vital de nossa personalidade, uma vez que a escolha de como vivê-lo foi, casual ou não, deliberação exclusivamente nossa. Talvez em vários aspectos, não passemos disso: um tempo determinado que, somado, é nossa existência e, ao mesmo tempo, parte essencial de nós mesmos. Trata-se de uma noção que, ao mesmo tempo em que parece estranha, sugere também obviedade, e até uma grande dose de ingenuidade, e que talvez não passe de uma intepretação equivocada dos dias e das palavras do já citado Jacobsen, que se refere à existência do indivíduo como “aquela contínua caça de si mesmo, espiando astutamente as próprias pegadas (...) num eterno andar em círculo; aquele aparente mergulho no rio da vida, mantendo-se no entanto sentado, lançando o anzol à espera de pescar a si mesmo sob sabe-se lá qual estranho disfarce”. Assim como o tempo é fugaz e a vida, intangível, a noção de si mesmo é incerta e fugidia.  E o Eu, além de tudo, uma ilusão. Uma ilusão a cuja construção e manutenção nos dedicamos cada dia de nossa vida. Tal como os amálgamas perfeitos, pergunto-me se existem interpretações errôneas: é Ricardo Piglia quem defende os maus leitores, e, nesse caso, sou fruto acidental da busca por sanar minha própria ignorância. Por falar nisso, o conjunto das linhas acima me leva a crer que, na escolha entre os começos possíveis, um erro conduziu ao outro. Para encerrar esse ciclo de vias tortas, concluo aqui estas palavras, com a plena consciência de um aumento considerável na minha já significativa quantidade de questões não respondidas. E esperar que o tempo traga alguma resposta seria confiar demais, não no tempo, que de nada tem culpa, mas sim em mim mesmo, em vez de crer, isso sim, na incapacidade nossa de viver com alguma certeza, uma ao menos que seja.