sábado, 8 de dezembro de 2012

J. M. Coetzee: A vida dos animais

Ao escrever para este espaço, devido à minha convivência com os livros, acontece com certa frequência de acabar abordando de maneira repetida os mesmos assuntos. A repetição, literalmente, não é novidade alguma. Não vejo, seja no dia a dia, seja na literatura ou na filosofia, hierarquia quanto a temas; creio que tudo que se refere à existência acaba fatalmente por ter sua importância, e se às vezes nos esquecemos do que na verdade, ao menos do ponto de vista ético, deveria vir em primeiro lugar, é por uma questão que depõe contra nós, humanos, que nos consideramos os donos e ao mesmo tempo o centro do planeta. Muitos desses temas são espinhosos e, não raro, chega a ser arriscado abordá-los, por constituírem um ponto nevrálgico de intensos debates, sem que se chegue jamais a um consenso ou a qualquer coisa que signifique concordância entre as partes. Mesmo agora, empreendo este texto com certo receio.
Faz muito tempo que planejava escrever sobre algumas questões referentes aos animais. Houve uma época em que, como aspirante a escritor, adorava escrever contos sobre gatos, cachorros, galinhas ou mesmo um pato. Eram histórias reais, que agora jazem no devido – e merecido - esquecimento. A razão para preferir os animais como personagens reside em algo que dificilmente alguém poderá contestar: pelo simples fato de encontrar neles uma inocência que dificilmente encontraria numa criatura humana. Dizem as escrituras que Deus, ao criar o mundo, concedeu a Adão o domínio sobre a natureza, incluindo-se aí as demais criaturas; creio que nada pode haver de mais conveniente, para uma civilização desde o início antropocêntrica, receber do próprio criador licença para dispor da natureza como bem entender. O que me incomoda nisso não é tanto a presunção; incomoda-me mais a gigantesca submissão em que, nesse arranjo, ficam os animais, criados e entregues a nós como se fôssemos uma espécie muito particular de divindades.
Faz anos que li a obra A vida dos animais, de J. M. Coetzee. Não posso dizer que foi um despertar, porque desde sempre tive animais de estimação e considerava-me sensível, digamos, aos seus sentimentos. Em todo caso, depois da leitura dessa obra, com a constante lembrança de algumas passagens, até hoje guardo dificuldade em uma coisa que antes fazia sem sequer um mínimo de questionamento: a alimentação. Para apresentar seu tema, o escritor usa não o ensaio, como seria de supor, mas a narrativa; quem faz as conferências é um alter-ego – não sei se pode ser assim considerada - do autor, a escritora Elizabeth Costello. A obra narra a maneira um tanto atrapalhada como a personagem defende seu tema, fazendo-se porta-voz dos animais e referindo-se às granjas e aos matadouros como uma indústria de morte. Não seria correto dizer que, ao fazer um paralelo com o Holocausto, ela está minimizando a gravidade dos campos de extermínio; ela apenas quer dizer que essa carnificina, tendo agora como vítima os animais, continua a ocorrer em locais bem perto de nós, em uma forma legalizada, sem que nos importemos um mínimo que seja, com a comodidade de receber todos os dias, no conforto de nossas casas, de nossas mesas, “o suco de feridas mortais”, como costuma dizer, citando Plutarco. Interrogada sobre o que pretende com suas manifestações e, particularmente, com o abster-se de comer carne, ela responde simplesmente que deseja salvar sua alma.
Convivendo desde sempre com animais – gatos, cachorros -, posso dizer que tenho uma noção do funcionamento da cadeia alimentar. O que me levou a abordar esse assunto hoje foi uma cena que já se repetiu inúmeras vezes, mas que por um momento, devido a uma razão especial, me levou a lembrar da personagem de Coetzee: na tentativa de salvar a vida de um pardal, tirado da boca de um dos meus felinos, testemunhei a agonia do pequeno pássaro – um filhote – e sua luta pela vida, debatendo-se em minhas mãos em movimentos desesperados, até que, exaurido, foi imobilizado por uma força superior. Os carnívoros de plantão possivelmente dirão que superestimo um acontecimento que se repete milhares e milhares de vezes e que, apenas pelo fato de ter sido presenciado, causou em mim aquela piedade que os seres humanos, para se sentirem superiores, gostam às vezes de sentir. A esses eu respondo que não se trata disso. Na verdade, lembrei uma passagem em que Costello conta um episódio da infância de Albert Camus, que, horrorizado, viu sua avó dar cabo de uma galinha, presenciando a desesperada luta do animal pela vida. Décadas depois, Camus escreveria um texto que seria vital para a abolição da pena de morte na França. É nesse ponto que a personagem questiona seus ouvintes, desafiando qualquer um a dizer que a galinha não falou. De minha parte, responderia que existem formas de linguagem muito mais eloquentes que as nossas muitas vezes anódinas palavras: a luta pela vida e o desespero diante da morte são apenas dois entre inúmeros dialetos, que se revelam também na confiança com que algumas espécies, como gatos e cachorros, especialmente, se abandonam a nós, em total confiança. Gaston Bachelard chega a ser comovente quando fala, em A poética do espaço, do grau de confiança cósmica que um pequeno pássaro deposita no mundo ao construir seu ninho – uma confiança de que recebemos repetidos exemplos todos os dias.
Os rituais de sacrifício são um capítulo árido e longo na história da humanidade e, ao mesmo tempo, um adendo revestido de toda a naturalidade do mundo quando o assunto é a história das religiões. Há séculos atrás, havia toda uma mitologia por trás de tais práticas, uma forma de legitimação, talvez. Posso estar errado quanto a um aspecto, e gostaria imensamente que assim fosse, mas ao mesmo tempo em que vejo a história da humanidade, vejo também o triste capítulo de seu empobrecimento em valores espirituais, a despeito de o número de religiões não parar de crescer. Em relação aos animais, o que se perdeu foi a parte mitológica, permanecendo apenas a carnificina. Em sua obra, Coetzee, através de Costello, interroga as reais diferenças entre matar um animal e matar um ser humano; o simples fato de um ser racional e o outro não poderia ser uma maneira de a razão colocar a si própria numa espécie de trono: “Deus é um deus de razão. O fato de que graças à razão se possa chegar a compreender as leis que regem o universo demonstra que a razão e o universo têm a mesma essência. E o fato de que os animais, não tendo razão, não possam compreender o universo mas devam limitar-se a obedecer cegamente suas leis, demonstra que, diferentemente do homem, eles fazem parte dele mas não participam de seu ser: demonstra que o homem é como Deus e os animais, como coisas”.  
É possível que alguém, ao ler este texto, me perguntasse, diante de tais considerações, o que mais exatamente pretendo com tais palavras. Não poderia responder, como Elizabeth Costello, que tenho em vista a salvação de minha alma. Tampouco se trata de escrever para desabafar e para amanhã, no almoço, depois de “ter feito minha parte”, poder comer em paz e sem razões para culpa. Também não é esse o caso, pois a culpa é algo que se carrega, e não apenas se sente como uma dor de cabeça passageira. Minha intenção é apenas dizer que precisamos de um pouco mais de reflexão quanto ao modo desenfreado como, digamos, obedecemos a Deus ao exercer nosso domínio sobre o mundo; lembrar que não somos os únicos a habitá-lo. E ter sempre em mente esta breve reflexão de Claudio Magris: “Mas mesmo quando a trompa de Fidélio ressoasse, a humanidade liberada devia recordar-se, no último andar do arranha-céu onde morasse, de todos os humilhados e dolorosos andares inferiores que sustentam, como escrevia Horkheimer, aquele andar superior. No subsolo mais abaixo, sobre o qual se apoia todo o edifício que lá em cima oferece um concerto de Mozart ou um quadro de Rembrandt, mora o sofrimento animal, corre o sangue do matadouro”.








quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Sonho de sombra passageira: pequena reflexão sobre o tempo, a verdade e a beleza – outra vez

Lembro de haver me referido, há cerca de um ano atrás, sobre o desejo de escrever sobre os aniversários de morte de três compositores – Chopin, 17 de outubro; Schubert, 19 de novembro; e Mozart, em 5 de dezembro. Fiz longos esboços, ressaltando o fato de não dar tanta importância aos nascimentos, por acreditar que estes sempre se parecem entre si, enquanto que, ao morrer, um artista já percorreu todo o caminho que o fez tornar-se o grande homem que é – ou era, sendo sua morte, única. Passou-se um ano, e eis que me vejo pela segunda vez com essa mesma intenção, mas com as mãos vazias. A necessidade de escrever a seu respeito ainda é a mesma, e o mérito desses grandes mestres tem o tempo a seu favor. Do ano passado, guardo renovada também a gratidão a essas três celebridades, que me propiciaram tantas horas mais ricas e mais felizes, e prometo a mim mesmo voltar a falar deles e de suas obras em momento mais oportuno. Deixo-os para outro dia em função de uma impressão que me acomete às vezes, de tempos em tempos, e que, apesar de me ser já familiar, não possui nome – ao contrário desses males que levam as pessoas ao divã, embora não seja esse o caso. Não se trata de nada que seja exclusividade minha – se o fosse, não escreveria sobre o assunto; outras pessoas que conheço também sentem algo semelhante a um aceleramento na percepção da passagem do tempo, como se este, de um momento a outro, se fizesse ainda mais fugidio do que sempre foi, no seu escoar-se constante. Além disso, há uma sensação algumas vezes incômoda de que o tempo, em alguns períodos específicos, se revela mais abrasivo em sua passagem, além de trazer uma impressão de que os dias são, a cada ano, mais e mais breves, sem que necessariamente tenhamos adquirido algo com sua passagem, seja experiência, seja conhecimento, mesmo que tenhamos o hábito de não deixar passar uma hora sequer em brancas nuvens. Para muitos, trata-se de tema batido, mas não para mim. Sei da existência de várias tentativas de explicar tal impressão, ou fenômeno, mas não é meu objetivo deter-me nelas. Ocorre-me que, em vez de grandes teorias envolvendo o mundo globalizado e o modo como somos bombardeados por informação, ao mesmo tempo em que muitos se cercam de toda espécie de aparelhos a cada hora mais e mais modernos, talvez em parte isso que procuro descrever seja simples amor à vida, e um desejo maior, em comparação a outros momentos, de não vê-la passar de modo tão esquivo. Em seu romance Niels Lyhne, Jens Peter Jacobsen nos diz, através de seu personagem Erik: “(...) sinto que o tempo me foge, as horas, as semanas, os meses, passam por mim sem deixar vestígio, e não consigo fixá-los por meio de nenhuma obra. Não sei se você me compreende, isso tudo é apenas um sentimento meu, pessoal, mas eu preciso que uma obra de minha autoria me faça senhor de uma certa porção de tempo. Compreende? O tempo que gasto em pintar um quadro continua a me pertencer, ou pelo menos deixa sempre alguma coisa, não acaba todo apenas porque passou”.
Arte, beleza, consciência de finitude, sensação de fugacidade do tempo e o desespero por conseguir fixá-lo são alguns dos temas examinados por Edward W. Said em sua obra – inacabada - Estilo tardio. O autor se refere a certas obras que se caracterizam pelo fato de seus autores, “em vez de se acomodar a uma maturidade tranquila e conciliatória, radicalizam o descompasso com a época em que vivem e evidenciam uma relação problemática com a tradição artística em que se inserem”. Essa sensação incômoda a que me refiro talvez guarde certo parentesco às interrogações de Píndaro ao se referir “às criaturas de um dia, o que é qualquer uma delas? O que não é? O homem não é senão o sonho de uma sombra. No entanto, quando surge, como uma dádiva do céu, um lampejo do sol, pousa sobre os homens uma luz radiante e, oh! Uma vida benigna”.
Sendo eu nada mais que sonho de sombra passageira, não tenho maiores ilusões em conseguir dizer alguma coisa que acrescente algo à obra cada uma incomparável, a seu modo, de Chopin, Schubert e Mozart, e, com essa consciência, não empreendo sequer a primeira linha. Pois, sob o jugo dessa impressão referida acima, talvez uma consciência, mais lúcida – ou menos equilibrada - que em outros momentos, que o dia presente pode ser o último – impressão a que não nego a aparência de algo obsessivo, ou mesmo doentio -, busco dar um passo em direção aos objetivos que normalmente temos em vista, mas que, quando buscamos uma definição, as palavras nos fogem. Seria possível referir-se, com algum acerto, a uma nesga de verdade e a um raio de beleza? Serão a verdade e a beleza compatíveis, ou serão como essas substâncias que não se misturam? Quanto à primeira, não há como não lembrar de Nietzsche, para quem “não existem fatos, apenas interpretações”. Creio que o caminho passa por várias etapas sucessivas, como renúncia, humildade, prontidão e entrega, e é certo que não acaba aí.
Quanto à beleza, da mesma forma como acontece com a verdade, as opiniões variam. Não sei se existe assunto em que haja unanimidade de opiniões; quando a questão é gosto, é muito menor a chance de se chegar a um consenso. Em todo caso, vale lembrar Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra”. Nesta área, o que é resposta para alguns consiste em etapa vencida para outros. Tem-se muito trabalho, diga-se, porque muito do que havia foi destruído em outros tempos. O que restou talvez tenha ficado pelo simples fato de ter passado despercebido, ou, segundo o pensamento de Sabina, em A insustentável leveza do ser: “Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda por alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estágio da história da beleza”. Prefiro pensar que ainda há esperanças, embora não aviste nada na linha do horizonte que possa trazer alento. A respeito do que ainda resta, gosto de pensar nesse pouco como algo indefinível, mais ou menos como as palavras de Norman Del Mar: “É prerrogativa da grande arte suscitar emoções sem nome, mas capazes de nos dilacerar”. Por outro lado, há ainda a beleza como elemento próprio da rememoração do tempo passado, num sentimento que funde senso estético com nostalgia. Como exemplo, são bastante eloquentes as palavras de Claudio Magris, em seu texto que prefacia a edição brasileira de Niels Lyhne: “’Mas chorava uma saudade da vida, / muda e sem nome’, diz um poema de Hoffmannstahl, que compara essa saudade à melancolia de quem passa num navio, à noite, diante da cidade natal, vê as ruas e os jardins familiares da infância, vê a si mesmo ainda criança na margem, gostaria de responder a uma luz que o saúda de uma janela mas é levado para longe pelo navio”.
Integrando o vasto universo temático do romance de Jacobsen, encontra-se um trecho que, creio eu, obtém êxito em colocar beleza e verdade lado a lado. Trata-se da descrição de uma pintura de Erik, em que se percebe a necessidade de fazer escolhas, considerando que a cada uma equivale uma infinidade de renúncias: “(...) uma jovem procurava tirar a própria sorte, à moda italiana. Está ajoelhada num lugar onde a terra parda aparece em meio à erva curta; coração, cruz e âncora de prata batida, destacados do seu colar jazem no chão, e ela ajoelhada, os olhos conscienciosamente fechados, cobertos por uma das mãos, enquanto a outra se estende para encontrar a felicidade suprema do amor, ou o amargo sofrimento mitigado pela fé, ou o destino comum de paciência e de esperança. Ainda não ousou tocar o solo. E é tão tímida aquela mão na sombra fria e misteriosa, as faces enrubescem e a boca hesita entre a prece e o pranto. (...) Ah, se soubesses! Felicidade indizível no amor, amargo sofrimento mitigado pela cruz, ou a esperança e a paciência do destino comum?”.
Em praticamente todo guia destinado a aspirantes a escritor, aparece em posição de destaque o fato de o tempo do leitor ser precioso; aconselham-nos, portanto, a sermos breves, se não quisermos ficar no anonimato. Tendo em vista que meu tema hoje é a fugacidade do tempo, creio não poder discordar: sei que, no que depender de minha prolixidade, os leitores passarão longe deste blog. Para encerrar, portanto, além de me desculpar pela extensão do texto, gostaria de acrescentar que não, não creio que a beleza tenha desaparecido por completo. Em todo caso, sou levado a pensar que o belo se oferece mais facilmente e com maior generosidade não apenas por engano, como nas palavras de Sabina, mas quando não temos dúvidas sobre onde procurá-lo, e quando se tem em mente que ele pode ser encontrado às vezes mesmo por acaso – o que faz do encontro algo ainda mais comovente. Em todo caso, sugiro com humildade as páginas imortais de todos os grandes mestres da literatura. E, obviamente, as obras de Chopin, Schubert e Mozart.

sábado, 10 de novembro de 2012

Um ano de "Contemplações"

Quando criei este espaço, tinha em mente apenas de forma um tanto vaga quais eram os meus objetivos primordiais. Confesso que, de início, faltava humildade nos propósitos: era meu desejo abarcar assuntos como livros e literatura, música, filosofia, arte em geral – ou seja, um leque que se revelou vasto demais e que, pela falta de uma maior precisão na abordagem, acabou por tornar obscura a meta inicial, que deveria ser a ênfase na leitura e nos escritores. Posso acrescentar ainda, sobre esse início, outro fato, também relativo a inícios, mas, no caso, aos textos como unidade: sempre que me ponho a escrever algo, é com um sentimento de comoção, em geral por algo lido ou ouvido ou mesmo por algum elemento ainda em germe na ideia e a ser definida na escrita. Essa comoção existe mesmo se o texto em questão acaba permanecendo inacabado, por uma ou outra razão. E creio poder dizer hoje que a intensidade, assim como a experimento, não esteve ausente nessa minha breve jornada, seja nas crônicas – realmente não sei como classificar meus escritos -, seja no todo. Uma comoção com mais perplexidade que eloquência, é verdade, e, por causa disso, também caracterizada pelo tom balbuciante, mais que prolixo em seus esgares, que em conteúdo revela certo parentesco com a mais completa mudez. Não creio estar sendo rígido demais comigo mesmo, mas sincero. Pois, passado pouco mais de um ano, vejo o quanto faz falta um foco mais preciso na escolha e na condução dos assuntos. Creio não ser exagero dizer que, tal como um viajante deslumbrado, deixei-me muitas vezes distrair e fascinar por inúmeros cantares, dos quais me pareceu por bem dar testemunho, e acabei me desviando daquilo que havia tomado como objeto inicial, muito bem resumido por Elias Canetti, que, escrevendo sobre literatura, se referiu a obras “das quais precisamos, de uma outra maneira, certamente, mas não menos que de nosso pão de cada dia, pois seríamos nutridos e sustentados por elas mesmo se nada mais nos restasse, mesmo se nem ao menos soubéssemos o quanto elas nos sustentam, ao mesmo tempo que, em vão, procuram em nossa época por algo que se possa igualar”.
Pois bem: quis dar a conhecer autores, compositores, obras, comentá-los, interpretá-los. Contudo, e talvez esse tenha sido o meu erro, deixei-me conduzir com ânsia talvez exagerada quando procurei tratar de vivê-las, essas obras, e de acomodá-las em minha rotina, ao lado de meus demais afazeres e obrigações. Por outro lado, pergunto-me se a voz daquele que está sob o encanto de determinada melodia, imerso em contemplação, não constituiria talvez um ponto de vista suspeito para descrever tal música, tal canto, tais livros. E, não sabendo viver sem entusiasmo, esse humilde deus interior que habita de forma diferente em cada um de nós, minha voz passou a ser, para mim mesmo, objeto de desconfiança, ou mesmo indigna de crédito, ao menos no que se referia a tais assuntos. Tornou-se necessária então uma pausa, uma tomada de consciência, para buscar lançar sobre as metas uma luz mais precisa, única maneira de distingui-la em meio às sombras. Vem-me à mente a ideia vaga dos peixes, que descobrem a existência da água em que estão mergulhados apenas no momento em que ela lhes falta; de modo semelhante, talvez não sejamos as melhores testemunhas do mundo que nos rodeia.  É verdadeiro o fato de haver comoção nesse deixar levar-se, nessa imersão no elemento poético, na linha melódica; mas, para o leitor, é indispensável que haja objetividade, sob pena de se deixar de saber, de um momento a outro, o que esperar. Por uma série de boas razões, estou muito distante de ver-me como poeta ou escritor; ao examinar o fruto de minha dedicação, vejo antes de tudo o limite, as falhas - sobretudo a presunção na escolha de alguns dos temas - e a grande distância da sonhada simplicidade. Talvez o tempo mude esse meu modo de ver. É nesse ponto, a respeito da necessidade de um norte, e de que esse ponto seja bem definido, que me valho outra vez de Canetti: “O poeta está mais próximo do mundo quando carrega em seu íntimo um caos; no entanto, e este foi o nosso ponto de partida, sente responsabilidade por esse caos – não o aprova, não se sente bem com ele, não se crê importante por ter em si espaço para tanta coisa contraditória e desconexa, mas odeia o caos, e não perde jamais a esperança de dominá-lo em prol dos outros e de si mesmo”. A respeito disso, acrescento: não é necessário ser poeta para ter em si esse estado de aparente desordem: basta ser leitor. Considero-me um sujeito muito feliz pelo privilégio de poder viver em meio a um “caos” de trabalho, livros, animais, música, amigos, letras, textos, e sou muito grato à vida por essa possibilidade. Mesmo que me faça feliz, porém, o caos, seja de que elementos for, é sempre aquela desordem que, de forma completamente diversa daquele universo caótico primordial de que temos uma vaga descrição, se faz de elementos já definidos, mas que, bem ou mal, precisam conter entre si uma certa harmonia, sob pena de esse elemento de instabilidade que às vezes lhe é próprio passar a reger nossos dias, já numa coloração mais obscura. As palavras de ordem parecem ser clareza de objetivos e ajuste de foco – não em mim mesmo, mas nas leituras e nos autores. Mesmo que o eco àquilo que se escreve não seja outro senão o mais absoluto silêncio; trata-se, mais do que nunca, da típica questão de satisfazer antes de tudo a si mesmo.
Há alguns meses, escrevi sobre a maneira como Michelangelo fazia suas esculturas, comparando em seguida seu método à formação de uma voz, através da retirada de tudo que não era forma, sucessivamente, até que não restasse senão a escultura. Ignoro de que maneira nasce a voz que ouvimos ao ler uma obra literária; ignoro também se meus textos, salvo as falhas, possuem qualquer aspecto característico, no sentido de timbre, pois minha maneira de escrever é antes de tudo instintiva. E é dessa intuição que me vem a ideia de que elaboramos nossa tessitura em primeiro lugar lendo, lendo muito, e relendo, até que uma grande multiplicidade de vozes tenha ressonância em nosso silêncio interior. Posso estar errado, mas creio que parte do processo se resuma em buscar conferir um estado de harmonia a essas vozes, embora não lhes retirando de todo os tons dissonantes; e creio que isso se faz sobretudo ouvindo-se a si mesmo. O arranjo das palavras que se elevam desse coro, de seus desajustes e de seu estado inicialmente confuso, comporão nossas linhas. A respeito disso, talvez seja pertinente recordar aqui algumas palavras de Danilo Kis: “Eles jogaram os livros no chão, pisoteando-os e rasgando-os diante de mim. (...) E eu disse que não os rasgassem, pois uma multidão de livros nunca é perigosa, mas um livro só é perigoso; e eu disse que não os rasgassem, pois a leitura de inúmeros livros leva à sabedoria e a leitura de um só, à ignorância armada de loucura e ódio”. Não creio poder dizer a meu respeito que a leitura me tenha trazido alguma sabedoria; não guardo mais esperanças quanto a isso. Pois, se o próprio Montaigne fala da ilusão que vez ou outra temos de que, com a idade, nos tornaremos mais maduros, vemos essa ideia ir por água abaixo quando a idade vem por si, com o tempo, e percebemos que ela, fora os anos a mais, nada nos traz em acréscimo. Segundo o filósofo francês, por mais que estar ciente disso seja um pequeno princípio de conhecimento, não é coisa que valha muito. Contudo, talvez seja suficiente para que não nos enganemos. Em todo caso, e lembrando a maneira como Comte-Sponville encara a esperança, inicio este segundo ano em estado de consciente desespero em relação a melhorar em algo, isso no sentido de que o crescimento, como se sabe, só vem através de muito esforço. E disso não tenho medo. Tampouco a quase inexistência de eco - salvo as exceções que fazem desta uma regra menos penosa - é motivo para maiores desânimos. Pois, por menor que seja nossa contribuição, caso ela seja honesta e sincera, teremos, ao final, um roteiro escrito de nossa jornada, mesmo que esta seja apenas mais uma entre muitos milhões – e mesmo que esse roteiro exista apenas para uso próprio, em função da precária capacidade de nossa sempre ineficiente memória.
Caspar David Friedrich: “Moonrise over the Sea”

domingo, 21 de outubro de 2012

Infância e leitura: impressões

No momento em que planejamos algo – qualquer coisa que tenha origem em nossa história como indivíduos –, antes mesmo de dar o primeiro passo ou, no caso em questão, colocar na página a palavra inicial, creio ser natural em nós o desejo de saber de que modo chegamos ao ponto em que estamos no momento de tal ato ou, para ser mais específico, no instante exato em que tiveram início estas páginas. Natural ou não, o que me leva a essa interrogação é a curiosidade em relação a saber como fui levado, pelo acaso, por acidente, pelo destino ou mesmo por uma outra via não imaginada, dessas que sempre fogem ao alcance, a começar a escrever estas linhas. Por um senso de honestidade e de lealdade para comigo mesmo e para com o eventual leitor, cumpre dizer que, se agora empreendo esse pequeno inventário, essa procura não só por respostas, mas também por antigas interrogações, isso não tem origem senão na curiosidade e no desejo de perpetuar algumas imagens escolhidas. Estou ciente de que isso só é possível de um modo bastante precário, e que, no fim, para o bem ou para o mal, mesmo os fatos que se logrou descrever aparentemente com maior exatidão não serão mais que meras fantasias e variações em torno de um mesmo tema: o recordar, e, nesse exercício, bastante proustiano, aliás, buscou-se a fidelidade não tanto aos acontecimentos tal como se sucederam, mas ao modo como os sentimos. Dito isso, creio estar sendo sincero ao afirmar que minhas palavras têm sua origem em tardes bastante remotas, quando eu, criança, ao contrário de outros meninos, costumava brincar sozinho.
Na maior parte das vezes, era por escolha própria o fato de ser apenas eu a brincar, e isso por uma razão bastante simples: estando a sós com minha imaginação, podia retardar ao máximo o momento que, cedo ou tarde, sempre chegava, isto é, a hora em que, entre dois, éramos confrontados com a realidade imediata: as vozes de nossas mães nos chamando para voltar para casa, para fazer deveres ou mesmo para tomar banho. A verdade é que, em companhia de outros meninos, o faz-de-conta adquiria uma fragilidade muito mais delicada, e a voz das outras crianças, quando menos se esperava, era a desestabilização em potencial. Em relação a isso, para o bom andamento de qual fosse a brincadeira do dia, nasceu em mim, naquelas tardes antigas, a fantasia de que nada é mais real do que, em termos de ficção ou realidade, nós mesmos estabelecemos como verdade sagrada. E assim, com dogmas que apenas eu e algum hipotético anjo da guarda conhecíamos, as tardes semiencantadas se sucediam, tendo como cenário o quintal e as ruas de uma pequena cidade do interior.
Como se pode suspeitar, não era porém o desejo de dar maior poder à fantasia a única razão pela qual minhas ficções eram desprovidas de personagens coadjuvantes. Por um certo tempo, e por uma razão que busco até hoje compreender de alguma forma, acreditava-se, não sei se com base em fatos ou crenças, que eu era diferente dos outros meninos da minha rua. Falava-se em uma suposta diferença como se todos os outros fossem iguais entre si. Inútil tentar saber em que consistia tal diferença. Pelo pouco que me foi dado conhecer a respeito, recordo-me de certa vez em que me foi dito que eu era ingênuo demais. É fato que havia em mim um certo ardor na forma como vivenciava o que lia, um ardor talvez excessivo. Essa característica permanece inalterada, mas em nada me prejudica o viver; antes pelo contrário. E se é verdade ou não que só nos damos conta de nossa ingenuidade no momento em que não a possuímos mais, concluo disso que talvez eu seja ingênuo até hoje.  Não creio, todavia, que tal característica se devesse à sinceridade com que, naquelas tardes, me entregava aos papéis de herói ou cavaleiro. Antes, prefiro acreditar numa versão mais racional, até porque só podemos habitar com êxito o reino da fantasia quando se está sob o primado básico e necessário de uma realidade mais palpável, que passa por saber das muitas verdades a que, em qualquer fase da vida, se tem acesso e às quais se está submetido, e, entre elas, o conhecimento de que todos os seres, mesmo as crianças, possuem em grau elevado elementos como maldade e mesmo crueldade. Para resumir os fatos, digo que decidiu-se, com base em não sei quais critérios, verdadeiros ou não, que eu não era como os outros e, em decorrência disso, eu mesmo preferia brincar sozinho - até porque não havia outro remédio. Não creio ter errado nessa preferência: talvez eu já intuísse que essa era a única maneira de não macular a infância, essa fase de sonhos em que tudo tem origem, e protegê-la de uma proximidade mais que a desejada de elementos nocivos de uma face menos beatífica da realidade. Pois tudo tem seu tempo.
Ao contrário do que se pode imaginar, porém, essa crença de que eu era diferente só me trouxe vantagens. Pois, para povoar aquelas tardes remotas, passei a recorrer com maior frequência aos livros da biblioteca do colégio onde estudava. Desse modo, passei a preencher minhas horas e minha vida com conteúdos que nenhum outro ser humano poderia me oferecer, a não ser os escritores. De minha convivência com eles, além dos primeiros rabiscos, começou a se intensificar, naquele tempo, além de um aprofundamento da imaginação, uma voz interior – penso que não estou errado em chamá-la desse modo – ou, em palavras mais precisas, uma consciência; se algumas vezes, ao longo da vida, fui algumas vezes privado dela, é coisa que ainda veremos. Daquelas tardes em companhia dos livros, dos sentimentos que me animavam, a noção que me restou talvez não seja diferente daquilo que na época eu experimentava em relação aos personagens das histórias narradas, que, na minha ânsia por vivenciar algo semelhante em encanto àquele universo feérico, mais afastava do que aproximava. Era algo como um dar-se a conhecer para depois tornar-se distante e impossível. E dessa inacessibilidade, para um menino tido como ingênuo, eu era bem consciente. Prova disso é a lembrança vívida de certa tarde em que reagi à beleza, ou à sua intangibilidade, de uma forma mais intensa que o habitual. Na aparência, era uma tarde como as outras; talvez apenas estivesse um pouco mais sensível, ou talvez a suposta diferença tivesse sido apontada de modo um tanto mais brusco. Mas o fato é que tinha em mãos uma gravura representando o cenário e os personagens de um dos contos de que mais gostava. Não sei se por saber-me de fato comum, em nada diferente aos meninos que povoavam o cotidiano de minha rua, ou por ter consciência de estar tão distante daquele universo imaginário, lágrimas nada fictícias passaram a correr de repente sobre minha face. Instado por minha mãe, preocupada, sobre a origem do pranto, não soube o que responder. Limitava-me a mostrar a imagem que tinha em mãos, mas esta, de um momento a outro, perdera sua eloquência e tornara-se anódina, ao menos para a uma mãe alvoroçada diante de um filho que chora por uma razão que ele próprio não soube então compreender.
Mas este foi um fato isolado, e as tardes posteriores tiveram continuidade sob égides mais equilibradas entre fantasia e a realidade cotidiana. Mas de qualquer forma, sob certo aspecto e por razões difíceis de especificar, acabei me tornando exatamente aquilo que antes eu procurava manter à distância. Em termos mais precisos, uma voz desestabilizadora, que não hesita em chamar a verdade de ficção desprovida de sentido e esta, de realidade imediata. Voltando ao tópico do ponto de partida, acredito estar sendo honesto em dizer que estas páginas nascem exatamente disso: de buscar tornar difusas as linhas imaginárias entre uma instância e outra, para fazer delas a minha história e a história dos que me cercaram, dos que ainda me cercam e do que vejo além, na linha um tanto obscura de um horizonte em que ainda não se distingue um fim.
A título de informação, foi apenas depois do contato com os escritores que desisti de brincar com os meninos da minha rua. De uma certa forma, posso dizer que, através da leitura, e também do próprio tempo, descobri que eles não eram o que eu pensava que fossem. Sei que pessoa alguma é culpada da imagem que dela fazemos, e por isso eles permanecem, ao menos nisso, inocentes. De qualquer modo, deixei-os de lado e só depois disso tive amigos: meus colegas de escola, que, durante todo esse tempo, estavam lá, à minha disposição, esperando apenas que eu os procurasse. E nos tornamos amigos sinceros. Em sua opinião, não havia diferença entre nós, a não ser essas que diferenciam um indivíduo de outro. Em última análise, não éramos mais do que isso: garotos comuns, como quaisquer outros, atravessando as fases mais decisivas da vida, no início de suas trajetórias. E, só para constar, nunca mais chorei pela ficção ou pela arte; a realidade em si já é suficientemente trabalhosa.
Nesses exercícios de fantasiar, não são mais os chamados maternos que anunciam o momento de parar. Mas, de qualquer maneira, estejamos nós sob o primado do real ou do fictício, sejamos nós adultos ou meninos, há algo de que não logramos fugir, e que permanecerá para sempre inalterado: o adiantado da hora ou, em outras palavras, da única coisa imutável em nossa existência de criaturas mortais: a premência nunca flexível do tempo.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Das dificuldades de prestar tributo


Dizem que o tempo cura todas as feridas. Faz muito tempo que essa frase me foi dita, em circunstâncias nada comuns. Hoje, passados vários anos, sinto-me duplamente enganado: por quem me disse tais palavras e ao mesmo tempo por mim mesmo, por ter acreditado. De qualquer maneira, perder alguém com quem dividimos a vida desde o momento que nascemos nunca poderá ser definido como algo de que nos desincumbimos com facilidade, pois qualquer dor que sentiremos nesse processo de luto será sempre um desafio às leis da natureza e dos afetos. Quando se trata de ver a morte de um irmão de apenas 30 anos de idade, no auge de sua vitalidade, que, além de ser nosso irmão, era esposo dedicado e pai de um menino de apenas um ano e oito meses, palavra alguma que nos digam tomará o lugar da total ausência de sentido e da precariedade de qualquer esboço de resposta a que tentamos, por teimosia, nos apegar. Embora já tivesse perdido meu pai, creio que, por mais que se tente, nunca estaremos preparados para esses momentos. Nessas ocasiões, costumo dizer, só o silêncio é capaz de simbolizar nosso estado e de fazer ressoar nossa total perplexidade. E esta não é outra senão a mesma de todos os dias, acrescida apenas de três camadas ou mais de absurdo. Existe uma frase segundo a qual o que não tem remédio remediado está, e, por mais que as palavras, nesses tempos difíceis, digam pouco, de uma maneira ou de outra é a elas que nos agarramos quando tudo à nossa volta parece desabar, como se o simples fato de nomear objetos e sentimentos e descrever experiências com a linguagem que todos usam no dia a dia fizesse as coisas, aos poucos, retomarem uma certa aparência, sempre precária, é verdade, de normalidade. E assim, pouco a pouco, o mundo voltava aos eixos, enquanto a realidade prática nos levava a enfrentar decisões e detalhes de que, mesmo pequenos, preferiríamos ser poupados, como escolha de tons de mármore, datas e epitáfios.
Em tais escolhas, geralmente somos confrontados com várias emoções conflitantes, que, dependendo de nossas crenças, ou da falta delas, nos levam a enfrentar por uma última vez não apenas a figura de quem acabamos de nos despedir, mas nossas próprias convicções quanto à morte e, mais do que tudo, quanto ao significado mais imediato de nossa vida. Lembro de ter escrito, certa vez, que a dor da perda é a mais intensa das musas inspiradoras, e se nos vemos impelidos tantas vezes a desafiar a própria lógica do universo e da natureza, empenhamo-nos nessas últimas homenagens não por uma questão de demonstração de poder aquisitivo ou de ostentação, como pretendem alguns, mas como a última coisa ao nosso alcance que podemos fazer, como uma última palavra dirigida àquele que partiu. Por mais que saibamos: é tarde. Foi pensando desse modo que buscamos, meus familiares e eu, imprimir à sepultura de meu irmão algo de sua personalidade: um livro aberto, em mármore, com seu nome e as datas de nascimento e morte; ao lado, uma grande placa em bronze, com algumas palavras em homenagem, além de uma fotografia. Desse modo, aquele que partira tão cedo, emoldurado em metal nobre, lançava-nos seu franco sorriso, literalmente do outro lado, e, à sua direita, um trecho especialmente escolhido e traduzido de Os frutos da terra, de André Gide: “Eu precisava de um pulmão, disse-me a árvore. Então, minha seiva fez-se folha a fim de que com ela eu respirasse. Quando terminei de respirar, o meu fruto caiu, mas não morri por causa disso. O meu fruto contém todo o meu pensamento sobre a vida”.  Feitas essas escolhas, a vida seguiu seu rumo e, com o passar do tempo, o cotidiano pareceu retomar seus ares de normalidade, seja lá o que isso for.
É verdade que todos os anos, em certa data, havia horas difíceis: dia 18 de novembro era aniversário de meu irmão. Quanto ao dia 2 desse mesmo mês, nunca teve grandes significados para mim: saudade não é coisa que se sente com hora marcada. Em vista disso, ia ao cemitério em datas sem relação com as tradições. Na verdade, mesmo que as escolhas referidas acima tenham sido feitas com todo o amor que nos restava, e que ainda resta, vejo os cemitérios mais como um repositório de dados como datas, nomes, e, se fosse fazer uma homenagem, dificilmente me ocorreria ir a uma sepultura, por mais que haja quem diga que tudo que restou do ente querido se encontra lá. Não penso desse modo. A criação da casa de cultura e a rua com seu nome, bem como o lançamento em livro das crônicas de Marco Antônio, se revelaram homenagens muito mais profundas, pois provaram a mim, como relutante revisor, que um ser humano pode ensinar muito a outro mesmo não estando mais ao nosso lado. Mesmo que seja um aprendizado às vezes doloroso.
Foi por preferir ver o que restou de Marco nos passos e conquistas de meu sobrinho Arthur que passei a maior parte desses anos sem ir ao cemitério. Mesmo assim, foi com o máximo espanto que, em 2009, recebi a notícia de que a placa maciça e os caracteres em bronze haviam sido roubados do túmulo. De alguns anos para cá, com o agravamento do uso do crack, visitas desacompanhadas são pouco recomendáveis até mesmo à luz do dia. (Meses depois, os caracteres seriam recolocados, mas em metal mais comum). Em todo caso, independente de causa, a saudade em si, agravada pela notícia do roubo, fez pesar-me a consciência por tantos anos sem uma homenagem mais convencional à memória de quem se foi. E assim, com pesar, fui a uma floricultura e escolhi crisântemos de um branco luminoso e vibrante – dizem que as outras cores não são apropriadas, embora não entenda muito disso.
Foi com a inocência dos distraídos que me dirigi, então, ao Cemitério Municipal, esquecido de um fato óbvio: que ano a ano são muitas as mortes e todos os espaços vão sendo aos poucos preenchidos. Contudo, lembrava-me bem do pequeno monumento erigido em memória do irmão que partiu, mas não contava com um fato inesperado: à medida que avançava por entre os túmulos, percebi haver muitos outros com caracteres roubados, muitos outros túmulos imitados com idêntica representação de livro aberto, de cruz e retrato – todos na mesma situação, faltando nomes e os dados mais básicos. Tomado da mais completa perplexidade, deparei-me com várias possibilidades. Em um daqueles túmulos, jazia um irmão, mas, especificamente, em qual deles? Tratava-se da morte anônima, literalmente. Diante da incerteza, constrangido, deixei as flores sobre um daqueles monumentos multiplicados, provavelmente o errado, olhei em volta e deixei o lugar. À perplexidade das perdas somam-se as premências de quem sobrevive independente de conhecer ou respeitar a memória dos que já não podem se defender.  Convenci-me de que, sob certos aspectos, é verdade que a morte tem o poder de igualar a todos. Qualquer palavra talvez fosse suspeita; em todo caso, sou levado a pensar, embora sem certeza alguma, que as grandes perdas, assim como outros processos gradativos, se deem também aos poucos, aqui e ali, enquanto buscamos reconstruir, mesmo depois de tantos anos, o sentido do que restou.

Caspar David Friedrich: “Cemitério na neve”, 1817

domingo, 16 de setembro de 2012

Coisas que perdemos no caminho

Existem vezes em que o espaço em branco representa um desafio maior do que realmente o é nas outras vezes, e a tarefa de escrever, na maior parte das vezes uma atividade tranquila, apesar dos percalços e dos eventuais silêncios, se torna um verdadeiro desafio. Isto acontece, entre outros fatores, pelo fato de alguns assuntos representarem uma verdadeira prova à nossa capacidade de exposição e de síntese. E quando nos propomos escrever sobre os rumos incertos do mundo atual e seus descaminhos, há que se ter cuidado com as palavras. Em sua obra A resistência, o escritor argentino Ernesto Sabato traça um preocupante painel de nossa realidade; ao concluir a leitura desses textos, verifica-se que o adjetivo “sombrio”, usado para descrevê-los no texto da contracapa, nada tem de inadequado, tendo em vista que o qualificativo define muito bem os dias atuais, que estão longe de constituir um cenário pacífico. Talvez uma das melhores maneiras de descrever um determinado período seja através da enumeração de coisas que perdemos ao longo do tempo. Ao iniciar esse inventário, a nossa primeira descoberta é que, ao mesmo tempo em que nos cercamos de toda espécie de artefatos de utilidade duvidosa, por outro lado nos privamos de coisas essenciais. Podemos citar um trecho em que Sabato afirma que um mundo sem espírito não passa de uma terra devastada, ou, resumindo as suas palavras em outros termos, trata-se de uma paisagem de grande desordem, estado estabelecido sem que algo de maior gravidade tenha necessariamente acontecido de uma hora para outra. Se minha leitura foi correta, a ameaça se encontra justamente nessa forma sutil como o caos se instaura. De modo mais específico, segundo o escritor, “o momento de maior empobrecimento de uma cultura é esse em que o mito começa popularmente a ser definido como uma falsidade”. Se concordarmos com Luc Ferry, para quem a mitologia ocupa o elevado grau de pré-história da filosofia, percebemos a real gravidade da situação: com efeito, que tipo de pensamento pode surgir de uma sociedade desprovida de todo o arsenal do imaginário, lembrando uma realidade da qual até mesmo os relatos mais essenciais desapareceram? Pensando no papel exercido tanto pelo imaginário como pela mitologia, podemos nos interrogar, juntamente com Sabato: “E acaso são explicáveis os grandes valores inerentes à condição humana, como a beleza, a verdade, a solidariedade ou a coragem? O mito, assim como a arte, exprime um tipo de realidade da única forma como ela pode ser expressa”, escreve, salientando a inutilidade de toda tentativa de racionalização da mitologia: “Defronte a questões inefáveis, é infrutífero tentar aproximar-se por meio de definições”.
Deparei-me com essas palavras do autor de Sobre heróis e tumbas de uma daquelas maneiras que nunca sei se posso considerar casuais ou aleatórias. De qualquer maneira, casualmente ou não, estava há poucos dias lendo um documento que me permitiu ter uma ideia das reais proporções de nossas perdas, não apenas em termos de mitologia, mas em relação a um contato mais vívido com o mundo natural e à convivência pacífica com a natureza. Da maior parte das coisas que perdemos só nos damos conta muito tempo depois, quando lançamos um olhar em retrospecto. Em 1852, o governo dos Estados Unidos fez um inquérito sobre a aquisição de terras tribais para destiná-las a imigrantes que chegavam ao país. Em resposta, o chefe Seattle escreveu uma carta – hoje bastante conhecida, embora não respeitada como merece - que tenho na conta de uma declaração de princípios e de ética poucas vezes superada. A seguir, transcrevo alguns trechos: “O presidente, em Washington, informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu, ou a terra? A ideia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte da terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e na experiência do meu povo. Conhecemos a seiva que circula nas árvores, como conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos parte da terra, e ela é parte de nós. (...) Se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do meu pai. (...) Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara. O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro. O vento também dá às nossas crianças o espírito da vida. Assim, se lhes vendermos a terra, vocês deverão mantê-la à parte e sagrada, como um lugar onde o homem possa ir apreciar o vento, adocicado pelas flores da campina. (...) O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. (...) Amamos esta terra como o recém-nascido ama as batidas do coração da mãe. Assim, se lhes vendermos nossa terra, amem-na como a temos amado. Cuidem dela como temos cuidado. Gravem em suas mentes a memória da terra tal como estiver quando a receberam. Preservem a terra para todas as crianças e amem-na, como Deus nos ama a todos”.


Como se percebe, a carta não trata de apenas um assunto, mas de uma infinidade de valores de que hoje, em razão de nossa memória de curto alcance, entre tantos outros fatores, nos vemos privados, de uma maneira que me recuso a considerar irreversível. Em termos descritivos, talvez não seja tão difícil definir a sociedade atual. Vejo a história da pintura como uma coleção de imagens cuja eloquência não se perdeu com o passar dos séculos. Antes pelo contrário: nela estão refletidas várias etapas pelas quais passamos, estejam elas no passado ou no presente, com alcance para além do futuro. Nesse sentido, creio que uma das imagens mais condizentes com nosso tempo é o “Narciso”, em que Michelangelo Merisi da Caravaggio retrata o jovem que, segundo a lenda grega, apaixona-se pelo próprio reflexo na água, paixão que o leva a afogar-se. (Este é apenas um entre tantos exemplos de como os mitos podem iluminar fenômenos humanos). A alusão não podia ser mais clara nem mais atual: tão entretidas em contemplar a própria face, as pessoas perderam a capacidade de se relacionar com o mundo. Não se enxerga o outro porque, além de os olhares terem se desviado em direção ao espelho, perdeu-se a empatia. E o mais irônico disso, e também o mais grave, é que os olhos estão voltados apenas para a superfície, incapazes de olhar para dentro de si, ou melhor, para seu interior. Em parte, talvez isso aconteça porque o interior não contém coisa alguma. Ignoro se é possível a alguém aperceber-se do próprio vazio sem uma interferência externa. Em todo caso, é sempre bom lembrar que muitas coisas brotaram de uma consciência do vazio – desde que essa consciência seja sincera. Em sua obra O poder do mito, Joseph Campbell fala do modo como o nosso relacionamento com o mundo exterior pode variar de acordo com as palavras que usamos: “Os índios se dirigiam a todo ser vivente como ‘vós’ – as árvores, as pedras, tudo. Você também pode se dirigir a qualquer coisa como ‘vós’, e se o fizer sentirá a mudança na própria psicologia. O ego que vê um ‘vós’ não é o mesmo que vê uma ‘coisa’. E quando se entra em guerra com outro povo, o objetivo da imprensa é transformar esse povo em ‘coisas’”. Creio que seja assim mesmo. A respeito disso, se passássemos a dedicar aos assuntos alheios um décimo do empenho e da atenção que costumamos dedicar aos nossos próprios interesses, não teríamos uma sociedade tão individualizada. Utopia? Talvez. Mas prefiro pensar que, ao menos em alguns lugares, longe ou perto, compreensão e lealdade ainda não sejam coisas de um passado mítico e que a ética ainda respira, não obstante seu estado de fragilidade.
Depois de falar da lucidez de Ernesto Sabato, da terra vista pelos olhos dos índios, de Narciso e de uma nova maneira de ver a natureza e a sociedade, gostaria de evocar uma outra imagem como complemento à anterior. Uma imagem que não signifique resignação, mas aceitação do fato de que o mundo está passando por dificuldades e que precisamos colocar-nos em atividade para recuperar o que foi perdido. Existe uma fotografia que retrata a biblioteca da Holland House, em Kensington, atingida por um bombardeio em 22 de outubro de 1940. O que se vê, tendo como fundo uma realidade destroçada, são as estantes de livros em meio à destruição, examinados por três homens. Quem os descreve é Alberto Manguel, em sua obra Uma história da leitura: “Eles não estão dando as costas para a guerra, nem ignorando a destruição. Não estão escolhendo os livros em vez da vida lá fora. Estão tentando persistir contra as adversidades óbvias; estão afirmando um direito comum de perguntar; estão tentando encontrar, uma vez mais - entre as ruínas, no reconhecimento surpreendente que a leitura às vezes concede – uma compreensão”. Não gosto da expressão “indigência cultural”, pois sempre me pareceu elitista e um tanto exagerada. Mas, ao ver tal imagem, em contraposição ao mundo de hoje, é impossível deixar de me perguntar se haveria, atualmente, numa atmosfera constituída por destroços, alguém que, depois de um bombardeio e em meio ao caos, se pusesse a ler os títulos nas lombadas. É difícil responder. Gosto de pensar nas futuras gerações com certa dose de esperança e na possibilidade de um tempo melhor após algumas décadas. Em todo caso, não creio poder viver para ver esse momento em que uma nova escala de valores será inaugurada. Mas talvez eu esteja enganado. Queria imensamente que assim fosse: um engano, nada mais que isso, e que sim, deve-se dar um voto de confiança à humanidade. Até prova em contrário.
(Tendo em vista o assunto, não sei se respondi à altura à prova do espaço em branco. Isso é algo que apenas o leitor saberá dizer. Em todo caso, o som da chuva, lá fora, é sussurro que me diz, ao pé do ouvido, que, antes de pensar em responder, devo esperar a madrugada passar).
Caravaggio: “Narciso”
Holland House Library, Kensington, outubro de 1940








sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Maneiras de escrever: lições de Rilke e Montaigne

Entre tantas páginas que a literatura nos legou a respeito de como escrever, algumas das mais preciosas nos foram deixadas por Rainer Maria Rilke, não exatamente na sua obra literária, mas em suas cartas, que acabaram por constituir um gênero à parte entre tantos outros. O ano era 1903, e o destinatário era o jovem Franz Xaver Kappus. “Procure entrar em si mesmo”, escreve o poeta; “Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte ‘sou’, então construa sua vida de acordo com essa necessidade”. Mais de cem anos se passaram, e é possível que muitos outros séculos se passem; se essas palavras persistiram, é porque elas tiveram entre os seus leitores uma infinidade de jovens aspirantes a poeta, ou mesmo leitores comuns, para quem elas foram de uma utilidade que não foi possível encontrar em outras fontes. Se era de maneira consciente que Rilke escrevia suas cartas para a posteridade, é questão que já perdeu a importância. A verdade é que, de uma forma ou de outra, suas cartas entraram para esse reduzido número de epístolas cujo destinatário maior é a humanidade de todas as épocas, independente do fato de quererem ser escritores ou não.
Muito mais do que outras questões de maior alcance, tais como “como viver, ou ainda “o que podemos esperar da humanidade”, as interrogações sobre como e por que escrever receberam e continuam a receber por parte de escritores, independente de sua nacionalidade, um tratamento especial. É de se acreditar que muitos se detiveram nesta questão pelo fato de elas pertencerem ao reduzido campo em que as respostas ainda fazem sentido. Sobre tudo o mais, ou sobre os aspectos em que a vida se revela mais misteriosa e cheia de interrogações, a melhor alternativa é simplesmente calar-se. E quando há tentativas nesse sentido, dificilmente se trata de palavras possíveis de serem resumidas. Clarice Lispector, também por sua vez procurada por um jovem escritor que lhe havia enviado alguns contos, resumiu seu ensinamento através de um conselho que vale para todos nós, literatos ou não: antes de começar, antes mesmo da primeira palavra, é necessário perder o medo. Não tenho meios para saber que resultado essas palavras tiveram no destino do jovem a quem foram destinadas. Quanto a mim, porém, posso dizer que ao menos creio não ter mais medo nem de viver, nem de escrever. Como diz o título de uma famosa canção, “o medo de amar é o medo de ser livre”, e creio que esse temor sirva também para outras áreas. E quanto à liberdade, mantenho certa reserva, essa justificada por outra canção, segundo a qual “liberdade não é mais que outra palavra para nada a perder”.
Escrita e liberdade foram palavras-chave para o criador do ensaio como gênero, Michel de Montaigne. Interrogação e dúvida talvez fossem dois elos a mais. Segundo Virginia Woolf, o filósofo francês é o exemplo único de escritor que soube, com as palavras, escrever a si mesmo como em um retrato. De acordo com a escritora, é apenas a ele que pertence a capacidade de proceder “este relato de si mesmo, seguindo suas fantasias, dando o mapa completo, o peso, a cor, e o diâmetro da alma em sua desordem, sua poliformia, sua imperfeição”. E, como assinala Virginia, os séculos passam e mais e mais leitores são levados a reconhecer-se nas páginas dos Ensaios, sempre intrigados com o fato de terem sido tão bem descritos tantos séculos antes de nascer. Mas, de forma mais detida, vejamos as palavras do próprio Montaigne, na sua carta ao leitor, a quem apresenta e dedica seu livro: “(...) possam nele encontrar alguns traços do meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. (...) Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu”. Recordo-me de minha reação quando li pela primeira vez alguns de seus ensaios, e, pelo que pude mais tarde comprovar, não foi uma impressão exclusivamente minha, essa de perguntar-me como podia esse homem do século XVI conhecer tão bem a alma dos leitores de todos os tempos. Encontrei uma explicação posterior, em algumas palavras de Ralph Waldo Emerson sobre a arte de escrever. Trata-se de uma escrita que não se produz meramente com tinta sobre papel, mas “escrever como se deposita o orvalho sobre a folha e as estalactites sobre as paredes da gruta, como a carne decorre do sangue e como a fibra lenhosa da árvore se forma a partir da seiva”. Creio que estas palavras colocam fim àquele clichê segundo o qual escrevemos por nos sabermos mortais; salvo os grandes predestinados, escrevemos todos para o olvido.
Sim: escrevemos para o esquecimento, e mesmo assim o fazemos, teimosamente, pois, sendo real a assertiva de Rilke sobre a impossibilidade de viver sem escrever, não temos alternativa. A esperança talvez esteja nas entrelinhas. É nesse ponto que a escrita nos desafia, nos amedronta, nos coloca diante de nós mesmos, tal como acontecia de modo natural com Montaigne. É essencial perder o medo, como aconselhou Clarice; se assim não fosse, as entrelinhas acabariam por dizer, malgrado nós mesmos, tudo o que gostaríamos de calar. É válido recordar aqui o subtítulo de uma obra de Alberto Manguel, A cidade das palavras: “As histórias que contamos para saber quem somos”; um dos tantos modos de ver a literatura é como um inestimável espelho do que somos e também um guia para saber onde estamos e para onde nos dirigimos. Ao menos é com essa curiosidade que sou levado a escrever, independente do fato de ser lido ou não. Ao menos para mim, sem palavras, não haveria cidade, nem casa, tampouco natureza, mas um grande caos. Nossa ordem está mesmo nos livros, nas linhas que se amontoam, independente do crepitar de fogos sagrados e da música do cosmos. Pelo que me é dado observar, este conteúdo está presente também sobretudo no que calamos; sobre essas linhas subliminares, que também encontramos apenas em grandes obras, é interessante o que diz A.D. Sertillanges: “A palavra pesa quando se sente por baixo dela o silêncio, quando ela oculta e deixa adivinhar, por detrás das palavras, um tesouro que ela libera progressivamente como convém, sem precipitação e sem agitação gratuita. O silêncio é o conteúdo secreto das palavras que contam. O que faz o valor de uma alma é a riqueza do que ela não diz”.
Se a mim por minha vez alguém indagasse sobre as razões e desrazões de escrever, não sei o que responderia. Em todo caso, não teria por que não dizer meu próprio pensamento e postura ante meus escritos, postura que me foi legada por Clarice. Interrogada sobre em que sentido ou grau suas obras poderiam alterar a realidade imediata, ela respondeu não ter ilusão alguma: “Não altera em nada”. E, mesmo assim, seríamos imensamente menos ricos se não tivéssemos, entre tantas outras obras, A hora da estrela. Isso, contudo, quanto a Clarice. No meu caso, basta a primeira parte da resposta: não guardo ilusões. Contudo, longe estou de querer desistir; quanto a isso, a lição de Rilke vale por toda a vida, independente do que se faça. E há ainda uma coisa de que não podemos nos esquecer: que, destituída por completo de sua porção de mistério, escrita alguma tem valor.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Baudelaire e a infância; sobre a vida própria de certas frases


“A infância é nossa pátria”, dizia Baudelaire. Durante muitos anos conhecia a frase, mas ignorava seu autor, e também não sabia dizer quando a teria ouvido pela primeira vez. De certo modo, acabei associando-a indevidamente com o anonimato. Com o tempo, também de forma equivocada, por desconhecer a origem, além do fato de dizer respeito a um tema universal, passei a considerá-la como um desses provérbios que, não sendo de ninguém especificamente, acabam pertencendo a todo mundo. Enganei-me. Resta saber se a frase diz respeito apenas ao autor ou se é válida para todos. Mas antes disso, uma consideração: já tinha reparado que algumas das frases que memorizamos parecem criar vida própria em nossas mentes. Sei que se trata de falta de uma memória mais exata, mas é como se essas sentenças resolvessem modificar-se por conta própria, alterando-se, adaptando-se a nossas ideias – mesmo quando as contrariam -, misturando-se a outras, criando nuances, até o momento em que resolvemos buscar sua origem e acabar não com as incorreções – seria errôneo considerar desse modo nossas próprias reflexões sobre os temas -, mas com os desvios. E é então que descobrimos que elas guardaram pouca relação com o que eram de início, e, em alguns casos mais raros, tornaram-se seu oposto. Mas voltando à frase de Baudelaire: se a infância é realmente nossa pátria (e creio que o autor de As flores do mal sabia o que dizia), não é difícil imaginar-nos como uma legião de expatriados sonhando com o momento de voltar a uma terra da qual, embora sempre tenha sido nossa, fomos desapossados. A ideia, se de início nos soa estranha, depois parece muito natural e até um pouco óbvia. E, pensando assim, não é preciso muito esforço para ver em cada rosto maduro a fisionomia de um exilado e para interpretar quase todos os livros que lemos como canções de um desterro não apenas forçado, mas mal e mal suportado. Poucos são os exílios voluntários, em que a própria pessoa, depois de ponderar, admite que o melhor seria partir - e mesmo nesses casos, o expatriado passou a viver tristemente com dois corações.
Também não deixa de ser verdade, sob esse ponto de vista, que a partir do momento em que nascemos não cessamos mais de partir. E viajar, nesse caso, seria exilar-se duas vezes. Eis talvez um novo modo de nos definir: somos seres que partem o tempo todo, e que, exageros à parte, já nascem indo-se embora. De pouco adianta que, em pensamento, em projetos ou em sonhos não cessemos de planejar um retorno impossível e de sonhar com a pátria a cada minuto mais distante. É como se a expulsão do paraíso deixasse de ser exceção para tornar-se regra: da perfeição do mundo em que nascemos nos percebemos arrebatados quando menos esperamos, e de pouco valeria interrogar se estamos preparados para isso: no mais das vezes, a vida não nos faz perguntas – ao menos não a esse respeito - e também não nos pede licença. Pergunto-me se existe algo de espontâneo em buscar recriar a pátria no mundo que aos poucos passamos a habitar e a chamar de nosso, tarefa a que nos dedicamos incessantemente em cada dia de nossas vidas; não raras vezes, a tendência é fazer da nossa casa uma versão à nossa maneira das salas de nossos pais ou avós, ancestralidade sempre presente mesmo quando se trata de transgredir e de romper barreiras. E as semelhanças vão um pouco além disso: já se disse anteriormente que ser velho é voltar a ser criança. Poderia-se perguntar se seria isso o paraíso reconquistado; o mais provável é que esse repovoamento não passe de uma tosca compilação de arquétipos imperfeitos, repleto de incapacidades e ao mesmo tempo prenhe de outras mais e que, à medida que o tempo passa, não deixam de se agravar, até o momento em que realmente não faz mais diferença alguma. O que nos salva então é o embarque clandestino na infância de outros seres. Além disso, o que nos resta, então, se do lugar de nossa infância estamos para sempre privados e se toda referência a esse tempo, como é talvez erroneamente considerado, não deixamos jamais de perder? A resposta talvez não seja tão difícil; de todas as lições da infância, talvez a maior seja justamente a que esquecemos com maior presteza: as técnicas do sonho. Talvez seja apenas através dele que podemos vislumbrar, mesmo que com uma verossimilhança mínima, o que está para sempre perdido e o que mesmo na nossa memória cada dia parece servir apenas para ofuscar, tornar obscuro. Dito isso, seria melhor recolhermo-nos na esperança de sonhar, desses sonhos que, raros, situam-nos no nosso verdadeiro lugar. Pouco importa se deles despertamos um tanto desorientados: é próprio da perfeição o deixar-nos por vezes transtornados. E, depois disso, com esse pouco de paz que colhemos quase ao acaso, devidamente armados para um ou dois minutos, o mais acertado talvez seja mesmo tornar a dormir.
Claude Monet: “Un coin d’appartement”, 1875

domingo, 29 de julho de 2012

Quando as palavras nos abandonam

Embora na verdade tivesse uma certa aparência de ritual, não havia muito mistério nisso de escrever. Basicamente, eram apenas um ou dois pré-requisitos a serem respeitados, alguma inspiração e o trabalho de colocar-se à escuta, e o texto nascia fluente, como se eu apenas transcrevesse algo que já existia inteiro em sua forma final, mas em outra esfera. Tudo na verdade muito simples, pouca coisa para explicar e nada para entender. O leitor atento terá percebido que usei o verbo no passado: “havia”. Pois, de alguns meses para cá, escrever se tornou tudo, menos um processo simples, e não é verdade que não tenha me esforçado. Muito pelo contrário. Gastei semanas em tentativas inúteis de produzir algo que lembrasse a dignidade de textos anteriores, mas era como se nada do que brotasse de minhas mãos tivesse o direito de sobreviver para contar sua breve história de inexistência. E verifiquei por experiência própria o fato de que nos acostumamos a tudo, ou a quase tudo: eu já havia me habituado a esse processo contínuo de escrever para descartar, muitas vezes sem mesmo perder tempo em releituras vãs, que, por si, não trazem sopro algum ao que já nasce sem vida. Tudo em vão.
E, embora não pudesse ser assim considerado, como já disse, busquei as aparências de ritual para procurar vencer esse silêncio que, em lugar das antigas palavras querendo vir ao mundo, passou a me habitar de uma hora para outra, quando eu menos esperava, e que me fez mudo ante um mundo que, de um momento a outro, se tornara paradoxalmente de uma eloquência nunca antes experimentada, ao menos para mim. Conforme escreveu Susan Sontag em um ensaio, em literatura o tempo existe para que não aconteça tudo de uma vez, enquanto que o espaço serve para que não aconteça tudo com a mesma pessoa. O fato é que, por algum tempo, senti como se eu fosse a exceção viva dessa regra, sem tempo e sem fôlego para assimilações. Se eu mesmo disse há tempos atrás que as palavras nascem do silêncio, a minha dedicação em observar essa ausência de ruído conseguia produzir apenas ecos vazios e cópias idênticas em significado a essa mudez de que de me vi tomado.  E a escrivaninha, preparada como um altar para ofícios sagrados, continha livros, canetas-tinteiro, papel branco e o violino em estanho inclinado em seu suporte. Tudo ao som de “Clair de lune”. E tudo em vão, outra vez. Da experiência, só restou a comparação com outros altares, outras mesas, como aquelas que, relembrando tempos imemoriais, reúnem até hoje congregações em torno da repartição dos pães, do vinho. Seria essa comparação uma inveja guardada ou expressão de desejo por reunir-me a esses irmãos? Pode ser. Creio que talvez, a essas alturas e nas atuais circunstâncias, seria bom e consolador, já que as palavras me deixaram só, pertencer a alguma coisa que seja. Mas para isso é necessário antes de tudo fé, e pré-requisitos não podem ser fabricados de uma hora para outra, para nosso uso. Como seria fácil se assim fosse. E, por uma questão de princípios, mentir é coisa que não faz parte de meus hábitos.
Tendo me tornado uma criatura do silêncio, ou de sujeito momentaneamente privado de palavras, procurei ampliar meu conhecimento musical. Nenhum esforço é vão, e posso dizer mesmo que ganhei muito com isso. Novos intérpretes, novos instrumentos, novos gêneros... é incrível a habilidade que alguns musicólogos possuem – ou acreditam ter – para reunir todo um período – no caso, a Inglaterra elisabetana, em apenas dois ou três discos. Impossível deixar de questionar que critérios foram levados em consideração para tais compilações. Quantos instrumentistas e compositores terão dedicado suas vidas inteiras a compor e, no momento da seleção, por uma simples questão de opinião, foram deixados de fora? Outra coisa: nesse período em que permaneci ágrafo, ao contrário do que talvez se imagine, li muito. Na verdade, não tendo a me sussurrar no ouvido vozes dizendo sobre o que escrever, li como nunca antes na vida. Diga-se também de passagem que o meu trabalho também não ficou prejudicado com esse meu não tão repentino silenciar. Para usar de sinceridade, talvez a ausência de palavras já se anunciasse no instante exato em que, ainda menino, brotaram as primeiras palavras, décadas atrás, das quais tenho pouca recordação, e creio não ser errado supor que o fim de qualquer coisa que seja está já em seu início, em gestação. Algumas questões se tornam inevitáveis, não apenas a quem escreve, mas a todos nós: há quanto tempo se faz da escrita razão de viver? Quantos morreram no cumprimento desse ofício? Em que a humanidade melhorou com toda a dedicação dos homens que se sacrificaram para lhes legar um universo de palavras? O que as pessoas leem, hoje em dia? Com o que estarei contribuindo, se deixar de ler ou estudar partituras para dizer – suprema presunção – algo novo? No momento em que nos propusemos tais questões, mesmo que permaneçamos longe das respostas exatas, é natural que alguma verdade se atinja, mesmo contra nós mesmos – a realidade às vezes dói. (E se não perguntamos, o que, mais precisamente, estamos fazendo nesse mundo?). Mesmo que as grandes verdades já tenham sido todas ditas, e de maneiras muito mais inspiradas que esse meu escrevinhar sem o mínimo apuro. E que, malgrado deixarmos de fazer coisas mais produtivas, o fato é que a resposta é não, as pessoas não irão ler o que escrevemos especialmente para elas. E, mesmo que lesse, a humanidade, por uma questão de ignorância, permanece unida apenas no que ela tem de pior: a própria ignorância e a aversão a verdades duras. Pergunto-me se acaso não estarei sendo crítico demais para com meus semelhantes. Em caso afirmativo, aceito de bom grado a pena com que queiram me punir, feliz por estar equivocado. Mas não vejo necessidade de punição: pois o que seria pior que escrever para ninguém?
Isso posto, talvez agora eu possa voltar a selar a paz com as palavras e quebrar esse silêncio de tantos meses. Na verdade, para ser mais exato, não era silêncio o que havia em meu cérebro, mas algo ritmado, como um repicar de sinos. E, pensando nos músicos elisabetanos esquecidos, lembro de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis por que nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”.
(Da escrita deste texto, fica uma lição, se houver um próximo nessa coisa incerta de escrever: lembrar de ao menos tentar abrir mão das citações e frases de efeito. Que Donne me perdoe por hoje, pois não era uma questão de efeito, mas sim de conteúdo. Por hoje, era só, e muito obrigado).

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Algumas palavras sobre o legado de nossos antepassados

“Muitas pessoas olham para o mundo e se perguntam: por quê? Eu penso em coisas que nunca existiram e me pergunto: por que não?”
George Bernard Shaw
A expressão pode até parecer estranha ou pouco adequada ao contexto, mas talvez a melhor maneira de definir o continente europeu à época do início da imigração alemã seja sob a forma de um grande museu de paradoxos. Entre os diversos aspectos a serem considerados, estava o fato de muitos países se encontrarem numa situação de total devastação após as derrotas napoleônicas. A esse respeito, o filósofo Will Durant se interroga por que a primeira metade do século 19 “levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas” na literatura. Na música, esse aspecto pouco afeito à vida e à sua continuidade encontrou vozes altamente expressivas em compositores como Schubert, Schumann, Chopin e o próprio Beethoven em seu período tardio, pós-Nona Sinfonia: a famosa Ode à Alegria, que encerra essa grande obra estreada em 1824, não poderia ter vindo à luz numa atmosfera menos condizente. Na filosofia, o espírito não era outro: Arthur Schopenhauer publicava, em 1818, sua “grande antologia do infortúnio”, intitulada O mundo como vontade e representação, que, poucas décadas após seus surgimento, se converteria em uma das mais importantes vigas de sustentação do pensamento ocidental. Segundo Durant, “por toda a parte, no Continente, a vida tinha que recomeçar do zero, para recuperar dolorosa e lentamente o civilizador excedente econômico que havia sido consumido na guerra”. Também entrou para a história uma frase de Goethe que ilustra e define o estado de ruína desse período: “Agradeço a Deus por não ser jovem em um mundo tão inteiramente liquidado”.  
Se por um lado a situação era consequência da guerra, por outro a miséria era trazida por outra revolução, essa de caráter industrial. De início verificados na Inglaterra, aos poucos os frutos inesperados do progresso e dos avanços tecnológicos se estendiam para o resto da Europa, substituindo a mão de obra humana por máquinas, levando dessa forma milhares de trabalhadores, como luveiros, ferreiros, carpinteiros e tecelões ao desemprego e, em consequência, à miséria. A esses fatores, pode-se acrescentar, a respeito do empobrecimento no campo, as sucessivas divisões hereditárias. Outro motivo causador de descontentamento era o serviço militar obrigatório, que, em tempos de guerra, estendia-se até que a paz fosse restaurada.
Havia também os interesses do Império brasileiro na vinda de imigrantes; não se pode esquecer que a esposa de Dom Pedro I, Leopoldina, era filha do Francisco I, da Áustria. Consciente da situação do país de origem da imperatriz e atendendo de início ao interesse de formar um exército, para depois voltar sua atenção aos camponeses, o governo imperial tratou de criar as condições necessárias para a vinda dos primeiros imigrantes. A primeira leva, como se sabe, aportou nas margens do Rio dos Sinos em 25 de julho de 1824. Inicialmente, eram concedidos a cada um 77 ha de terra, além de ferramentas, gado, sementes, entre outros auxílios. Contudo, sabe-se que tais promessas não foram cumpridas na totalidade dos casos. Bastante difundida é a seguinte frase, repetida a muitos dos alemães que aqui chegavam: “Aqui está a terra. De agora em diante, vire-se”.
Conhecidos por um grande sentimento de apego às raízes e à cultura de seu idioma, o chamado germanismo, a imigração em princípio pode ter parecido uma ideia absurda a muitos alemães da época. Contudo, diante de um quadro amplamente desfavorável, parece natural que recomeçar a vida em outro país, na chamada “Terra da liberdade”, tenha sido visto como o único ponto luminoso no horizonte. A frase do dramaturgo Bernard Shaw, na epígrafe, dependendo do contexto em que for observada, sugere que muitas vezes os grandes momentos da história nascem exatamente de seu aspecto de total absurdo, em meio a momentos da mais absoluta calamidade, para a qual não existe solução senão no impensável. Do contrário, como entender que tantos homens e mulheres de todas as idades tenham concordado em despedir-se para sempre de sua terra de origem, de seu passado, de seus familiares, para embarcar em uma aventura que não era o fim das dificuldades, mas o começo de uma outra grande saga?
Hoje, passados quase dois séculos, não falta quem afirme que tal visão heroica do ato desses desbravadores não é fiel, e sim exagerada, romântica, pois de fato não havia alternativa para o caso de desejar-se prosseguir e continuar a tarefa designada a todos, que é viver. Todavia, um fato é consensual entre os descendentes de imigrantes: todos que buscam no passado as origens da família e sua história encontrarão basicamente fome e miséria. Pouco numerosas são, entre os imigrantes, as partículas sinônimas de nobreza, tal como von ou, de uso ainda mais raro, van; caso houvesse, seu uso se perdeu, entre muitos outros costumes. Mas a verdade inegável é que quem buscar se inteirar do seu passado e de suas raízes encontrará, salvo raras exceções, uma outra espécie de nobreza, aquela que não vem de berço, mas que costuma nascer aos poucos e em silêncio, não apenas em momentos extremos, mas também na simples vivência do cotidiano; uma forma de nobreza que permanece quase sempre inadvertida para quem realmente a possui e que guarda grande parentesco com a simplicidade. Ela surge através da maneira como se encara a vida, na postura ante seus constantes desafios, fazendo e escrevendo, no exercício de responder diariamente aos ditames do destino, através do trabalho, da abnegação e da ousadia, a sua e a nossa história.



Tal modo de ver pode levar-nos a questionar o valor e a real efetividade de nossas atitudes em relação ao passado, mais exatamente no que fazemos para preservá-lo e honrá-lo. Trata-se de uma questão que leva a pensar mais uma vez em Goethe. De acordo com uma frase sua, “O legado de teus antepassados só se torna teu através dos teus próprios méritos”. Eis algo em que pensar, não apenas nesta data de 25 de julho, mas em todos os outros dias.
Pedro Weingärtner: Tempora Mutantur, 1898
Angelica Kauffman: retrato de Johann Wolfgang von Goethe, 1775

sábado, 30 de junho de 2012

Outra vez a humildade, as noites estreladas e Van Gogh


Uma das questões que me proponho com maior frequência é sobre a possibilidade – ou não – de escrever sem levar em consideração o momento exato em que alinhamos as palavras e as dispomos de maneira a que sirvam ao nosso propósito de dizer algo que tenhamos em mente e que, segundo nosso modo de pensar, acreditamos ter alguma utilidade ao público-alvo. Porque, ao menos no meu modo de vivenciar a escrita, qualquer coisa que resulta em um texto, na maior parte das vezes, nasce dos acontecimentos mais fortuitos, aqueles que, prosaicos, constituem os momentos mais triviais da minha rotina de cada dia. Escrever não é mais que uma maneira de assimilar melhor fatos que, não fosse o modo como os organizo em parágrafos, permaneceriam na categoria de “achados e perdidos”, aguardando uma assimilação lenta, que se dá por etapas, muitas vezes trabalhosas, até que acabem fazendo parte de um modo de ser e de pensar. É inevitável que, nesse processo, os assuntos se tornem recorrentes e reapareçam de tempos em tempos, e não creio na possibilidade de ser de outro modo; pois o que nos choca, o que nos chama atenção, ou o que nos parece belo, são coisas que pertencem a categorias já estabelecidas, que são acrescidas, com o passar do tempo, de novos elementos, de novos modos de ver, numa lenta elaboração daquilo a que normalmente se chama identidade. Sei que não é tão simples, mas é o que posso dizer por enquanto.
Não faz muito tempo que postei neste espaço um texto em que lembrava um antigo hábito de meus ancestrais, hábito que me esforço por manter e, ao menos dentro de minhas pequenas possibilidades, legar aos que deverão ficar: o ato de contemplar as estrelas. Não ignoro que eram outros tempos e que, de lá para cá, a moderna tecnologia colocou à disposição dos meus contemporâneos um número bastante elevado de novas maneiras de passar seu tempo à noite, e, dessa forma, os céus foram pouco a pouco perdendo o seu público para o capítulo da novela ou para o facebook. As novas gerações, privadas de tal espetáculo noturno, acabaram também perdendo um ganho secundário que seus antigos apreciadores levavam de brinde: o senso exato de sua dimensão e, consequentemente, da noção de humildade. Não quero dizer que, para ser humilde, é preciso postar-se com certa frequência à noite sob abóbadas estreladas e esperar que, sob sua luz, ela exerça magicamente seu efeito de choque de realidade. Basta apenas não perder a noção de si mesmo, levando em consideração mesmo os aspectos mais básicos, como a consciência da finitude e a noção de, seja qual for o número de pessoas que se tenha como contatos na já mencionada rede social, o que conta mesmo é o número, geralmente muito restrito, de pessoas que realmente logramos atingir, e mesmo assim, de uma maneira bastante limitada, como uma ou outra ideia, uma palavra no vocabulário, etc. Isso sem perder de vista que, seja qual for a nossa contribuição na paisagem em nosso redor, ela não sobreviverá a uma ou duas gerações, até a sua total extinção.  Por pensar desse modo, acontece de eu às vezes sou considerado amargo, talvez também em razão da forma como expresso minhas crenças, sempre recorrendo a palavras tais como finitude, limites, etc. Em minha defesa, repito o que anteriormente já escrevi: é exatamente no fato de sermos transitórios que reside nossa grandeza. Tenho plena consciência do lugar-comum que as linhas acima representam. Escolho, porém, correr o risco de ser pouco original, passando de um momento a outro, e sem pudor, a ser isso mesmo: antigo.
Não existe exceção que confirme a seguinte regra: sempre escrevo sob o efeito de um entre dois sentimentos distintos: o encantamento e a perplexidade. Embora possam muitas vezes ser confundidos, existe um contraste polar entre esses dois hemisférios. São, todavia, duas faces de uma mesma moeda. O que me mobiliza hoje e que me leva a pensar nos meus bisavós, suas enxadas e suas estrelas, é a percepção da incapacidade, ou da falta de vocação, não sei, de certas gerações para as noções mais rudimentares de humildade. A respeito dessa virtude, dizem-se muitas coisas, entre as quais, o fato de ser ela mãe de todos os demais dons; pelo pouco que me é dado conhecer, sou ignorante a respeito da veracidade dessa afirmação. Mas acredito que nela haja muita lógica: tenho grande dificuldade de entender como se poderia desenvolver dons, qualidades, enfim, virtudes, se as pessoas em questão revelam imensa dificuldade em ter um mínimo que seja de humildade. Não que eu reprove, em algumas pessoas, a alta conta em que se têm a si mesmos; difícil, isso sim, é concordar com um fato tido por elas como indubitável, indiscutível: o fato de sempre julgarem estar certos sobre tudo e a crença de que jamais cometem erros. A situação, que parece corriqueira, se agrava no momento em que esses próprios seres, do alto de seu pedestal, começam a olhar para baixo e buscam nos levar a imitar o seu exemplo e segui-los naquilo que creem possuir de mais genuíno: a própria humildade. E me questiono se está errado concluir que a arrogância, isto é, o extremo oposto da virtude em questão, conduz fatalmente à cegueira, impedindo não só que se enxergue as reais dimensões de si mesmo, como também levando a um vicioso círculo, que culmina, de maneira invariável, no desenvolvimento dos piores e mais lamentáveis defeitos. Talvez a origem disso tudo esteja na supressão do silêncio, sobre o qual já me detive anteriormente, e na privação de algo fundamental para o desenvolvimento da personalidade: o saber olhar-se a si mesmo em profundidade. Penso que a explicação para tal fenômeno esteja nas palavras de Lars Svendsen, em sua obra A filosofia do tédio: “Em vez da solidão, abraçamos o egocentrismo, e nele somos dependentes dos olhares de outros: tentamos preencher todo o seu campo de visão, procurando nos afirmar. O egocêntrico nunca tem tempo para si, somente para o reflexo de si que encontra nos outros. Ele nunca encontra paz em relação a seu pequeno e encolhido eu, no entanto é forçado a inflar um eu exterior de enormes proporções – mas trata-se de um eu gigantesco, e quem o inventou tem cada vez mais dificuldade de preenchê-lo”.
Isso posto, lembro uma vez mais de meus bisavós e suas noites luminosas, imortalizadas sobretudo por Van Gogh. E me vejo diante de dúvidas, tais como saber onde foram parar, por exemplo, o amor ao silêncio que nasce juntamente com o amor à música, bem como o amor à riqueza das palavras. Mas meus ancestrais, bem como seus hábitos, estão mortos e enterrados há anos, e o horizonte que vislumbro à minha frente não é dos mais animadores. Todavia, quando o nosso próprio tempo não nos traz alento, sempre é possível recordar o passado. Muitas vezes esse é o único consolo que nos resta.
(Peço a meus leitores que perdoem as repetições. E, uma vez mais, este texto não teria sido possível sem a referência ao filósofo norueguês. O caminho para me considerar escritor, junto com a capacidade de concisão, está muito além da linha do horizonte. Mas não penso em desistir, humildemente ou não. Aliás, não creio ser possuidor dessa virtude: é realmente humilde apenas aquele que se desconhece como tal).
Vincent Van Gogh: “Starry Night over Rhone”