domingo, 29 de julho de 2012

Quando as palavras nos abandonam

Embora na verdade tivesse uma certa aparência de ritual, não havia muito mistério nisso de escrever. Basicamente, eram apenas um ou dois pré-requisitos a serem respeitados, alguma inspiração e o trabalho de colocar-se à escuta, e o texto nascia fluente, como se eu apenas transcrevesse algo que já existia inteiro em sua forma final, mas em outra esfera. Tudo na verdade muito simples, pouca coisa para explicar e nada para entender. O leitor atento terá percebido que usei o verbo no passado: “havia”. Pois, de alguns meses para cá, escrever se tornou tudo, menos um processo simples, e não é verdade que não tenha me esforçado. Muito pelo contrário. Gastei semanas em tentativas inúteis de produzir algo que lembrasse a dignidade de textos anteriores, mas era como se nada do que brotasse de minhas mãos tivesse o direito de sobreviver para contar sua breve história de inexistência. E verifiquei por experiência própria o fato de que nos acostumamos a tudo, ou a quase tudo: eu já havia me habituado a esse processo contínuo de escrever para descartar, muitas vezes sem mesmo perder tempo em releituras vãs, que, por si, não trazem sopro algum ao que já nasce sem vida. Tudo em vão.
E, embora não pudesse ser assim considerado, como já disse, busquei as aparências de ritual para procurar vencer esse silêncio que, em lugar das antigas palavras querendo vir ao mundo, passou a me habitar de uma hora para outra, quando eu menos esperava, e que me fez mudo ante um mundo que, de um momento a outro, se tornara paradoxalmente de uma eloquência nunca antes experimentada, ao menos para mim. Conforme escreveu Susan Sontag em um ensaio, em literatura o tempo existe para que não aconteça tudo de uma vez, enquanto que o espaço serve para que não aconteça tudo com a mesma pessoa. O fato é que, por algum tempo, senti como se eu fosse a exceção viva dessa regra, sem tempo e sem fôlego para assimilações. Se eu mesmo disse há tempos atrás que as palavras nascem do silêncio, a minha dedicação em observar essa ausência de ruído conseguia produzir apenas ecos vazios e cópias idênticas em significado a essa mudez de que de me vi tomado.  E a escrivaninha, preparada como um altar para ofícios sagrados, continha livros, canetas-tinteiro, papel branco e o violino em estanho inclinado em seu suporte. Tudo ao som de “Clair de lune”. E tudo em vão, outra vez. Da experiência, só restou a comparação com outros altares, outras mesas, como aquelas que, relembrando tempos imemoriais, reúnem até hoje congregações em torno da repartição dos pães, do vinho. Seria essa comparação uma inveja guardada ou expressão de desejo por reunir-me a esses irmãos? Pode ser. Creio que talvez, a essas alturas e nas atuais circunstâncias, seria bom e consolador, já que as palavras me deixaram só, pertencer a alguma coisa que seja. Mas para isso é necessário antes de tudo fé, e pré-requisitos não podem ser fabricados de uma hora para outra, para nosso uso. Como seria fácil se assim fosse. E, por uma questão de princípios, mentir é coisa que não faz parte de meus hábitos.
Tendo me tornado uma criatura do silêncio, ou de sujeito momentaneamente privado de palavras, procurei ampliar meu conhecimento musical. Nenhum esforço é vão, e posso dizer mesmo que ganhei muito com isso. Novos intérpretes, novos instrumentos, novos gêneros... é incrível a habilidade que alguns musicólogos possuem – ou acreditam ter – para reunir todo um período – no caso, a Inglaterra elisabetana, em apenas dois ou três discos. Impossível deixar de questionar que critérios foram levados em consideração para tais compilações. Quantos instrumentistas e compositores terão dedicado suas vidas inteiras a compor e, no momento da seleção, por uma simples questão de opinião, foram deixados de fora? Outra coisa: nesse período em que permaneci ágrafo, ao contrário do que talvez se imagine, li muito. Na verdade, não tendo a me sussurrar no ouvido vozes dizendo sobre o que escrever, li como nunca antes na vida. Diga-se também de passagem que o meu trabalho também não ficou prejudicado com esse meu não tão repentino silenciar. Para usar de sinceridade, talvez a ausência de palavras já se anunciasse no instante exato em que, ainda menino, brotaram as primeiras palavras, décadas atrás, das quais tenho pouca recordação, e creio não ser errado supor que o fim de qualquer coisa que seja está já em seu início, em gestação. Algumas questões se tornam inevitáveis, não apenas a quem escreve, mas a todos nós: há quanto tempo se faz da escrita razão de viver? Quantos morreram no cumprimento desse ofício? Em que a humanidade melhorou com toda a dedicação dos homens que se sacrificaram para lhes legar um universo de palavras? O que as pessoas leem, hoje em dia? Com o que estarei contribuindo, se deixar de ler ou estudar partituras para dizer – suprema presunção – algo novo? No momento em que nos propusemos tais questões, mesmo que permaneçamos longe das respostas exatas, é natural que alguma verdade se atinja, mesmo contra nós mesmos – a realidade às vezes dói. (E se não perguntamos, o que, mais precisamente, estamos fazendo nesse mundo?). Mesmo que as grandes verdades já tenham sido todas ditas, e de maneiras muito mais inspiradas que esse meu escrevinhar sem o mínimo apuro. E que, malgrado deixarmos de fazer coisas mais produtivas, o fato é que a resposta é não, as pessoas não irão ler o que escrevemos especialmente para elas. E, mesmo que lesse, a humanidade, por uma questão de ignorância, permanece unida apenas no que ela tem de pior: a própria ignorância e a aversão a verdades duras. Pergunto-me se acaso não estarei sendo crítico demais para com meus semelhantes. Em caso afirmativo, aceito de bom grado a pena com que queiram me punir, feliz por estar equivocado. Mas não vejo necessidade de punição: pois o que seria pior que escrever para ninguém?
Isso posto, talvez agora eu possa voltar a selar a paz com as palavras e quebrar esse silêncio de tantos meses. Na verdade, para ser mais exato, não era silêncio o que havia em meu cérebro, mas algo ritmado, como um repicar de sinos. E, pensando nos músicos elisabetanos esquecidos, lembro de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis por que nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”.
(Da escrita deste texto, fica uma lição, se houver um próximo nessa coisa incerta de escrever: lembrar de ao menos tentar abrir mão das citações e frases de efeito. Que Donne me perdoe por hoje, pois não era uma questão de efeito, mas sim de conteúdo. Por hoje, era só, e muito obrigado).

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Algumas palavras sobre o legado de nossos antepassados

“Muitas pessoas olham para o mundo e se perguntam: por quê? Eu penso em coisas que nunca existiram e me pergunto: por que não?”
George Bernard Shaw
A expressão pode até parecer estranha ou pouco adequada ao contexto, mas talvez a melhor maneira de definir o continente europeu à época do início da imigração alemã seja sob a forma de um grande museu de paradoxos. Entre os diversos aspectos a serem considerados, estava o fato de muitos países se encontrarem numa situação de total devastação após as derrotas napoleônicas. A esse respeito, o filósofo Will Durant se interroga por que a primeira metade do século 19 “levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas” na literatura. Na música, esse aspecto pouco afeito à vida e à sua continuidade encontrou vozes altamente expressivas em compositores como Schubert, Schumann, Chopin e o próprio Beethoven em seu período tardio, pós-Nona Sinfonia: a famosa Ode à Alegria, que encerra essa grande obra estreada em 1824, não poderia ter vindo à luz numa atmosfera menos condizente. Na filosofia, o espírito não era outro: Arthur Schopenhauer publicava, em 1818, sua “grande antologia do infortúnio”, intitulada O mundo como vontade e representação, que, poucas décadas após seus surgimento, se converteria em uma das mais importantes vigas de sustentação do pensamento ocidental. Segundo Durant, “por toda a parte, no Continente, a vida tinha que recomeçar do zero, para recuperar dolorosa e lentamente o civilizador excedente econômico que havia sido consumido na guerra”. Também entrou para a história uma frase de Goethe que ilustra e define o estado de ruína desse período: “Agradeço a Deus por não ser jovem em um mundo tão inteiramente liquidado”.  
Se por um lado a situação era consequência da guerra, por outro a miséria era trazida por outra revolução, essa de caráter industrial. De início verificados na Inglaterra, aos poucos os frutos inesperados do progresso e dos avanços tecnológicos se estendiam para o resto da Europa, substituindo a mão de obra humana por máquinas, levando dessa forma milhares de trabalhadores, como luveiros, ferreiros, carpinteiros e tecelões ao desemprego e, em consequência, à miséria. A esses fatores, pode-se acrescentar, a respeito do empobrecimento no campo, as sucessivas divisões hereditárias. Outro motivo causador de descontentamento era o serviço militar obrigatório, que, em tempos de guerra, estendia-se até que a paz fosse restaurada.
Havia também os interesses do Império brasileiro na vinda de imigrantes; não se pode esquecer que a esposa de Dom Pedro I, Leopoldina, era filha do Francisco I, da Áustria. Consciente da situação do país de origem da imperatriz e atendendo de início ao interesse de formar um exército, para depois voltar sua atenção aos camponeses, o governo imperial tratou de criar as condições necessárias para a vinda dos primeiros imigrantes. A primeira leva, como se sabe, aportou nas margens do Rio dos Sinos em 25 de julho de 1824. Inicialmente, eram concedidos a cada um 77 ha de terra, além de ferramentas, gado, sementes, entre outros auxílios. Contudo, sabe-se que tais promessas não foram cumpridas na totalidade dos casos. Bastante difundida é a seguinte frase, repetida a muitos dos alemães que aqui chegavam: “Aqui está a terra. De agora em diante, vire-se”.
Conhecidos por um grande sentimento de apego às raízes e à cultura de seu idioma, o chamado germanismo, a imigração em princípio pode ter parecido uma ideia absurda a muitos alemães da época. Contudo, diante de um quadro amplamente desfavorável, parece natural que recomeçar a vida em outro país, na chamada “Terra da liberdade”, tenha sido visto como o único ponto luminoso no horizonte. A frase do dramaturgo Bernard Shaw, na epígrafe, dependendo do contexto em que for observada, sugere que muitas vezes os grandes momentos da história nascem exatamente de seu aspecto de total absurdo, em meio a momentos da mais absoluta calamidade, para a qual não existe solução senão no impensável. Do contrário, como entender que tantos homens e mulheres de todas as idades tenham concordado em despedir-se para sempre de sua terra de origem, de seu passado, de seus familiares, para embarcar em uma aventura que não era o fim das dificuldades, mas o começo de uma outra grande saga?
Hoje, passados quase dois séculos, não falta quem afirme que tal visão heroica do ato desses desbravadores não é fiel, e sim exagerada, romântica, pois de fato não havia alternativa para o caso de desejar-se prosseguir e continuar a tarefa designada a todos, que é viver. Todavia, um fato é consensual entre os descendentes de imigrantes: todos que buscam no passado as origens da família e sua história encontrarão basicamente fome e miséria. Pouco numerosas são, entre os imigrantes, as partículas sinônimas de nobreza, tal como von ou, de uso ainda mais raro, van; caso houvesse, seu uso se perdeu, entre muitos outros costumes. Mas a verdade inegável é que quem buscar se inteirar do seu passado e de suas raízes encontrará, salvo raras exceções, uma outra espécie de nobreza, aquela que não vem de berço, mas que costuma nascer aos poucos e em silêncio, não apenas em momentos extremos, mas também na simples vivência do cotidiano; uma forma de nobreza que permanece quase sempre inadvertida para quem realmente a possui e que guarda grande parentesco com a simplicidade. Ela surge através da maneira como se encara a vida, na postura ante seus constantes desafios, fazendo e escrevendo, no exercício de responder diariamente aos ditames do destino, através do trabalho, da abnegação e da ousadia, a sua e a nossa história.



Tal modo de ver pode levar-nos a questionar o valor e a real efetividade de nossas atitudes em relação ao passado, mais exatamente no que fazemos para preservá-lo e honrá-lo. Trata-se de uma questão que leva a pensar mais uma vez em Goethe. De acordo com uma frase sua, “O legado de teus antepassados só se torna teu através dos teus próprios méritos”. Eis algo em que pensar, não apenas nesta data de 25 de julho, mas em todos os outros dias.
Pedro Weingärtner: Tempora Mutantur, 1898
Angelica Kauffman: retrato de Johann Wolfgang von Goethe, 1775