sábado, 8 de dezembro de 2012

J. M. Coetzee: A vida dos animais

Ao escrever para este espaço, devido à minha convivência com os livros, acontece com certa frequência de acabar abordando de maneira repetida os mesmos assuntos. A repetição, literalmente, não é novidade alguma. Não vejo, seja no dia a dia, seja na literatura ou na filosofia, hierarquia quanto a temas; creio que tudo que se refere à existência acaba fatalmente por ter sua importância, e se às vezes nos esquecemos do que na verdade, ao menos do ponto de vista ético, deveria vir em primeiro lugar, é por uma questão que depõe contra nós, humanos, que nos consideramos os donos e ao mesmo tempo o centro do planeta. Muitos desses temas são espinhosos e, não raro, chega a ser arriscado abordá-los, por constituírem um ponto nevrálgico de intensos debates, sem que se chegue jamais a um consenso ou a qualquer coisa que signifique concordância entre as partes. Mesmo agora, empreendo este texto com certo receio.
Faz muito tempo que planejava escrever sobre algumas questões referentes aos animais. Houve uma época em que, como aspirante a escritor, adorava escrever contos sobre gatos, cachorros, galinhas ou mesmo um pato. Eram histórias reais, que agora jazem no devido – e merecido - esquecimento. A razão para preferir os animais como personagens reside em algo que dificilmente alguém poderá contestar: pelo simples fato de encontrar neles uma inocência que dificilmente encontraria numa criatura humana. Dizem as escrituras que Deus, ao criar o mundo, concedeu a Adão o domínio sobre a natureza, incluindo-se aí as demais criaturas; creio que nada pode haver de mais conveniente, para uma civilização desde o início antropocêntrica, receber do próprio criador licença para dispor da natureza como bem entender. O que me incomoda nisso não é tanto a presunção; incomoda-me mais a gigantesca submissão em que, nesse arranjo, ficam os animais, criados e entregues a nós como se fôssemos uma espécie muito particular de divindades.
Faz anos que li a obra A vida dos animais, de J. M. Coetzee. Não posso dizer que foi um despertar, porque desde sempre tive animais de estimação e considerava-me sensível, digamos, aos seus sentimentos. Em todo caso, depois da leitura dessa obra, com a constante lembrança de algumas passagens, até hoje guardo dificuldade em uma coisa que antes fazia sem sequer um mínimo de questionamento: a alimentação. Para apresentar seu tema, o escritor usa não o ensaio, como seria de supor, mas a narrativa; quem faz as conferências é um alter-ego – não sei se pode ser assim considerada - do autor, a escritora Elizabeth Costello. A obra narra a maneira um tanto atrapalhada como a personagem defende seu tema, fazendo-se porta-voz dos animais e referindo-se às granjas e aos matadouros como uma indústria de morte. Não seria correto dizer que, ao fazer um paralelo com o Holocausto, ela está minimizando a gravidade dos campos de extermínio; ela apenas quer dizer que essa carnificina, tendo agora como vítima os animais, continua a ocorrer em locais bem perto de nós, em uma forma legalizada, sem que nos importemos um mínimo que seja, com a comodidade de receber todos os dias, no conforto de nossas casas, de nossas mesas, “o suco de feridas mortais”, como costuma dizer, citando Plutarco. Interrogada sobre o que pretende com suas manifestações e, particularmente, com o abster-se de comer carne, ela responde simplesmente que deseja salvar sua alma.
Convivendo desde sempre com animais – gatos, cachorros -, posso dizer que tenho uma noção do funcionamento da cadeia alimentar. O que me levou a abordar esse assunto hoje foi uma cena que já se repetiu inúmeras vezes, mas que por um momento, devido a uma razão especial, me levou a lembrar da personagem de Coetzee: na tentativa de salvar a vida de um pardal, tirado da boca de um dos meus felinos, testemunhei a agonia do pequeno pássaro – um filhote – e sua luta pela vida, debatendo-se em minhas mãos em movimentos desesperados, até que, exaurido, foi imobilizado por uma força superior. Os carnívoros de plantão possivelmente dirão que superestimo um acontecimento que se repete milhares e milhares de vezes e que, apenas pelo fato de ter sido presenciado, causou em mim aquela piedade que os seres humanos, para se sentirem superiores, gostam às vezes de sentir. A esses eu respondo que não se trata disso. Na verdade, lembrei uma passagem em que Costello conta um episódio da infância de Albert Camus, que, horrorizado, viu sua avó dar cabo de uma galinha, presenciando a desesperada luta do animal pela vida. Décadas depois, Camus escreveria um texto que seria vital para a abolição da pena de morte na França. É nesse ponto que a personagem questiona seus ouvintes, desafiando qualquer um a dizer que a galinha não falou. De minha parte, responderia que existem formas de linguagem muito mais eloquentes que as nossas muitas vezes anódinas palavras: a luta pela vida e o desespero diante da morte são apenas dois entre inúmeros dialetos, que se revelam também na confiança com que algumas espécies, como gatos e cachorros, especialmente, se abandonam a nós, em total confiança. Gaston Bachelard chega a ser comovente quando fala, em A poética do espaço, do grau de confiança cósmica que um pequeno pássaro deposita no mundo ao construir seu ninho – uma confiança de que recebemos repetidos exemplos todos os dias.
Os rituais de sacrifício são um capítulo árido e longo na história da humanidade e, ao mesmo tempo, um adendo revestido de toda a naturalidade do mundo quando o assunto é a história das religiões. Há séculos atrás, havia toda uma mitologia por trás de tais práticas, uma forma de legitimação, talvez. Posso estar errado quanto a um aspecto, e gostaria imensamente que assim fosse, mas ao mesmo tempo em que vejo a história da humanidade, vejo também o triste capítulo de seu empobrecimento em valores espirituais, a despeito de o número de religiões não parar de crescer. Em relação aos animais, o que se perdeu foi a parte mitológica, permanecendo apenas a carnificina. Em sua obra, Coetzee, através de Costello, interroga as reais diferenças entre matar um animal e matar um ser humano; o simples fato de um ser racional e o outro não poderia ser uma maneira de a razão colocar a si própria numa espécie de trono: “Deus é um deus de razão. O fato de que graças à razão se possa chegar a compreender as leis que regem o universo demonstra que a razão e o universo têm a mesma essência. E o fato de que os animais, não tendo razão, não possam compreender o universo mas devam limitar-se a obedecer cegamente suas leis, demonstra que, diferentemente do homem, eles fazem parte dele mas não participam de seu ser: demonstra que o homem é como Deus e os animais, como coisas”.  
É possível que alguém, ao ler este texto, me perguntasse, diante de tais considerações, o que mais exatamente pretendo com tais palavras. Não poderia responder, como Elizabeth Costello, que tenho em vista a salvação de minha alma. Tampouco se trata de escrever para desabafar e para amanhã, no almoço, depois de “ter feito minha parte”, poder comer em paz e sem razões para culpa. Também não é esse o caso, pois a culpa é algo que se carrega, e não apenas se sente como uma dor de cabeça passageira. Minha intenção é apenas dizer que precisamos de um pouco mais de reflexão quanto ao modo desenfreado como, digamos, obedecemos a Deus ao exercer nosso domínio sobre o mundo; lembrar que não somos os únicos a habitá-lo. E ter sempre em mente esta breve reflexão de Claudio Magris: “Mas mesmo quando a trompa de Fidélio ressoasse, a humanidade liberada devia recordar-se, no último andar do arranha-céu onde morasse, de todos os humilhados e dolorosos andares inferiores que sustentam, como escrevia Horkheimer, aquele andar superior. No subsolo mais abaixo, sobre o qual se apoia todo o edifício que lá em cima oferece um concerto de Mozart ou um quadro de Rembrandt, mora o sofrimento animal, corre o sangue do matadouro”.