quarta-feira, 25 de abril de 2012

À arte - uma tentativa de dedicatória


Diz um filósofo que “é no diálogo com a dor que muitas coisas belas adquirem seu valor”. Creio na verdade dessa afirmação: se a beleza tem a capacidade de nos comover, em grande parte é por sabermos que ela é a exceção, e não a regra. Todavia, isso não quer dizer que os apreciadores da beleza em suas manifestações artísticas sejam sofredores por vocação. Antes pelo contrário: saber apreciar o belo, acredito, tem sua origem antes de mais nada em saber viver, em fazer da busca do conhecimento e da melhoria – do que quer que seja - um ideal constante. A apreciação da beleza também possui a rara capacidade de despertar em nós algo que sabidamente é uma de nossas características mais essenciais como seres humanos: a consciência da transitoriedade de tudo que nos cerca, sem esquecer que esse estar de passagem diz respeito também a nós, além da noção de que a única certeza é a da impermanência. Talvez seja essa uma das razões que nos levam, quando diante de certas formas mais específicas de arte, além dos êxtases de intensidade variada, a sentir um certo grau de tristeza, podendo chegar, dependendo do grau de nossa entrega, a algo não muito longe de um breve, mas significativo desespero. Desespero, sim – não existe outra palavra para essa sensação inconsolável de que aquilo que em dado momento nos encanta em breve não passará de erva fenecida, seca, como perecíveis folhas de outono a sucederem-se no curso incessante das estações.

Existe um pensamento que expressa com perfeição a grandeza e ao mesmo tempo a miséria da humanidade: “O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”. Não sei em que contexto Hölderlin pronunciou essa sentença, mas não creio que exista outra frase capaz de sintetizar tão bem a conclusão a que chegamos quando diante de uma espécie de arte mais tradicional: a pintura de paisagens. Não me refiro aqui a qualquer estilo, mas sim a um exemplo específico: o rigor formal das pinturas a óleo da artista plástica Kelva Lucia Gorgone Novaes – que, através da obra “Cores de Outono 6”, passa a partir de hoje a ilustrar este espaço. Um simples exame de seus trabalhos torna dispensável a necessidade de uma apresentação mais formal. Mesmo porque não é necessário um olhar muito detido sobre suas obras para descobrir as razões que levaram Kelva a figurar no panteão dos mais conceituados e premiados artistas plásticos brasileiros: através de tons ora sóbrios, ora em pulsações de cores mais vivas, essa artista, radicada em Paraíso, São Paulo, soube criar com êxito um estilo extremamente característico, que reproduz com precisão uma espécie de arte que julgávamos não apenas extinta, mas também quase esquecida, e que, através de uma habilidade peculiar das mãos da pintora, se revela não só atual, mas também mais necessária do que nunca. Necessária para nos lembrar de um fato na verdade bastante simples: que, embora hoje se privilegiem tanto os estilos mais modernos, o clássico, a despeito de tudo e de todos, é eterno. Creio que seja consensual o fato de que, de certa maneira, toda arte é uma forma de resistência, algumas mais, outras menos. A resistência de Kelva Novaes se dá em relação ao fugaz, ao transitório. Isso posto em primeira instância, embora por si já não seja pouco, podemos dizer que suas obras são também muito mais do que isso: por meio dessas paisagens e naturezas mortas, temos o privilégio de ver reproduzidas atmosferas de sonho, cuja maior característica percebemos de maneira inesperada - justamente no momento em que delas desviamos o olhar, instante em que, ao termos diante de nossos olhos uma realidade nem sempre condizente com o devaneio, percebemos a verdade tão bem expressa na frase de Hölderlin. Sim, é claro que a arte existe para nos despertar para as mais diversas realidades. Mas também é verdadeiro que o primado da imaginação tem o objetivo, não menos nobre, de nos conduzir a estados que fogem aos domínios do sono e da vigília: o encantamento, o cenário de nossos sonhos e doces promessas de felicidade em paraísos ainda possíveis, que, conforme quero crer, jamais serão perdidos. Concordo que talvez eu tenha uma visão romântica demais da arte. Contudo, se existem limites para as possibilidades de experiência com a literatura, a música ou a pintura, ainda não os encontrei. Sei que me arrisco, mas diria um pouco mais: acredito que seja justamente através dessas experiências que, a partir do contato com as mais variadas representações da beleza, ultrapassamos nossos próprios limites. Se com isso não nos tornamos pessoas melhores, ao menos é fato que, a partir de nossas vivências com as mais diversas formas de arte, passamos a conviver em maior harmonia com o mundo à nossa volta e, por que não dizer, com maior conhecimento a respeito de nós mesmos, importante passo para todo processo de aprendizado.
Entre as várias centenas de canções compostas por Franz Schubert em sua breve existência, é difícil saber, entre tantas, quais seriam as prediletas dos intérpretes, bem como as mais inspiradas. São numerosas as coletâneas contendo, às vezes de forma exaustiva, aquelas consideradas, acima de qualquer discussão, suas obras-primas para piano e voz. Contudo, a presença quase constante, nessas antologias, de um lied de tocante simplicidade parece conduzir silenciosamente a questão das preferências a uma espécie de consenso. Trata-se de An die Musik (Á Música), composta por Schubert em 1817, quando contava 20 anos. Tendo por base versos de uma simplicidade quase ingênua, que dificilmente teriam sobrevivido sem a partitura, a peça não entrou para a história da música apenas como a profissão de fé do compositor, mas de todos os  cantores que se dedicaram a ela nestes quase duzentos anos. Em seus breves dois minutos e meio, An die Musik, embora tenha vindo ao mundo como um despretensioso exercício musical de um dos maiores compositores de que se tem notícia, acabou se convertendo em um agradecimento à arte dos sons e, indo um pouco além, à Arte em si. Neste poema, escrito por Franz von Schober, o sujeito lírico se dirige à própria arte, dizendo das tantas horas penosas em que a vida se revela um universo hostil (eis o “diálogo com a dor” evocado pelo filósofo), sendo as circunstâncias mais difíceis convertidas pela arte em um mundo infinitamente mais rico. A segunda estrofe, de estrutura semelhante, contém, em palavras mais diretas, uma declaração simples, mas de cuja sinceridade ninguém ousaria duvidar, tendo-se em vista dois testemunhos eloquentes: a experiência própria de cada um e o apaixonado arroubo expresso na melodia do lied mencionado: “Um doce, sagrado acorde de tua harpa me abriu os céus e me possibilitou a felicidade de uma vida melhor. Por isso, a ti, nobre arte, faço agora meu agradecimento”.
Quem canta tem o privilégio de fazer suas essas palavras. Eu, porém, que não tenho voz, limito-me a transcrever o básico desses versos, e, privado dessa nobre melodia, ouso acrescentar, em um breve sussurro, à música, à pintura, à literatura, no meu português mais simples e em palavras por completo desprovidas de harmonia, meu improvisado agradecimento. Ontem, hoje e sempre.
 Pinturas: Kelva Lucia Gorgone Novaes
 Franz Schubert, desenho de Moritz von Schwind