segunda-feira, 26 de março de 2012

Kathleen Ferrier e a pungente arte da transcendência

Ao iniciar um texto, acontece-me às vezes de ter apenas uma noção vaga do que virá após a primeira frase. Embora seja certo que o assunto já esteja escolhido, muitas vezes é difícil prever as vias que o tema irá trilhar. Longe de ser um problema, essa característica da escrita é o que a torna ainda mais fascinante aos meus olhos, mesmo que os resultados quase sempre deixem a desejar. Hoje, além dos pré-requisitos mais habituais, como o recolhimento e o silêncio, ocorre algo que também não constitui novidade, mas que traz um receio, ou, na verdade, um senso da justa medida das coisas: a consciência de que a minha capacidade de expressão está muito aquém do tema proposto, além de saber da quase inexistência de leitores que, por mais que eu me esforce na escolha de adjetivos e em descrições, compreenderão o que tenciono transmitir. Creio que não entenderão porque, apesar de existirem parâmetros fixos de qualidades que permitem a atribuição de juízos de valor, não é novidade que o sentimento que temos diante de qualquer coisa que seja, sendo algo relacionado à arte ou não, feitas as contas, não passa na realidade de mera subjetividade, ainda mais quando se trata da característica mais particular que uma pessoa pode ter, muito mais eloquente que impressões digitais: a voz, e, no caso em questão, uma certa voz.
É bastante conhecido o modo como Michelangelo definia seu ofício de escultor: tendo diante de si um bloco de mármore, sua arte consistiria em remover tudo que não fazia parte da forma desejada. Creio que com a voz humana, tida como o mais sensível entre os instrumentos musicais, o processo seja semelhante. Tem-se como ponto de partida uma matéria-prima em estado bruto e se dá início a um trabalho através do qual toda impureza é retirada, até que, depois de um longo processo de lapidação, reste somente a voz, límpida, pura e – o que a torna tão preciosa – única no mundo. É em razão do conhecimento, mesmo que vago, dos esforços e da dedicação necessários para esse processo que me encho de assombro e da mais completa perplexidade diante da voz da contralto inglesa Kathleen Ferrier.

Sempre quis escrever algo sobre essa intérprete única de Mahler – sobretudo de Mahler -, Brahms, Schubert, entre outros, mas a simples audição de suas gravações era um constante desestímulo. Por essa razão, deixei seus discos de lado por algum tempo. Mas não sei até que ponto o distanciamento de alguns dias, semanas ou mesmo meses ajuda quando nos sentimos tão intimamente ligados a personalidades que, a despeito de já não viverem no momento em que nascemos, em muitos casos são para nós tão conhecidos quanto alguns de nossos amigos. Por fazerem parte de nosso dia a dia, esse laço, como tantos outros vínculos, algumas vezes, dependendo da intensidade de nosso apego, é algo quase visceral. Esse é meu caso em relação a Kathleen Ferrier e a sua arte: muito mais do que simples admiração, é uma espécie de fervor. A perplexidade a que me referi acima pode ser explicada pelo fato de perceber que a característica que mais se evidencia em seu timbre é sua rara naturalidade, algo muito espontâneo. Em outras palavras, observa-se que seu registro grave não é o resultado de anos de dedicação em conservatório, mas algo muito particular, apenas seu. Os próprios professores a quem ela recorreu reconheceram que seu trabalho se resumiu a ensaiar seu repertório e a afinar sua voz, que, desde o primeiro dia, estava já toda ali. Some-se a isso a grande raridade do registro de contralto; na maior parte das vezes, o repertório para essa voz é cantado por mezzo-sopranos concentradas nos graves.
Toda a intensidade e a raríssima beleza da voz, além da extrema sinceridade das interpretações de Ferrier, podem ser verificadas numa discografia que muitas vezes lamentamos não ser maior: infelizmente, sua carreira não durou mais que dez anos, uma década verdadeiramente radiosa – o que, por outro lado, contribui em muito para tornar tais gravações ainda mais preciosas. Do seu catálogo, além de obras de Mahler, é digna de nota a gravação, feita em dezembro de 1947, da Rapsódia para Contralto, coro masculino e orquestra, op. 53, escrita por Brahms com base em texto de Goethe. Na interpretação dessa obra, a contralto inglesa imprimiu à peça o tom de resignada contenção que marcaria a maior parte dos registros posteriores dessa obra. Três anos depois, foi a vez das Quatro canções sérias, op. 121, também de Brahms, nas quais o estado de espírito, de grave austeridade, forma um verdadeiro teste de autenticidade para qualquer intérprete.
Autenticidade, aliada à mais completa entrega que se possa imaginar, talvez seja a palavra-chave para definir aquela que seria a gravação mais famosa de Kathleen Ferrier, realizada em 1952, e que entraria para a história da música como um dos clássicos do disco: A canção da terra, de Gustav Mahler, regida por seu discípulo Bruno Walter. O compositor começou a musicar partes desse ciclo de poemas chineses em 1907, pouco depois da morte de sua filha mais velha, de apenas quatro anos. Pouco depois desse acontecimento, outro golpe aguardava Mahler: o diagnóstico, por um especialista, das condições precárias de seu próprio coração. Pode-se imaginar, a partir dessas informações básicas, o significado e a força dessa obra. Dizer que se trata de um verdadeiro testamento musical é dizer pouco. Muito mais do que isso, o ciclo forma uma expressão da filosofia do compositor, baseada em um sentimento de amor à vida, à natureza e à terra, de cujos benefícios podemos desfrutar por um breve período para logo depois partir, enquanto esta se renova ano após ano, eternamente. A parte final, Der Abschied, isto é, O adeus, é uma síntese tocante e de rara intensidade dessa realidade. Segundo o crítico Michael Kennedy, “é praticamente impossível ouvir-se esta gravação sem levar em conta as circunstâncias pessoais dos artistas envolvidos – Walter, o amigo do compositor, e Ferrier, que soube, enquanto fazia a gravação, que o Abschied seria seu próprio adeus e que a terra bem-amada só voltaria a florir para ela mais uma vez. Como Mahler, ela respondeu ao desafio da sentença de morte (por câncer, em 1953) atingindo o pináculo de sua arte. Sim, é verdade que seu Sol agudo sente um pouco o esforço, mas o fulgor, a vibração e a compaixão transcendental de seu canto aqui o colocam acima de qualquer crítica mais negativa”.

Enquanto escrevia esse texto, soube que o próximo dia 22 será o centenário de nascimento de Kathleen Ferrier. Para ser sincero, devo confessar que soube da proximidade desse centenário apenas por acaso, ao procurar por fotografias para ilustrar este texto: ou seja, não passa de uma feliz coincidência. Talvez eu esteja equivocado, mas penso que essas datas têm sua importância, sim, mas apenas para nos lembrar que grandes personalidades das artes e da filosofia são, antes de tudo, pessoas como nós. De resto, não dou muita importância, isso por pensar que certos artistas, em virtude de sua grandeza, depois de deixarem este mundo, passam a habitar outra esfera. Não gostaria de chamá-la de eternidade; mas creio que, de certa forma, constitui uma espécie muito particular  de imortalidade, reservada a poucos. E reverenciar esses artistas, bem como sua arte, é, como já disse, uma questão de fervor, sentimento que independe por completo de datas.

Kathleen Ferrier, fotografia de Houston Rogers
Gustav Mahler, retrato de Michael Dudash

quinta-feira, 15 de março de 2012

Quantos somos, afinal, e o que enxergamos – Breve reflexão sobre Pirandello, Ofélia e Nietzsche

O ato de escrever, em alguns casos - e forçando um pouco a analogia -, pode ser comparado a uma tentativa de olhar-se no espelho com a finalidade de aproximar-nos um pouco do que somos e do que pensamos, diminuindo, através das respostas que surgem aos poucos, as vastas extensões de fatos que permanecem sempre no universo do desconhecido. É óbvio que a compreensão da maior parte das questões teima em ficar sempre muito além de nosso sempre limitado alcance, e se é por acaso o fato de que essas constituem para nós as dúvidas de mais premente necessidade de esclarecimento, é coisa que ignoro. Hoje o desafio do espaço em branco é duas vezes maior: além da obrigação moral de preenchê-lo com algo que valha um pouco mais que a alvura imaculada, há a tentativa de encontrar soluções possíveis para algo que pertence a esse campo mencionado acima: o do desconhecimento, sobre o qual me detenho mesmo sabendo da pouca possibilidade de encontrar algo além da incerteza - essa sim, constante. Contudo, ciente da pequena possibilidade de sucesso quanto aos resultados, ficarei muito satisfeito se encontrar, através dessa divagação, um pouco de paz em relação a algo indefinível, sem nome e que talvez exista em nós com o propósito único de nos levar à reflexão, como inimigo eterno da aparente quietude das respostas definitivamente esclarecedoras.
Quando o assunto em pauta é nossa identidade, o pensamento muitas vezes cede espaço ao senso comum. Sabemos que se trata de algo que vamos construindo ao longo dos dias que compõem nossa vida e que, em função de sucessivas experiências, diálogos, leituras, decisões, tomadas de postura etc., está sempre sofrendo alterações e acréscimos. É um processo que só encontra interrupção no final da jornada, e mesmo assim seremos surpreendidos entre uma posição e outra, como que em fuga, talvez no auge desse fenômeno que é a nossa formação. Fiz referência acima ao espelho, objeto cuja fidelidade em relação à realidade é tida como inquestionável. Contudo, creio que esquecemos com mais frequência do que deveríamos que, quando nos miramos na superfície aquosa, nós o fazemos com nossa visão subjetiva: a imagem que vemos refletida depende em tudo da nossa própria lucidez e lealdade em relação a nós mesmos. Lembrando Hume, talvez muito mais coisas, e não apenas a beleza, estejam na mente de quem contempla, e deformações ou aperfeiçoamentos surgem a partir desse fato. Em todo caso, não é diante do espelho, esse símbolo da vaidade humana, que nos deparamos com as maiores surpresas, ou mesmo alguns eventuais sustos. Eles podem vir tanto de um comentário banal a nosso respeito como da percepção básica de que a nossa visão de nós mesmos raramente coincide com a imagem que os outros têm de nós. Quando confrontadas, essas duas, três, quatro... (ad infinitum) identidades distintas atribuídas a nós mesmos nos lançam uma silenciosa interrogação: qual delas é a mais próxima da verdade? Quando vivemos rodeados de muitas pessoas, podemos perguntar, sem a mínima esperança de encontrar alguma resposta, de quantas identidades, afinal, somos constituídos.
Pela presteza em nos oferecer fórmulas prontas, a realidade à nossa volta, talvez pelo excesso de informações, mais confunde que esclarece, pois, a julgar pelo que ouvimos, somos o que fazemos – principalmente num mundo materialista -, somos o que pensamos, o que comemos, o que deixamos de fazer – as escolhas -, e assim por diante. Se não me engano, o slogan da Livraria Cultura nos indica um caminho de concisão no mínimo surpreendente: “Ler para ser”. Quanto a mim, sinceramente não sei, pois estou entre aqueles que, ao buscarem respostas, encontraram tantas vias, algumas delas tão discrepantes entre si, que tudo que encontrei não passa afinal de fragmentos dispersos. Como sempre em caso de dúvida, recorro à literatura. Ao pensar nessa via de elucidação, meu contentamento me diz que sou antes de tudo um leitor. Todo o resto – que, para todos os efeitos, não é muito – veio e vem depois. Tal como Borges, sinto orgulho mais pelos livros lidos do que satisfação pelos resultados duvidosos dessa constante tentativa de encontrar alguma clareza, que é o juntar palavras não para compor outra realidade, mas como forma de interpretar e compreender essa que me cerca.
Um dos aspectos que mais me fascinam na literatura é o fato de as maiores verdades muitas vezes surgirem da fala de personagens loucos – ou que se fazem passar por tais. Acima de todos, estão Hamlet, Dom Quixote e o Rei Lear. É em Hamlet que, através do desvario de Ofélia, entre murmúrios de uma pungência extrema e dos quais apenas a melancolia lembra a fala dos privados da razão, lemos a seguinte frase: “Sabemos o que somos, mas não o que possamos ser. Deus vos abençoe”. Um dos contos mais instigantes de Tchekhov é “Enfermaria número 6”, no qual os dois únicos personagens possuidores de algo semelhante à lucidez se encontram, ao final da narrativa, internados num manicômio. Mas é Luigi Pirandello, através do seu romance Um, nenhum e cem mil, que me oferece um exemplo mais próximo do tema da diversidade de visões da identidade de uma única pessoa. As situações descritas na obra, segundo Alfredo Bosi, em seu prefácio, “levam ao paroxismo a consciência de um desajuste entre a vida subjetiva da personagem e a fôrma social, a persona que a represa de todos os lados”.
O romance mais complexo de Pirandello, escrito entre os anos de 1916 e 1926, tem um início quase banal: ao descobrir, por um comentário de sua esposa, que seu nariz pende para a direita, Vitangelo Moscarda ingressa numa cadeia de especulações metafísicas a respeito de sua própria identidade: “Quem será esse homem que mal conhece suas feições? Como o veem as pessoas mais próximas? O que restará dele uma vez subtraída sua imagem pública?”. Essas indagações acabam se revelando uma teia em que o personagem se perde de maneira inelutável, até a desintegração, estado que, por sua vez, o aproxima de uma verdade que não pode ser suportada, seja por ele, seja por seus semelhantes. É no prefácio de Bosi que encontramos o contexto desses acontecimentos: “(...) a máquina social exige, para manter-se em pé e reproduzir-se, uma engrenagem constante, um sistema de normas de comportamento dotado de um mínimo e, às vezes, de um máximo de coerência de expectativas; numa palavra, a sociedade requer uma forma. A forma enfeixa tanto as aparências físicas de um ser humano quanto as suas marcas sociais: o nome, a nacionalidade, a classe, o estado civil”. Segundo o crítico, os grandes romancistas do século XX inverteram essa perspectiva, olhando para dentro daquele sujeito que o naturalismo preferia descrever como um objeto.
A partir da simples constatação a respeito de seu nariz, tem início a via-crúcis de Moscarda, cujas reflexões formam o cerne desta verdadeira saga de Pirandello em direção à desintegração e, ao mesmo tempo e de maneira paradoxal, à clareza. Faz parte dessa trajetória o seguinte pensamento: “Houvesse fora de nós, externa a vocês e a mim, uma senhora realidade minha e uma senhora realidade sua, digo, em si mesma, igual e imutável! Mas não há. Há em mim e para mim, uma realidade minha, aquela que me dou; e uma realidade sua e de vocês, para vocês, aquela que vocês se dão – as quais nunca serão as mesmas, nem para vocês, nem para mim”.
Existe em Proust uma passagem que talvez lance alguma luz na causa do dilema do personagem de Pirandello, ao mesmo tempo em que evidencia a inutilidade de qualquer reflexão nesse sentido, incluindo esta que esboço: “(...) nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos ‘ver uma pessoa conhecida’ é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e que, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte. Acabam elas por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal modo nuançar a sonoridade da voz, como se esta não fosse mais que um transparente invólucro, que, a cada vez que vemos aquele rosto e ouvimos aquela voz, são essas noções que olhamos e escutamos”. Pergunto a mim mesmo se me equivoco ao concluir, através dos pensamentos do personagem de Pirandello, que é justamente no sanatório que ele atinge uma espécie de iluminação, e se seria correto inferir que todo calvário conduz a uma libertação. Essas possibilidades me são sugeridas pelo seguinte trecho, perto do final de Um, nenhum e cem mil: “O ar é novo. E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado de vida. Desvio de repente os olhos para não ver cada coisa se fixar na sua aparência e morrer. Só assim consigo me manter vivo, renascendo a cada segundo e impedindo que o pensamento se ponha de novo a trabalhar, reabrindo por dentro o vazio de suas vãs construções”.
Vem-me à mente mais uma vez a doce Ofélia, que passa por uma dupla purificação, a da loucura e a da água em que se afoga. E me interrogo o que teria essa personagem de Shakespeare a dizer caso fosse confrontada com a conhecida frase de Nietzsche, “Torna-te quem tu és”. Questiono-me também se seria correto concluir que tanto a filha de Polônio quanto o filósofo alemão levaram sua essência humana ao grau último de purificação, iluminação talvez, estado que (lembrando-me de um trecho da quarta cena do Ato III de Hamlet), ao mesmo tempo em que leva a nada enxergar, possibilita ver tudo o que existe para ser visto: o ar incorpóreo.

Em todo caso, e para todos os efeitos, é possível que não haja afinal desvario algum no mal que os acomete. E se houver, tanto faz. Ao menos a julgar por Pascal, para quem “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria apenas outra forma de loucura”.
Fotografia: Luigi Pirandello
John Everett Millais: A morte de Ofélia, 1852



sexta-feira, 2 de março de 2012

A casa velha: um réquiem

Quando eu era criança, era hábito nas férias de verão passar ao menos uma semana ou duas na casa de meus avós. Numa paisagem bucólica, cercado de galinhas, de vacas e de plantações por todos os lados, em contato com a natureza, encontrava uma atmosfera perfeita para ler os livros que escolhia na biblioteca pública de minha cidade especialmente para aqueles períodos de intervalo entre um ano letivo e outro. Eram dias em que eu mergulhava numa realidade em tudo diversa à daquela dos outros meses do ano: um lugar que oferecia a oportunidade de observar uma rotina vivida quase da mesma maneira como cem anos antes, ouvindo as pessoas falarem uma língua trazida por imigrantes e conservada por seus descendentes, além de ter na mesa do almoço os pratos mais tradicionais de uma culinária também preservada e por vezes, digamos, miscigenada. Fora isso, o dia a dia dos moradores daquele lugar, como me foi informado, apenas em poucas coisas havia sido modificada. Embora na época eu não tivesse muita noção desses fatos, eu valorizava muito essa oportunidade de conviver um pouco naquele lugar desbravado por meus ancestrais, que repousavam não muito longe dali. Desses tempos, guardo algumas das melhores recordações que se pode ter em relação a questões que mais tarde se desenvolveriam em meu pensamento, a saber, temas como a terra, a natureza, os livros e a arte, além de inúmeras, para não dizer infindáveis, questões envolvendo os animais, sua domesticação e a sua criação para o abate. São questões que ainda ocupam muito o meu pensamento e, se algumas delas me instigam, em outras encontro paz e sentido. Porém, mais especificamente em relação às que dizem respeito aos animais, não vejo qualquer possibilidade de encontrar paz.
Por mais importantes que tenham sido essas férias em companhia de meus avós, pelo que lhes sou imensamente grato, em memória, foi contudo outro lugar que me forneceu uma ideia (ou uma visão, não sei) de algo que me daria substrato para uma vida inteira de pensamento e de interrogações. Foram semanas que aprofundaram em mim uma tendência à divagação, algo que eu já possuía, mas que, depois daquelas semanas, se tornaria, ao lado da inquietude de pensamento, o aspecto talvez mais característico da minha personalidade: o caráter contemplativo. Eu tinha onze anos, e em vez de ir, como todos os anos, para a casa de meus avós, quis variar e aceitei o convite de um tio para passar algumas semanas em sua propriedade. Isso possibilitou que às já familiares vacas e galinhas se somassem porcos, cachorros e gatos. Além da casa de moradia, havia na propriedade imensos galpões, grandes plantações, um pomar, mata virgem e, para além dos limites de terra daquele irmão mais velho de meu pai, estradas para todos os lados e que me faziam pensar, não sei por qual razão, em uma frase que havia aprendido no colégio no ano anterior: que todos os caminhos levam a Roma. Com certeza, na época esse pensamento estava de todo ausente de minha consciência, mas percebo agora, em retrospecto, por mais aleatório que possa parecer, um sentido para essa frase: a possibilidade de que, para o desenvolvimento de nossa personalidade, a aparência da atmosfera em nossa volta, os fatos que vivenciamos ou os assuntos com os quais temos contato na mais tenra idade talvez não tenham toda essa importância que se costuma apregoar. E que muito mais importantes que tudo isso são as inclinações que já trazemos em estado de latência em nós mesmos e que despertarão de uma forma ou de outra, em qualquer cenário, em qualquer companhia e em qualquer circunstância. Se afirmar isso significa que não temos como fugir a nós mesmos, creio que seja realmente essa minha crença.
Havia, não muito distante dos galpões de meu tio, uma grande construção que era chamada simplesmente de casa velha e que era usada como depósito de milho e onde dormiam os cachorros. Já a tinha visto muitas vezes anteriormente, em visitas, mas foi apenas naqueles dias que a examinei com maior atenção. De seu histórico, sabia apenas que datava de 1897 - data afixada com muita dignidade no frontão - e que, nas primeiras décadas do século seguinte, havia sido a casa mais luxuosa das cercanias. A veracidade desse fato era atestada pelos inúmeros ornamentos que a cercavam por todos os lados, nos peitoris das janelas, na pequena escada que conduzia à rica porta de entrada, em cujo cimo e laterais, bem como no interior, havia detalhes trabalhados em estuque. Em minhas longas caminhadas pelas estradas do lugar, era comum encontrar muitas casas de imigrantes, caracterizadas todas elas pela simplicidade, e algumas datavam de épocas muito anteriores à década de 1890. Nenhuma, contudo, se parecia com a casa velha, o que me levava a concluir que não se tratava de mais uma moradia de imigrantes ou descendentes, mas da residência de uma família de grandes posses. Não obstante seu passado, havia rachaduras e em muitas partes o reboco já havia caído, deixando à vista os tijolos; muitos dos caixilhos das janelas já não tinham vidro, tudo isso sem que ninguém sequer cogitasse providenciar os devidos reparos. Talvez porque não a vissem como uma casa, muito menos como o palacete que era, mas apenas como as ruínas de um tempo há muito passado. Esses efeitos do tempo, contudo, só a tornavam ainda mais bela e preciosa aos meus olhos. Eu tinha onze anos, repito, e nunca antes me sentira tão fortemente ligado a uma construção. Para mim, portanto, tratava-se de um sentimento novo, o que me pareceu estranho, pois nenhuma das casas em que até então havia vivido me tinha despertado tal apego. Se na época me perguntassem o que via de tão comovedor naquela construção, dificilmente saberia dizer algo que não fosse relacionado a tudo que acontecera em termos de fatos históricos pretéritos e que, enquanto ocorriam, a casa, durante todas aquelas décadas, estivera sempre ali, imperturbável, por mais que sua aparência, nos dias de minha estada, pouco guardava dessa impassibilidade. Mas talvez não fosse apenas isso; todos aqueles ornatos, aquelas cores ressaltando belos detalhes ou toda a pompa maltratada pelo tempo, tudo isso lhe conferia uma leve e comovente semelhança com uma flor murcha, talvez o símbolo máximo da brevidade da vida: uma flor que, não obstante seu estado, poderia muito bem voltar a reluzir e ocupar a posição que já lhe fora própria, se naquela época houvesse uma maior consciência de preservação.
Perdi a conta de quantas horas, de quantas tardes passei em volta e no interior daquela casa imensa, imerso nos mais variados pensamentos: buscava imaginar desde respostas a questões mais triviais, como quantas gerações haviam vivido ali, até detalhes mais precisos, como, por exemplo, como era a rotina dos moradores, em que consistia seu cardápio e ainda como se vestiam. Interrogava-me também se liam, e, no caso, quais autores. Outras indagações me eram inspiradas por vestígios ainda visíveis da vida na construção, como uma marca retangular na parede, em que se percebia, pela diferença nas cores, ter sido o lugar de um quadro; em outra parede, a existência de um nicho, como os que se encontram nos templos góticos, me dizia da religiosidade dos moradores. Em outra aposento, ao lado da porta, restara um suporte em madeira e metal para roupas e chapéus. Por mais que minha imaginação funcionasse, tais detalhes apenas vinham se somar à riqueza de algo que para mim, por si só, já constituía objeto da maior admiração. E as marcas do tempo, que se tornavam mais cruéis considerando a dignidade dos ornamentos e o fato de ter sido a residência de algumas das pessoas mais influentes das redondezas, a meu ver intensificavam um sentimento de injustiça que perdura até hoje: a rápida e implacável substituição do belo e do profundo pelo novo. Mesmo que o novo muitas vezes signifique algo infinitamente pior, promove-se o desterro do conteúdo e da profundidade, mesmo que a novidade muitas vezes substitua o bom por algo vazio, não raro completamente destituído de qualquer traço de beleza e, mais ainda, de significado.
Naquele meu culto precoce ao antigo e ao caráter belo e profundo das coisas atemporais, a despeito da minha pouca idade, não esperava de modo algum ser compreendido por meus tios e primos. Pelo contrário: era-lhes muito grato pelo simples fato de aceitarem minha admiração por aquela antiga casa, por mais que considerassem tal sentimento como algo que podia ter origem apenas no fato de eu viver na cidade.
Somente a passagem de exatas três décadas me trouxe uma compreensão mais clara de minha ligação com a aparência e a antiguidade daquela casa. Foi um entendimento que me veio através da leitura de A arquitetura da felicidade, de Alain de Botton: “Se as construções podem atuar como receptáculos de nossos ideais, é porque podem ser purgadas de todas as infelicidades que corroem as vidas normais. Uma grande obra de arquitetura nos falará de um grau de serenidade, força, equilíbrio e graça a que nós, como criadores ou como espectadores, normalmente não podemos fazer justiça – e por essa mesma razão ela irá nos divertir e comover. A arquitetura provoca o nosso respeito na medida em que nos supera”.
Alguns anos atrás, soube que a casa velha não existe mais: foi demolida. Por essa razão, tenho evitado visitar meus tios e meus primos. O que não significa que não sinta saudades deles; porém, voltar àquela propriedade seria como retornar no tempo e não encontrar o passado no lugar onde ele deveria estar, para muito além da esfera de minhas recordações. É de Jorge Luis Borges a seguinte interrogação: “Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao descrever uma época do seu passado, não sentiu em algum momento que alguma coisa infinita se perdera?”. Talvez seja próprio aos amantes da arte esse estado de vaga confusão, esse constante interrogar-se, tendo diante de si a realidade e, na memória, algo como um vestígio, uma impressão mesmo que remota de todos os paraísos perdidos. E talvez os vislumbres que nos são dados um pouco a cada dia, por mais dadivosos que sejam, não passem de sombras pálidas de imagens que vimos em outros tempos e cujo reencontro está além de nossa capacidade imaginativa. E talvez também seja próprio do passado, como tudo que é esvaído, parecer mesmo algo único e para sempre perdido, tal como todas as coisas, enfim, marcadas pelo passar do tempo. Saudosismo em excesso? Sim, é possível, e gostaria imensamente que fosse apenas isso.
Porém, aos poucos, sei que devo me habituar aos fatos: em se tratando de respeito à memória, à beleza e à riqueza de significado, o mundo está longe de ser justo. E, entre inúmeros outros fatores, a rápida extinção dos poucos rastros de um passado vivido - e de tudo que lhe é característico -, porém aos poucos varrido completamente do alcance do tempo, do espaço e da recordação, é prova mais que suficiente dessa verdade.