quinta-feira, 15 de março de 2012

Quantos somos, afinal, e o que enxergamos – Breve reflexão sobre Pirandello, Ofélia e Nietzsche

O ato de escrever, em alguns casos - e forçando um pouco a analogia -, pode ser comparado a uma tentativa de olhar-se no espelho com a finalidade de aproximar-nos um pouco do que somos e do que pensamos, diminuindo, através das respostas que surgem aos poucos, as vastas extensões de fatos que permanecem sempre no universo do desconhecido. É óbvio que a compreensão da maior parte das questões teima em ficar sempre muito além de nosso sempre limitado alcance, e se é por acaso o fato de que essas constituem para nós as dúvidas de mais premente necessidade de esclarecimento, é coisa que ignoro. Hoje o desafio do espaço em branco é duas vezes maior: além da obrigação moral de preenchê-lo com algo que valha um pouco mais que a alvura imaculada, há a tentativa de encontrar soluções possíveis para algo que pertence a esse campo mencionado acima: o do desconhecimento, sobre o qual me detenho mesmo sabendo da pouca possibilidade de encontrar algo além da incerteza - essa sim, constante. Contudo, ciente da pequena possibilidade de sucesso quanto aos resultados, ficarei muito satisfeito se encontrar, através dessa divagação, um pouco de paz em relação a algo indefinível, sem nome e que talvez exista em nós com o propósito único de nos levar à reflexão, como inimigo eterno da aparente quietude das respostas definitivamente esclarecedoras.
Quando o assunto em pauta é nossa identidade, o pensamento muitas vezes cede espaço ao senso comum. Sabemos que se trata de algo que vamos construindo ao longo dos dias que compõem nossa vida e que, em função de sucessivas experiências, diálogos, leituras, decisões, tomadas de postura etc., está sempre sofrendo alterações e acréscimos. É um processo que só encontra interrupção no final da jornada, e mesmo assim seremos surpreendidos entre uma posição e outra, como que em fuga, talvez no auge desse fenômeno que é a nossa formação. Fiz referência acima ao espelho, objeto cuja fidelidade em relação à realidade é tida como inquestionável. Contudo, creio que esquecemos com mais frequência do que deveríamos que, quando nos miramos na superfície aquosa, nós o fazemos com nossa visão subjetiva: a imagem que vemos refletida depende em tudo da nossa própria lucidez e lealdade em relação a nós mesmos. Lembrando Hume, talvez muito mais coisas, e não apenas a beleza, estejam na mente de quem contempla, e deformações ou aperfeiçoamentos surgem a partir desse fato. Em todo caso, não é diante do espelho, esse símbolo da vaidade humana, que nos deparamos com as maiores surpresas, ou mesmo alguns eventuais sustos. Eles podem vir tanto de um comentário banal a nosso respeito como da percepção básica de que a nossa visão de nós mesmos raramente coincide com a imagem que os outros têm de nós. Quando confrontadas, essas duas, três, quatro... (ad infinitum) identidades distintas atribuídas a nós mesmos nos lançam uma silenciosa interrogação: qual delas é a mais próxima da verdade? Quando vivemos rodeados de muitas pessoas, podemos perguntar, sem a mínima esperança de encontrar alguma resposta, de quantas identidades, afinal, somos constituídos.
Pela presteza em nos oferecer fórmulas prontas, a realidade à nossa volta, talvez pelo excesso de informações, mais confunde que esclarece, pois, a julgar pelo que ouvimos, somos o que fazemos – principalmente num mundo materialista -, somos o que pensamos, o que comemos, o que deixamos de fazer – as escolhas -, e assim por diante. Se não me engano, o slogan da Livraria Cultura nos indica um caminho de concisão no mínimo surpreendente: “Ler para ser”. Quanto a mim, sinceramente não sei, pois estou entre aqueles que, ao buscarem respostas, encontraram tantas vias, algumas delas tão discrepantes entre si, que tudo que encontrei não passa afinal de fragmentos dispersos. Como sempre em caso de dúvida, recorro à literatura. Ao pensar nessa via de elucidação, meu contentamento me diz que sou antes de tudo um leitor. Todo o resto – que, para todos os efeitos, não é muito – veio e vem depois. Tal como Borges, sinto orgulho mais pelos livros lidos do que satisfação pelos resultados duvidosos dessa constante tentativa de encontrar alguma clareza, que é o juntar palavras não para compor outra realidade, mas como forma de interpretar e compreender essa que me cerca.
Um dos aspectos que mais me fascinam na literatura é o fato de as maiores verdades muitas vezes surgirem da fala de personagens loucos – ou que se fazem passar por tais. Acima de todos, estão Hamlet, Dom Quixote e o Rei Lear. É em Hamlet que, através do desvario de Ofélia, entre murmúrios de uma pungência extrema e dos quais apenas a melancolia lembra a fala dos privados da razão, lemos a seguinte frase: “Sabemos o que somos, mas não o que possamos ser. Deus vos abençoe”. Um dos contos mais instigantes de Tchekhov é “Enfermaria número 6”, no qual os dois únicos personagens possuidores de algo semelhante à lucidez se encontram, ao final da narrativa, internados num manicômio. Mas é Luigi Pirandello, através do seu romance Um, nenhum e cem mil, que me oferece um exemplo mais próximo do tema da diversidade de visões da identidade de uma única pessoa. As situações descritas na obra, segundo Alfredo Bosi, em seu prefácio, “levam ao paroxismo a consciência de um desajuste entre a vida subjetiva da personagem e a fôrma social, a persona que a represa de todos os lados”.
O romance mais complexo de Pirandello, escrito entre os anos de 1916 e 1926, tem um início quase banal: ao descobrir, por um comentário de sua esposa, que seu nariz pende para a direita, Vitangelo Moscarda ingressa numa cadeia de especulações metafísicas a respeito de sua própria identidade: “Quem será esse homem que mal conhece suas feições? Como o veem as pessoas mais próximas? O que restará dele uma vez subtraída sua imagem pública?”. Essas indagações acabam se revelando uma teia em que o personagem se perde de maneira inelutável, até a desintegração, estado que, por sua vez, o aproxima de uma verdade que não pode ser suportada, seja por ele, seja por seus semelhantes. É no prefácio de Bosi que encontramos o contexto desses acontecimentos: “(...) a máquina social exige, para manter-se em pé e reproduzir-se, uma engrenagem constante, um sistema de normas de comportamento dotado de um mínimo e, às vezes, de um máximo de coerência de expectativas; numa palavra, a sociedade requer uma forma. A forma enfeixa tanto as aparências físicas de um ser humano quanto as suas marcas sociais: o nome, a nacionalidade, a classe, o estado civil”. Segundo o crítico, os grandes romancistas do século XX inverteram essa perspectiva, olhando para dentro daquele sujeito que o naturalismo preferia descrever como um objeto.
A partir da simples constatação a respeito de seu nariz, tem início a via-crúcis de Moscarda, cujas reflexões formam o cerne desta verdadeira saga de Pirandello em direção à desintegração e, ao mesmo tempo e de maneira paradoxal, à clareza. Faz parte dessa trajetória o seguinte pensamento: “Houvesse fora de nós, externa a vocês e a mim, uma senhora realidade minha e uma senhora realidade sua, digo, em si mesma, igual e imutável! Mas não há. Há em mim e para mim, uma realidade minha, aquela que me dou; e uma realidade sua e de vocês, para vocês, aquela que vocês se dão – as quais nunca serão as mesmas, nem para vocês, nem para mim”.
Existe em Proust uma passagem que talvez lance alguma luz na causa do dilema do personagem de Pirandello, ao mesmo tempo em que evidencia a inutilidade de qualquer reflexão nesse sentido, incluindo esta que esboço: “(...) nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos ‘ver uma pessoa conhecida’ é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e que, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte. Acabam elas por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal modo nuançar a sonoridade da voz, como se esta não fosse mais que um transparente invólucro, que, a cada vez que vemos aquele rosto e ouvimos aquela voz, são essas noções que olhamos e escutamos”. Pergunto a mim mesmo se me equivoco ao concluir, através dos pensamentos do personagem de Pirandello, que é justamente no sanatório que ele atinge uma espécie de iluminação, e se seria correto inferir que todo calvário conduz a uma libertação. Essas possibilidades me são sugeridas pelo seguinte trecho, perto do final de Um, nenhum e cem mil: “O ar é novo. E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado de vida. Desvio de repente os olhos para não ver cada coisa se fixar na sua aparência e morrer. Só assim consigo me manter vivo, renascendo a cada segundo e impedindo que o pensamento se ponha de novo a trabalhar, reabrindo por dentro o vazio de suas vãs construções”.
Vem-me à mente mais uma vez a doce Ofélia, que passa por uma dupla purificação, a da loucura e a da água em que se afoga. E me interrogo o que teria essa personagem de Shakespeare a dizer caso fosse confrontada com a conhecida frase de Nietzsche, “Torna-te quem tu és”. Questiono-me também se seria correto concluir que tanto a filha de Polônio quanto o filósofo alemão levaram sua essência humana ao grau último de purificação, iluminação talvez, estado que (lembrando-me de um trecho da quarta cena do Ato III de Hamlet), ao mesmo tempo em que leva a nada enxergar, possibilita ver tudo o que existe para ser visto: o ar incorpóreo.

Em todo caso, e para todos os efeitos, é possível que não haja afinal desvario algum no mal que os acomete. E se houver, tanto faz. Ao menos a julgar por Pascal, para quem “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria apenas outra forma de loucura”.
Fotografia: Luigi Pirandello
John Everett Millais: A morte de Ofélia, 1852



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