segunda-feira, 26 de março de 2012

Kathleen Ferrier e a pungente arte da transcendência

Ao iniciar um texto, acontece-me às vezes de ter apenas uma noção vaga do que virá após a primeira frase. Embora seja certo que o assunto já esteja escolhido, muitas vezes é difícil prever as vias que o tema irá trilhar. Longe de ser um problema, essa característica da escrita é o que a torna ainda mais fascinante aos meus olhos, mesmo que os resultados quase sempre deixem a desejar. Hoje, além dos pré-requisitos mais habituais, como o recolhimento e o silêncio, ocorre algo que também não constitui novidade, mas que traz um receio, ou, na verdade, um senso da justa medida das coisas: a consciência de que a minha capacidade de expressão está muito aquém do tema proposto, além de saber da quase inexistência de leitores que, por mais que eu me esforce na escolha de adjetivos e em descrições, compreenderão o que tenciono transmitir. Creio que não entenderão porque, apesar de existirem parâmetros fixos de qualidades que permitem a atribuição de juízos de valor, não é novidade que o sentimento que temos diante de qualquer coisa que seja, sendo algo relacionado à arte ou não, feitas as contas, não passa na realidade de mera subjetividade, ainda mais quando se trata da característica mais particular que uma pessoa pode ter, muito mais eloquente que impressões digitais: a voz, e, no caso em questão, uma certa voz.
É bastante conhecido o modo como Michelangelo definia seu ofício de escultor: tendo diante de si um bloco de mármore, sua arte consistiria em remover tudo que não fazia parte da forma desejada. Creio que com a voz humana, tida como o mais sensível entre os instrumentos musicais, o processo seja semelhante. Tem-se como ponto de partida uma matéria-prima em estado bruto e se dá início a um trabalho através do qual toda impureza é retirada, até que, depois de um longo processo de lapidação, reste somente a voz, límpida, pura e – o que a torna tão preciosa – única no mundo. É em razão do conhecimento, mesmo que vago, dos esforços e da dedicação necessários para esse processo que me encho de assombro e da mais completa perplexidade diante da voz da contralto inglesa Kathleen Ferrier.

Sempre quis escrever algo sobre essa intérprete única de Mahler – sobretudo de Mahler -, Brahms, Schubert, entre outros, mas a simples audição de suas gravações era um constante desestímulo. Por essa razão, deixei seus discos de lado por algum tempo. Mas não sei até que ponto o distanciamento de alguns dias, semanas ou mesmo meses ajuda quando nos sentimos tão intimamente ligados a personalidades que, a despeito de já não viverem no momento em que nascemos, em muitos casos são para nós tão conhecidos quanto alguns de nossos amigos. Por fazerem parte de nosso dia a dia, esse laço, como tantos outros vínculos, algumas vezes, dependendo da intensidade de nosso apego, é algo quase visceral. Esse é meu caso em relação a Kathleen Ferrier e a sua arte: muito mais do que simples admiração, é uma espécie de fervor. A perplexidade a que me referi acima pode ser explicada pelo fato de perceber que a característica que mais se evidencia em seu timbre é sua rara naturalidade, algo muito espontâneo. Em outras palavras, observa-se que seu registro grave não é o resultado de anos de dedicação em conservatório, mas algo muito particular, apenas seu. Os próprios professores a quem ela recorreu reconheceram que seu trabalho se resumiu a ensaiar seu repertório e a afinar sua voz, que, desde o primeiro dia, estava já toda ali. Some-se a isso a grande raridade do registro de contralto; na maior parte das vezes, o repertório para essa voz é cantado por mezzo-sopranos concentradas nos graves.
Toda a intensidade e a raríssima beleza da voz, além da extrema sinceridade das interpretações de Ferrier, podem ser verificadas numa discografia que muitas vezes lamentamos não ser maior: infelizmente, sua carreira não durou mais que dez anos, uma década verdadeiramente radiosa – o que, por outro lado, contribui em muito para tornar tais gravações ainda mais preciosas. Do seu catálogo, além de obras de Mahler, é digna de nota a gravação, feita em dezembro de 1947, da Rapsódia para Contralto, coro masculino e orquestra, op. 53, escrita por Brahms com base em texto de Goethe. Na interpretação dessa obra, a contralto inglesa imprimiu à peça o tom de resignada contenção que marcaria a maior parte dos registros posteriores dessa obra. Três anos depois, foi a vez das Quatro canções sérias, op. 121, também de Brahms, nas quais o estado de espírito, de grave austeridade, forma um verdadeiro teste de autenticidade para qualquer intérprete.
Autenticidade, aliada à mais completa entrega que se possa imaginar, talvez seja a palavra-chave para definir aquela que seria a gravação mais famosa de Kathleen Ferrier, realizada em 1952, e que entraria para a história da música como um dos clássicos do disco: A canção da terra, de Gustav Mahler, regida por seu discípulo Bruno Walter. O compositor começou a musicar partes desse ciclo de poemas chineses em 1907, pouco depois da morte de sua filha mais velha, de apenas quatro anos. Pouco depois desse acontecimento, outro golpe aguardava Mahler: o diagnóstico, por um especialista, das condições precárias de seu próprio coração. Pode-se imaginar, a partir dessas informações básicas, o significado e a força dessa obra. Dizer que se trata de um verdadeiro testamento musical é dizer pouco. Muito mais do que isso, o ciclo forma uma expressão da filosofia do compositor, baseada em um sentimento de amor à vida, à natureza e à terra, de cujos benefícios podemos desfrutar por um breve período para logo depois partir, enquanto esta se renova ano após ano, eternamente. A parte final, Der Abschied, isto é, O adeus, é uma síntese tocante e de rara intensidade dessa realidade. Segundo o crítico Michael Kennedy, “é praticamente impossível ouvir-se esta gravação sem levar em conta as circunstâncias pessoais dos artistas envolvidos – Walter, o amigo do compositor, e Ferrier, que soube, enquanto fazia a gravação, que o Abschied seria seu próprio adeus e que a terra bem-amada só voltaria a florir para ela mais uma vez. Como Mahler, ela respondeu ao desafio da sentença de morte (por câncer, em 1953) atingindo o pináculo de sua arte. Sim, é verdade que seu Sol agudo sente um pouco o esforço, mas o fulgor, a vibração e a compaixão transcendental de seu canto aqui o colocam acima de qualquer crítica mais negativa”.

Enquanto escrevia esse texto, soube que o próximo dia 22 será o centenário de nascimento de Kathleen Ferrier. Para ser sincero, devo confessar que soube da proximidade desse centenário apenas por acaso, ao procurar por fotografias para ilustrar este texto: ou seja, não passa de uma feliz coincidência. Talvez eu esteja equivocado, mas penso que essas datas têm sua importância, sim, mas apenas para nos lembrar que grandes personalidades das artes e da filosofia são, antes de tudo, pessoas como nós. De resto, não dou muita importância, isso por pensar que certos artistas, em virtude de sua grandeza, depois de deixarem este mundo, passam a habitar outra esfera. Não gostaria de chamá-la de eternidade; mas creio que, de certa forma, constitui uma espécie muito particular  de imortalidade, reservada a poucos. E reverenciar esses artistas, bem como sua arte, é, como já disse, uma questão de fervor, sentimento que independe por completo de datas.

Kathleen Ferrier, fotografia de Houston Rogers
Gustav Mahler, retrato de Michael Dudash

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