sexta-feira, 2 de março de 2012

A casa velha: um réquiem

Quando eu era criança, era hábito nas férias de verão passar ao menos uma semana ou duas na casa de meus avós. Numa paisagem bucólica, cercado de galinhas, de vacas e de plantações por todos os lados, em contato com a natureza, encontrava uma atmosfera perfeita para ler os livros que escolhia na biblioteca pública de minha cidade especialmente para aqueles períodos de intervalo entre um ano letivo e outro. Eram dias em que eu mergulhava numa realidade em tudo diversa à daquela dos outros meses do ano: um lugar que oferecia a oportunidade de observar uma rotina vivida quase da mesma maneira como cem anos antes, ouvindo as pessoas falarem uma língua trazida por imigrantes e conservada por seus descendentes, além de ter na mesa do almoço os pratos mais tradicionais de uma culinária também preservada e por vezes, digamos, miscigenada. Fora isso, o dia a dia dos moradores daquele lugar, como me foi informado, apenas em poucas coisas havia sido modificada. Embora na época eu não tivesse muita noção desses fatos, eu valorizava muito essa oportunidade de conviver um pouco naquele lugar desbravado por meus ancestrais, que repousavam não muito longe dali. Desses tempos, guardo algumas das melhores recordações que se pode ter em relação a questões que mais tarde se desenvolveriam em meu pensamento, a saber, temas como a terra, a natureza, os livros e a arte, além de inúmeras, para não dizer infindáveis, questões envolvendo os animais, sua domesticação e a sua criação para o abate. São questões que ainda ocupam muito o meu pensamento e, se algumas delas me instigam, em outras encontro paz e sentido. Porém, mais especificamente em relação às que dizem respeito aos animais, não vejo qualquer possibilidade de encontrar paz.
Por mais importantes que tenham sido essas férias em companhia de meus avós, pelo que lhes sou imensamente grato, em memória, foi contudo outro lugar que me forneceu uma ideia (ou uma visão, não sei) de algo que me daria substrato para uma vida inteira de pensamento e de interrogações. Foram semanas que aprofundaram em mim uma tendência à divagação, algo que eu já possuía, mas que, depois daquelas semanas, se tornaria, ao lado da inquietude de pensamento, o aspecto talvez mais característico da minha personalidade: o caráter contemplativo. Eu tinha onze anos, e em vez de ir, como todos os anos, para a casa de meus avós, quis variar e aceitei o convite de um tio para passar algumas semanas em sua propriedade. Isso possibilitou que às já familiares vacas e galinhas se somassem porcos, cachorros e gatos. Além da casa de moradia, havia na propriedade imensos galpões, grandes plantações, um pomar, mata virgem e, para além dos limites de terra daquele irmão mais velho de meu pai, estradas para todos os lados e que me faziam pensar, não sei por qual razão, em uma frase que havia aprendido no colégio no ano anterior: que todos os caminhos levam a Roma. Com certeza, na época esse pensamento estava de todo ausente de minha consciência, mas percebo agora, em retrospecto, por mais aleatório que possa parecer, um sentido para essa frase: a possibilidade de que, para o desenvolvimento de nossa personalidade, a aparência da atmosfera em nossa volta, os fatos que vivenciamos ou os assuntos com os quais temos contato na mais tenra idade talvez não tenham toda essa importância que se costuma apregoar. E que muito mais importantes que tudo isso são as inclinações que já trazemos em estado de latência em nós mesmos e que despertarão de uma forma ou de outra, em qualquer cenário, em qualquer companhia e em qualquer circunstância. Se afirmar isso significa que não temos como fugir a nós mesmos, creio que seja realmente essa minha crença.
Havia, não muito distante dos galpões de meu tio, uma grande construção que era chamada simplesmente de casa velha e que era usada como depósito de milho e onde dormiam os cachorros. Já a tinha visto muitas vezes anteriormente, em visitas, mas foi apenas naqueles dias que a examinei com maior atenção. De seu histórico, sabia apenas que datava de 1897 - data afixada com muita dignidade no frontão - e que, nas primeiras décadas do século seguinte, havia sido a casa mais luxuosa das cercanias. A veracidade desse fato era atestada pelos inúmeros ornamentos que a cercavam por todos os lados, nos peitoris das janelas, na pequena escada que conduzia à rica porta de entrada, em cujo cimo e laterais, bem como no interior, havia detalhes trabalhados em estuque. Em minhas longas caminhadas pelas estradas do lugar, era comum encontrar muitas casas de imigrantes, caracterizadas todas elas pela simplicidade, e algumas datavam de épocas muito anteriores à década de 1890. Nenhuma, contudo, se parecia com a casa velha, o que me levava a concluir que não se tratava de mais uma moradia de imigrantes ou descendentes, mas da residência de uma família de grandes posses. Não obstante seu passado, havia rachaduras e em muitas partes o reboco já havia caído, deixando à vista os tijolos; muitos dos caixilhos das janelas já não tinham vidro, tudo isso sem que ninguém sequer cogitasse providenciar os devidos reparos. Talvez porque não a vissem como uma casa, muito menos como o palacete que era, mas apenas como as ruínas de um tempo há muito passado. Esses efeitos do tempo, contudo, só a tornavam ainda mais bela e preciosa aos meus olhos. Eu tinha onze anos, repito, e nunca antes me sentira tão fortemente ligado a uma construção. Para mim, portanto, tratava-se de um sentimento novo, o que me pareceu estranho, pois nenhuma das casas em que até então havia vivido me tinha despertado tal apego. Se na época me perguntassem o que via de tão comovedor naquela construção, dificilmente saberia dizer algo que não fosse relacionado a tudo que acontecera em termos de fatos históricos pretéritos e que, enquanto ocorriam, a casa, durante todas aquelas décadas, estivera sempre ali, imperturbável, por mais que sua aparência, nos dias de minha estada, pouco guardava dessa impassibilidade. Mas talvez não fosse apenas isso; todos aqueles ornatos, aquelas cores ressaltando belos detalhes ou toda a pompa maltratada pelo tempo, tudo isso lhe conferia uma leve e comovente semelhança com uma flor murcha, talvez o símbolo máximo da brevidade da vida: uma flor que, não obstante seu estado, poderia muito bem voltar a reluzir e ocupar a posição que já lhe fora própria, se naquela época houvesse uma maior consciência de preservação.
Perdi a conta de quantas horas, de quantas tardes passei em volta e no interior daquela casa imensa, imerso nos mais variados pensamentos: buscava imaginar desde respostas a questões mais triviais, como quantas gerações haviam vivido ali, até detalhes mais precisos, como, por exemplo, como era a rotina dos moradores, em que consistia seu cardápio e ainda como se vestiam. Interrogava-me também se liam, e, no caso, quais autores. Outras indagações me eram inspiradas por vestígios ainda visíveis da vida na construção, como uma marca retangular na parede, em que se percebia, pela diferença nas cores, ter sido o lugar de um quadro; em outra parede, a existência de um nicho, como os que se encontram nos templos góticos, me dizia da religiosidade dos moradores. Em outra aposento, ao lado da porta, restara um suporte em madeira e metal para roupas e chapéus. Por mais que minha imaginação funcionasse, tais detalhes apenas vinham se somar à riqueza de algo que para mim, por si só, já constituía objeto da maior admiração. E as marcas do tempo, que se tornavam mais cruéis considerando a dignidade dos ornamentos e o fato de ter sido a residência de algumas das pessoas mais influentes das redondezas, a meu ver intensificavam um sentimento de injustiça que perdura até hoje: a rápida e implacável substituição do belo e do profundo pelo novo. Mesmo que o novo muitas vezes signifique algo infinitamente pior, promove-se o desterro do conteúdo e da profundidade, mesmo que a novidade muitas vezes substitua o bom por algo vazio, não raro completamente destituído de qualquer traço de beleza e, mais ainda, de significado.
Naquele meu culto precoce ao antigo e ao caráter belo e profundo das coisas atemporais, a despeito da minha pouca idade, não esperava de modo algum ser compreendido por meus tios e primos. Pelo contrário: era-lhes muito grato pelo simples fato de aceitarem minha admiração por aquela antiga casa, por mais que considerassem tal sentimento como algo que podia ter origem apenas no fato de eu viver na cidade.
Somente a passagem de exatas três décadas me trouxe uma compreensão mais clara de minha ligação com a aparência e a antiguidade daquela casa. Foi um entendimento que me veio através da leitura de A arquitetura da felicidade, de Alain de Botton: “Se as construções podem atuar como receptáculos de nossos ideais, é porque podem ser purgadas de todas as infelicidades que corroem as vidas normais. Uma grande obra de arquitetura nos falará de um grau de serenidade, força, equilíbrio e graça a que nós, como criadores ou como espectadores, normalmente não podemos fazer justiça – e por essa mesma razão ela irá nos divertir e comover. A arquitetura provoca o nosso respeito na medida em que nos supera”.
Alguns anos atrás, soube que a casa velha não existe mais: foi demolida. Por essa razão, tenho evitado visitar meus tios e meus primos. O que não significa que não sinta saudades deles; porém, voltar àquela propriedade seria como retornar no tempo e não encontrar o passado no lugar onde ele deveria estar, para muito além da esfera de minhas recordações. É de Jorge Luis Borges a seguinte interrogação: “Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao descrever uma época do seu passado, não sentiu em algum momento que alguma coisa infinita se perdera?”. Talvez seja próprio aos amantes da arte esse estado de vaga confusão, esse constante interrogar-se, tendo diante de si a realidade e, na memória, algo como um vestígio, uma impressão mesmo que remota de todos os paraísos perdidos. E talvez os vislumbres que nos são dados um pouco a cada dia, por mais dadivosos que sejam, não passem de sombras pálidas de imagens que vimos em outros tempos e cujo reencontro está além de nossa capacidade imaginativa. E talvez também seja próprio do passado, como tudo que é esvaído, parecer mesmo algo único e para sempre perdido, tal como todas as coisas, enfim, marcadas pelo passar do tempo. Saudosismo em excesso? Sim, é possível, e gostaria imensamente que fosse apenas isso.
Porém, aos poucos, sei que devo me habituar aos fatos: em se tratando de respeito à memória, à beleza e à riqueza de significado, o mundo está longe de ser justo. E, entre inúmeros outros fatores, a rápida extinção dos poucos rastros de um passado vivido - e de tudo que lhe é característico -, porém aos poucos varrido completamente do alcance do tempo, do espaço e da recordação, é prova mais que suficiente dessa verdade.

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