sábado, 30 de junho de 2012

Outra vez a humildade, as noites estreladas e Van Gogh


Uma das questões que me proponho com maior frequência é sobre a possibilidade – ou não – de escrever sem levar em consideração o momento exato em que alinhamos as palavras e as dispomos de maneira a que sirvam ao nosso propósito de dizer algo que tenhamos em mente e que, segundo nosso modo de pensar, acreditamos ter alguma utilidade ao público-alvo. Porque, ao menos no meu modo de vivenciar a escrita, qualquer coisa que resulta em um texto, na maior parte das vezes, nasce dos acontecimentos mais fortuitos, aqueles que, prosaicos, constituem os momentos mais triviais da minha rotina de cada dia. Escrever não é mais que uma maneira de assimilar melhor fatos que, não fosse o modo como os organizo em parágrafos, permaneceriam na categoria de “achados e perdidos”, aguardando uma assimilação lenta, que se dá por etapas, muitas vezes trabalhosas, até que acabem fazendo parte de um modo de ser e de pensar. É inevitável que, nesse processo, os assuntos se tornem recorrentes e reapareçam de tempos em tempos, e não creio na possibilidade de ser de outro modo; pois o que nos choca, o que nos chama atenção, ou o que nos parece belo, são coisas que pertencem a categorias já estabelecidas, que são acrescidas, com o passar do tempo, de novos elementos, de novos modos de ver, numa lenta elaboração daquilo a que normalmente se chama identidade. Sei que não é tão simples, mas é o que posso dizer por enquanto.
Não faz muito tempo que postei neste espaço um texto em que lembrava um antigo hábito de meus ancestrais, hábito que me esforço por manter e, ao menos dentro de minhas pequenas possibilidades, legar aos que deverão ficar: o ato de contemplar as estrelas. Não ignoro que eram outros tempos e que, de lá para cá, a moderna tecnologia colocou à disposição dos meus contemporâneos um número bastante elevado de novas maneiras de passar seu tempo à noite, e, dessa forma, os céus foram pouco a pouco perdendo o seu público para o capítulo da novela ou para o facebook. As novas gerações, privadas de tal espetáculo noturno, acabaram também perdendo um ganho secundário que seus antigos apreciadores levavam de brinde: o senso exato de sua dimensão e, consequentemente, da noção de humildade. Não quero dizer que, para ser humilde, é preciso postar-se com certa frequência à noite sob abóbadas estreladas e esperar que, sob sua luz, ela exerça magicamente seu efeito de choque de realidade. Basta apenas não perder a noção de si mesmo, levando em consideração mesmo os aspectos mais básicos, como a consciência da finitude e a noção de, seja qual for o número de pessoas que se tenha como contatos na já mencionada rede social, o que conta mesmo é o número, geralmente muito restrito, de pessoas que realmente logramos atingir, e mesmo assim, de uma maneira bastante limitada, como uma ou outra ideia, uma palavra no vocabulário, etc. Isso sem perder de vista que, seja qual for a nossa contribuição na paisagem em nosso redor, ela não sobreviverá a uma ou duas gerações, até a sua total extinção.  Por pensar desse modo, acontece de eu às vezes sou considerado amargo, talvez também em razão da forma como expresso minhas crenças, sempre recorrendo a palavras tais como finitude, limites, etc. Em minha defesa, repito o que anteriormente já escrevi: é exatamente no fato de sermos transitórios que reside nossa grandeza. Tenho plena consciência do lugar-comum que as linhas acima representam. Escolho, porém, correr o risco de ser pouco original, passando de um momento a outro, e sem pudor, a ser isso mesmo: antigo.
Não existe exceção que confirme a seguinte regra: sempre escrevo sob o efeito de um entre dois sentimentos distintos: o encantamento e a perplexidade. Embora possam muitas vezes ser confundidos, existe um contraste polar entre esses dois hemisférios. São, todavia, duas faces de uma mesma moeda. O que me mobiliza hoje e que me leva a pensar nos meus bisavós, suas enxadas e suas estrelas, é a percepção da incapacidade, ou da falta de vocação, não sei, de certas gerações para as noções mais rudimentares de humildade. A respeito dessa virtude, dizem-se muitas coisas, entre as quais, o fato de ser ela mãe de todos os demais dons; pelo pouco que me é dado conhecer, sou ignorante a respeito da veracidade dessa afirmação. Mas acredito que nela haja muita lógica: tenho grande dificuldade de entender como se poderia desenvolver dons, qualidades, enfim, virtudes, se as pessoas em questão revelam imensa dificuldade em ter um mínimo que seja de humildade. Não que eu reprove, em algumas pessoas, a alta conta em que se têm a si mesmos; difícil, isso sim, é concordar com um fato tido por elas como indubitável, indiscutível: o fato de sempre julgarem estar certos sobre tudo e a crença de que jamais cometem erros. A situação, que parece corriqueira, se agrava no momento em que esses próprios seres, do alto de seu pedestal, começam a olhar para baixo e buscam nos levar a imitar o seu exemplo e segui-los naquilo que creem possuir de mais genuíno: a própria humildade. E me questiono se está errado concluir que a arrogância, isto é, o extremo oposto da virtude em questão, conduz fatalmente à cegueira, impedindo não só que se enxergue as reais dimensões de si mesmo, como também levando a um vicioso círculo, que culmina, de maneira invariável, no desenvolvimento dos piores e mais lamentáveis defeitos. Talvez a origem disso tudo esteja na supressão do silêncio, sobre o qual já me detive anteriormente, e na privação de algo fundamental para o desenvolvimento da personalidade: o saber olhar-se a si mesmo em profundidade. Penso que a explicação para tal fenômeno esteja nas palavras de Lars Svendsen, em sua obra A filosofia do tédio: “Em vez da solidão, abraçamos o egocentrismo, e nele somos dependentes dos olhares de outros: tentamos preencher todo o seu campo de visão, procurando nos afirmar. O egocêntrico nunca tem tempo para si, somente para o reflexo de si que encontra nos outros. Ele nunca encontra paz em relação a seu pequeno e encolhido eu, no entanto é forçado a inflar um eu exterior de enormes proporções – mas trata-se de um eu gigantesco, e quem o inventou tem cada vez mais dificuldade de preenchê-lo”.
Isso posto, lembro uma vez mais de meus bisavós e suas noites luminosas, imortalizadas sobretudo por Van Gogh. E me vejo diante de dúvidas, tais como saber onde foram parar, por exemplo, o amor ao silêncio que nasce juntamente com o amor à música, bem como o amor à riqueza das palavras. Mas meus ancestrais, bem como seus hábitos, estão mortos e enterrados há anos, e o horizonte que vislumbro à minha frente não é dos mais animadores. Todavia, quando o nosso próprio tempo não nos traz alento, sempre é possível recordar o passado. Muitas vezes esse é o único consolo que nos resta.
(Peço a meus leitores que perdoem as repetições. E, uma vez mais, este texto não teria sido possível sem a referência ao filósofo norueguês. O caminho para me considerar escritor, junto com a capacidade de concisão, está muito além da linha do horizonte. Mas não penso em desistir, humildemente ou não. Aliás, não creio ser possuidor dessa virtude: é realmente humilde apenas aquele que se desconhece como tal).
Vincent Van Gogh: “Starry Night over Rhone”

terça-feira, 12 de junho de 2012

De esperas e de significados

Nas últimas semanas, escrever tem sido tarefa inglória. Por mais que, com a alma embebida em livros, música e imagens, me coloque diante da escrivaninha na tentativa de dizer qualquer coisa brotada dessas leituras, audições ou contemplações, o fruto de meu esforço se revela sempre por meio de palavras que, numa ânsia exagerada de comunicar algo, tiveram uma morte tímida e prematura, antes que pudessem dizer qualquer coisa no pouco tempo em que estiveram no mundo, ou na tela. E do desaparecimento imprevisto e indesejado dessas frases natimortas, carrego a culpa e a responsabilidade, não de lhes vingar em mim o fim triste, mas de procurar dizer, em outros dias e em melhores condições, que sim, elas existiram, e que, por falha minha, não cumpriram a função para a qual foram criadas. Guardo saudades sobretudo do espaço em branco, das muitas noites em que, sentado neste mesmo lugar, as frases se formavam praticamente sem a minha intervenção, procurando juntar-se as palavras umas às outras, como se já existissem em sua forma final em outro plano, bastando eu postar-me, como agora, à espreita para que elas venham, como nas antigas noites, completar um círculo no qual meu papel parecia ser o de mero coadjuvante. Pois é assim que me vejo nesse exercício de escrever: como alguém que sabe que seu lugar é a parte de baixo de uma hierarquia formada, em ordem decrescente, pelos vocábulos, pelas frases, em seguida pelos parágrafos e, num nível mais abaixo, eu, o escrivão. Sei que parece um tanto místico, mas, a partir de minhas pequenas experiências com a escrita, posso dizer com sinceridade: é assim que funciona. São sempre inúteis quaisquer tentativas de subverter a ordem. Como disse certa vez a um amigo, não somos nós que determinamos a hora de escrever; esse ofício exige que nos vejamos com humildade e que reconheçamos que é a escrita e as palavras que escolhem o momento em que desejam descer de suas alturas. Faz muito tempo que disse isso, mas pouca coisa mudou em relação ao conteúdo.
Pensei por um momento que a diferença entre a noite de hoje e as anteriores estaria no fato de saber previamente o assunto a ser abordado, mas não é verdade. Esse constitui mais um entre os tantos aspectos que não decidimos. Pois na maioria das vezes o tema era algo que eu apenas percebia por volta da terceira ou quarta linha, e depois bastava seguir o fio do raciocínio. Embora isso não seja uma regra, percebo agora que o assunto de hoje é esse mesmo: a ausência de tema, o vazio de significado. Possivelmente nas vezes anteriores também tenha sido essa a direção correta, mas que acabei ignorando. Humano que sou, esqueço às vezes o quanto é absurda essa nossa necessidade de que tudo, inclusive as palavras, faça sentido. Algumas vezes é possível corrigir os erros cometidos; porém, e infelizmente, na maior parte dos casos, é tarde, e lamentar pelos erros também é vão. E, à espera de um tema melhor que a ausência de significado, lembro-me de Vladimir e Estragon na peça de Samuel Beckett, esperando (inutilmente?) por Godot, e percebo através dos diálogos desses dois personagens o quanto é absurda a espera do que quer que seja. Absurda, sim. Não condeno os que pensam sempre que o melhor da vida ainda está por vir, ou os que buscam incessantemente pelo amor ideal; há ainda os que esperam pelo retorno do messias, vendo nos desastres naturais, provocados pela nossa própria espécie em séculos de abusos contra a natureza, sinais inequívocos de que ele está por chegar. Outros, menos precisos, esperam pela felicidade, sem saber dizer, quando interrogados a respeito, no que ela consistiria. Em todo caso, seja o que for, acreditam que a coisa esperada está sempre no futuro. Há dias atrás, numa livraria, vi uma frase num cartão, sem indicação de autor; transcrevo-a aqui: “Não existe caminho para a felicidade. A felicidade é um caminho”. Eis algo em que acredito, e se me fosse dado dizer algo aos que esperam, seja pelo que for, diria simplesmente isso, cuidando de acrescentar, de minha parte, que não esperem viver uma felicidade apenas no futuro, mas que buscassem vivê-la aqui mesmo, nesta vida. Porém, não são poucos os que creem numa espécie de obrigação de sentir-se aflitos, para serem consolados, e assim por diante.
                          
Apesar de absurda, não creio ser inútil a espera de Vladimir e Estragon. Afinal, é preciso viver. Por sua intensidade e por sua beleza, compartilho aqui um trecho da obra: “Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada? Que esperei Godot com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite? Que Pozzo passou por aqui, com seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisto tudo? Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (Pausa) Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo, na terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto de nossos gritos. (Escuta) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha para Estragon) Para mim também, alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (Pausa) Não posso continuar”.
(Uma das muitas razões de eu não me considerar escritor é a dificuldade, ou a quase impossibilidade, de escrever sem recorrer a citações. Não guardo ilusões quanto a conseguir ser coerente; sei de minha incapacidade nesse sentido. Busco apenas ser sincero. Mas sei que isso não basta).
Sei o quanto há de presunçoso em abordar temas como vida e morte, acaso e destino, existência ou não de sentido, e se falo deles é na condição de simples mortal, a quem tais assuntos inquietam, e é tudo que posso dizer. Creio que haja uma maior possibilidade de erros quando o assunto diz respeito a todos. E, a respeito da ausência de significado ou de sentido em calar, falar ou mesmo escrever, talvez um trecho de Lars Svendsen (de quem voltarei a falar em breve neste espaço) seja pertinente: “O significado que buscamos na ausência de significado, a experiência na ausência de experiência e o tempo na ausência de tempo – serão eles meramente ilusões? Uma sensação de perda não garante que qualquer coisa tenha sido realmente perdida, e, portanto, não garante também que haja algo – um tempo, um significado ou uma experiência – que tenha de ser recuperado”.
(Enquanto escrevia este texto – que não sei como classificar – esperava por um e-mail. Mesmo sendo pequena a esperança de recebê-lo, a espera inútil me decepcionou um pouco. Mas ficaria imensamente grato ao meu pequeno círculo de leitores pela licença de dizer apenas mais duas breves frases. São bastante simples, e se resumem a isso: não esperem. Vivam).
Fotografia: Samuel Beckett