tag:blogger.com,1999:blog-49004297140132521182024-03-13T10:54:22.014-07:00Contemplações; improvisos"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa."
(Hölderlin)Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.comBlogger40125tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-87042152609017801452013-03-03T19:24:00.000-08:002013-03-04T01:55:48.652-08:00A sarjeta e as estrelas<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Esqueci quantas noites se passaram desde que, pela última vez, pensei neste espaço e encarei com fixidez e vontade o espaço em branco. É com a ânsia típica dos apressados que o revejo hoje, desejoso de ver nele algo diferente ao fim de alguns quartos de hora: mas o que pode haver nele que antes não se tenha manifestado em meus atos e pensamentos nesses últimos meses? Dessas outras faces, caso as haja, não consigo por ora vislumbrar mais que os contornos e as limitações. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Antes de prosseguir, gostaria de agradecer aos poucos leitores que se manifestaram e me interrogaram sobre as razões do silêncio. A estes, toda a minha gratidão, mas sem promessas, visto que o silêncio, quando se instala, é de duração insabida, e, se buscamos forçá-lo, o resultado raramente é bom. Mas posso dizer que meu silêncio teve origem na procura por respostas, busca malograda que me levou a calar-me. Foi vivido intensamente, esse silêncio que me foi dado, e, honestamente, de forma dolorosa também, assim como são doídas as questões que trazemos todos em nós eternamente e para as quais, conforme se sabe, não existem explicações, embora nem sempre seja inútil pensar nas poucas possibilidades. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Mesmo marcados pela ausência de escrita, os últimos meses longe estiveram de ser destituídos de significado. Como para qualquer mortal, houve muito trabalho, dias longos, noites insones. Gostaria de poder dizer que nas outras desfrutei do sono dos justos, mas me contenho, diante da sensação de que tanto as palavras quanto a ausência delas feriram alguns entre meus semelhantes, e, por mais que, examinando minha consciência, saiba tratar-se apenas de impressão, não consigo deixar de sentir a culpa que acompanha os males que, de maneira inadvertida, causamos a quem menos se deseja ferir.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Muitos foram os livros lidos neste período. Grande autores, grandes obras, mas nem por isso posso me permitir dizer que eles tenham feito de mim um grande leitor. No máximo, arrisco dizer que aumentaram minha ânsia por novos conhecimentos e por outras obras, novos autores, mesmo que todos tratem sempre das antigas questões, as insolúveis. Em mim, sempre a curiosidade pueril e ausência de cuidados ao ladear, com meus passos, os abismos, por que me atraem tanto os precipícios? Como os leitores podem ver, caso tenha sobrado algum, continuo o mesmo: a presunção de, mesmo no cotidiano mais trivial, encarar faces pouco amigáveis e vozes em nada alentadoras.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Nesta espécie de relato do não dito, coisa que já deixou de ser novidade, não posso deixar de contabilizar, como da outra vez, as obras musicais estudadas. A preferência, salvo algumas poucas e honrosas exceções, continua sendo a música de câmara. Encontrei nos compositores boas razões para fazer cessar o falar e buscar sanar nessas audições algumas das dúvidas que os livros e os humanos não puderam me fornecer. Em todo caso, e para todos os efeitos, não cultivo rancores. É mais que sabido que as melhores respostas são as que encontramos por nós mesmos, mesmo que não tenhamos a menor ideia de por onde procurar. Todavia, se há algo que aprendi, é o fato de que, se não há placas sinalizando os caminhos, de nada serve incomodar os outros com nosso incessante interrogar.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Das leituras dessas últimas semanas, destaco uma frase escrita por Oscar Wilde, usada como epígrafe em uma obra mais que pungente de Hilda Hilst: “Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Como se pode ver mais uma vez, minha ênfase continua nelas, as estrelas, para as quais me recuso a buscar adjetivos. Desse modo, apesar do trabalho de todos dias – ou graças a ele – e das respostas não encontradas, continuo a fazer dos meus dias uma contínua contemplação. As noites se sucedem como páginas no calendário. É reconfortante e, ao mesmo tempo, estranho saber que ao menos elas continuarão a brilhar por um tempo insondável. Ciente disso, busco aproveitar ao máximo cada hora, cada instante, enquanto perdurar esse tempo indeterminado. E desfrutá-la ao máximo, enquanto é possível, enquanto não chega o próximo silêncio.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Nesse tom sentimental que ainda me resta, do qual parece ser impossível me libertar, desejo a você, leitor, um dia repleto de felicidades. E fico a esperar que, no próximo texto, o sentimentalismo e o tom incuravelmente confessional sejam menores. Nesses nossos tempos ágeis, o culto à objetividade tem erigido monumentos de proporções góticas.<o:p></o:p></span></div>
Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-6473321196100530412012-12-08T18:28:00.000-08:002012-12-08T18:28:08.217-08:00J. M. Coetzee: A vida dos animais<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif';">Ao escrever para este espaço, devido à minha convivência com os livros, acontece com certa frequência de acabar abordando de maneira repetida os mesmos assuntos. A repetição, literalmente, não é novidade alguma. Não vejo, seja no dia a dia, seja na literatura ou na filosofia, hierarquia quanto a temas; creio que tudo que se refere à existência acaba fatalmente por ter sua importância, e se às vezes nos esquecemos do que na verdade, ao menos do ponto de vista ético, deveria vir em primeiro lugar, é por uma questão que depõe contra nós, humanos, que nos consideramos os donos e ao mesmo tempo o centro do planeta. Muitos desses temas são espinhosos e, não raro, chega a ser arriscado abordá-los, por constituírem um ponto nevrálgico de intensos debates, sem que se chegue jamais a um consenso ou a qualquer coisa que signifique concordância entre as partes. Mesmo agora, empreendo este texto com certo receio.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif';">Faz muito tempo que planejava escrever sobre algumas questões referentes aos animais. Houve uma época em que, como aspirante a escritor, adorava escrever contos sobre gatos, cachorros, galinhas ou mesmo um pato. Eram histórias reais, que agora jazem no devido – e merecido - esquecimento. A razão para preferir os animais como personagens reside em algo que dificilmente alguém poderá contestar: pelo simples fato de encontrar neles uma inocência que dificilmente encontraria numa criatura humana. Dizem as escrituras que Deus, ao criar o mundo, concedeu a Adão o domínio sobre a natureza, incluindo-se aí as demais criaturas; creio que nada pode haver de mais conveniente, para uma civilização desde o início antropocêntrica, receber do próprio criador licença para dispor da natureza como bem entender. O que me incomoda nisso não é tanto a presunção; incomoda-me mais a gigantesca submissão em que, nesse arranjo, ficam os animais, criados e entregues a nós como se fôssemos uma espécie muito particular de divindades.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif';">Faz anos que li a obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A vida dos animais, </i>de J. M. Coetzee. Não posso dizer que foi um despertar, porque desde sempre tive animais de estimação e considerava-me sensível, digamos, aos seus sentimentos. Em todo caso, depois da leitura dessa obra, com a constante lembrança de algumas passagens, até hoje guardo dificuldade em uma coisa que antes fazia sem sequer um mínimo de questionamento: a alimentação. Para apresentar seu tema, o escritor usa não o ensaio, como seria de supor, mas a narrativa; quem faz as conferências é um alter-ego – não sei se pode ser assim considerada - do autor, a escritora Elizabeth Costello. A obra narra a maneira um tanto atrapalhada como a personagem defende seu tema, fazendo-se porta-voz dos animais e referindo-se às granjas e aos matadouros como uma indústria de morte. Não seria correto dizer que, ao fazer um paralelo com o Holocausto, ela está minimizando a gravidade dos campos de extermínio; ela apenas quer dizer que essa carnificina, tendo agora como vítima os animais, continua a ocorrer em locais bem perto de nós, em uma forma legalizada, sem que nos importemos um mínimo que seja, com a comodidade de receber todos os dias, no conforto de nossas casas, de nossas mesas, “o suco de feridas mortais”, como costuma dizer, citando Plutarco. Interrogada sobre o que pretende com suas manifestações e, particularmente, com o abster-se de comer carne, ela responde simplesmente que deseja salvar sua alma.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif';">Convivendo desde sempre com animais – gatos, cachorros -, posso dizer que tenho uma noção do funcionamento da cadeia alimentar. O que me levou a abordar esse assunto hoje foi uma cena que já se repetiu inúmeras vezes, mas que por um momento, devido a uma razão especial, me levou a lembrar da personagem de Coetzee: na tentativa de salvar a vida de um pardal, tirado da boca de um dos meus felinos, testemunhei a agonia do pequeno pássaro – um filhote – e sua luta pela vida, debatendo-se em minhas mãos em movimentos desesperados, até que, exaurido, foi imobilizado por uma força superior. Os carnívoros de plantão possivelmente dirão que superestimo um acontecimento que se repete milhares e milhares de vezes e que, apenas pelo fato de ter sido presenciado, causou em mim aquela piedade que os seres humanos, para se sentirem superiores, gostam às vezes de sentir. A esses eu respondo que não se trata disso. Na verdade, lembrei uma passagem em que Costello conta um episódio da infância de Albert Camus, que, horrorizado, viu sua avó dar cabo de uma galinha, presenciando a desesperada luta do animal pela vida. Décadas depois, Camus escreveria um texto que seria vital para a abolição da pena de morte na França. É nesse ponto que a personagem questiona seus ouvintes, desafiando qualquer um a dizer que a galinha não falou. De minha parte, responderia que existem formas de linguagem muito mais eloquentes que as nossas muitas vezes anódinas palavras: a luta pela vida e o desespero diante da morte são apenas dois entre inúmeros dialetos, que se revelam também na confiança com que algumas espécies, como gatos e cachorros, especialmente, se abandonam a nós, em total confiança. Gaston Bachelard chega a ser comovente quando fala, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A poética do espaço</i>, do grau de confiança cósmica que um pequeno pássaro deposita no mundo ao construir seu ninho – uma confiança de que recebemos repetidos exemplos todos os dias.<o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif';">Os rituais de sacrifício são um capítulo árido e longo na história da humanidade e, ao mesmo tempo, um adendo revestido de toda a naturalidade do mundo quando o assunto é a história das religiões. Há séculos atrás, havia toda uma mitologia por trás de tais práticas, uma forma de legitimação, talvez. Posso estar errado quanto a um aspecto, e gostaria imensamente que assim fosse, mas ao mesmo tempo em que vejo a história da humanidade, vejo também o triste capítulo de seu empobrecimento em valores espirituais, a despeito de o número de religiões não parar de crescer. Em relação aos animais, o que se perdeu foi a parte mitológica, permanecendo apenas a carnificina. Em sua obra, Coetzee, através de Costello, interroga as reais diferenças entre matar um animal e matar um ser humano; o simples fato de um ser racional e o outro não poderia ser uma maneira de a razão colocar a si própria numa espécie de trono: “Deus é um deus de razão. O fato de que graças à razão se possa chegar a compreender as leis que regem o universo demonstra que a razão e o universo têm a mesma essência. E o fato de que os animais, não tendo razão, não possam compreender o universo mas devam limitar-se a obedecer cegamente suas leis, demonstra que, diferentemente do homem, eles fazem parte dele mas não participam de seu ser: demonstra que o homem é como Deus e os animais, como coisas”. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif';">É possível que alguém, ao ler este texto, me perguntasse, diante de tais considerações, o que mais exatamente pretendo com tais palavras. Não poderia responder, como Elizabeth Costello, que tenho em vista a salvação de minha alma. Tampouco se trata de escrever para desabafar e para amanhã, no almoço, depois de “ter feito minha parte”, poder comer em paz e sem razões para culpa. Também não é esse o caso, pois a culpa é algo que se carrega, e não apenas se sente como uma dor de cabeça passageira. Minha intenção é apenas dizer que precisamos de um pouco mais de reflexão quanto ao modo desenfreado como, digamos, obedecemos a Deus ao exercer nosso domínio sobre o mundo; lembrar que não somos os únicos a habitá-lo. E ter sempre em mente esta breve reflexão de Claudio Magris: “Mas mesmo quando a trompa de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Fidélio</i> ressoasse, a humanidade liberada devia recordar-se, no último andar do arranha-céu onde morasse, de todos os humilhados e dolorosos andares inferiores que sustentam, como escrevia Horkheimer, aquele andar superior. No subsolo mais abaixo, sobre o qual se apoia todo o edifício que lá em cima oferece um concerto de Mozart ou um quadro de Rembrandt, mora o sofrimento animal, corre o sangue do matadouro”.<o:p></o:p></span></div>
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Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-40947265058024014372012-11-21T13:29:00.000-08:002012-11-21T13:29:17.865-08:00Sonho de sombra passageira: pequena reflexão sobre o tempo, a verdade e a beleza – outra vez<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Lembro de haver me referido, há cerca de um ano atrás, sobre o desejo de escrever sobre os aniversários de morte de três compositores – Chopin, 17 de outubro; Schubert, 19 de novembro; e Mozart, em 5 de dezembro. Fiz longos esboços, ressaltando o fato de não dar tanta importância aos nascimentos, por acreditar que estes sempre se parecem entre si, enquanto que, ao morrer, um artista já percorreu todo o caminho que o fez tornar-se o grande homem que é – ou era, sendo sua morte, única. Passou-se um ano, e eis que me vejo pela segunda vez com essa mesma intenção, mas com as mãos vazias. A necessidade de escrever a seu respeito ainda é a mesma, e o mérito desses grandes mestres tem o tempo a seu favor. Do ano passado, guardo renovada também a gratidão a essas três celebridades, que me propiciaram tantas horas mais ricas e mais felizes, e prometo a mim mesmo voltar a falar deles e de suas obras em momento mais oportuno. Deixo-os para outro dia em função de uma impressão que me acomete às vezes, de tempos em tempos, e que, apesar de me ser já familiar, não possui nome – ao contrário desses males que levam as pessoas ao divã, embora não seja esse o caso. Não se trata de nada que seja exclusividade minha – se o fosse, não escreveria sobre o assunto; outras pessoas que conheço também sentem algo semelhante a um aceleramento na percepção da passagem do tempo, como se este, de um momento a outro, se fizesse ainda mais fugidio do que sempre foi, no seu escoar-se constante. Além disso, há uma sensação algumas vezes incômoda de que o tempo, em alguns períodos específicos, se revela mais abrasivo em sua passagem, além de trazer uma impressão de que os dias são, a cada ano, mais e mais breves, sem que necessariamente tenhamos adquirido algo com sua passagem, seja experiência, seja conhecimento, mesmo que tenhamos o hábito de não deixar passar uma hora sequer em brancas nuvens. Para muitos, trata-se de tema batido, mas não para mim. Sei da existência de várias tentativas de explicar tal impressão, ou fenômeno, mas não é meu objetivo deter-me nelas. Ocorre-me que, em vez de grandes teorias envolvendo o mundo globalizado e o modo como somos bombardeados por informação, ao mesmo tempo em que muitos se cercam de toda espécie de aparelhos a cada hora mais e mais modernos, talvez em parte isso que procuro descrever seja simples amor à vida, e um desejo maior, em comparação a outros momentos, de não vê-la passar de modo tão esquivo. Em seu romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Niels Lyhne, </i>Jens Peter<i style="mso-bidi-font-style: normal;"> </i>Jacobsen nos diz, através de seu personagem Erik: “(...) sinto que o tempo me foge, as horas, as semanas, os meses, passam por mim sem deixar vestígio, e não consigo fixá-los por meio de nenhuma obra. Não sei se você me compreende, isso tudo é apenas um sentimento meu, pessoal, mas eu preciso que uma obra de minha autoria me faça senhor de uma certa porção de tempo. Compreende? O tempo que gasto em pintar um quadro continua a me pertencer, ou pelo menos deixa sempre alguma coisa, não acaba todo apenas porque passou”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Arte, beleza, consciência de finitude, sensação de fugacidade do tempo e o desespero por conseguir fixá-lo são alguns dos temas examinados por Edward W. Said em sua obra – inacabada - <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Estilo tardio</i>. O autor se refere a certas obras que se caracterizam pelo fato de seus autores, “em vez de se acomodar a uma maturidade tranquila e conciliatória, radicalizam o descompasso com a época em que vivem e evidenciam uma relação problemática com a tradição artística em que se inserem”. Essa sensação incômoda a que me refiro talvez guarde certo parentesco às interrogações de Píndaro ao se referir “às criaturas de um dia, o que é qualquer uma delas? O que não é? O homem não é senão o sonho de uma sombra. No entanto, quando surge, como uma dádiva do céu, um lampejo do sol, pousa sobre os homens uma luz radiante e, oh! Uma vida benigna”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Sendo eu nada mais que sonho de sombra passageira, não tenho maiores ilusões em conseguir dizer alguma coisa que acrescente algo à obra cada uma incomparável, a seu modo, de Chopin, Schubert e Mozart, e, com essa consciência, não empreendo sequer a primeira linha. Pois, sob o jugo dessa impressão referida acima, talvez uma consciência, mais lúcida – ou menos equilibrada - que em outros momentos, que o dia presente pode ser o último – impressão a que não nego a aparência de algo obsessivo, ou mesmo doentio -, busco dar um passo em direção aos objetivos que normalmente temos em vista, mas que, quando buscamos uma definição, as palavras nos fogem. Seria possível referir-se, com algum acerto, a uma nesga de verdade e a um raio de beleza? Serão a verdade e a beleza compatíveis, ou serão como essas substâncias que não se misturam? Quanto à primeira, não há como não lembrar de Nietzsche, para quem “não existem fatos, apenas interpretações”. Creio que o caminho passa por várias etapas sucessivas, como renúncia, humildade, prontidão e entrega, e é certo que não acaba aí. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quanto à beleza, da mesma forma como acontece com a verdade, as opiniões variam. Não sei se existe assunto em que haja unanimidade de opiniões; quando a questão é gosto, é muito menor a chance de se chegar a um consenso. Em todo caso, vale lembrar Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra”. Nesta área, o que é resposta para alguns consiste em etapa vencida para outros. Tem-se muito trabalho, diga-se, porque muito do que havia foi destruído em outros tempos. O que restou talvez tenha ficado pelo simples fato de ter passado despercebido, ou, segundo o pensamento de Sabina, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A insustentável leveza do ser: </i>“Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda por alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estágio da história da beleza”. Prefiro pensar que ainda há esperanças, embora não aviste nada na linha do horizonte que possa trazer alento. A respeito do que ainda resta, gosto de pensar nesse pouco como algo indefinível, mais ou menos como as palavras de Norman Del Mar: “É prerrogativa da grande arte suscitar emoções sem nome, mas capazes de nos dilacerar”. Por outro lado, há ainda a beleza como elemento próprio da rememoração do tempo passado, num sentimento que funde senso estético com nostalgia. Como exemplo, são bastante eloquentes as palavras de Claudio Magris, em seu texto que prefacia a edição brasileira de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Niels Lyhne</i>: “’Mas chorava uma saudade da vida, / muda e sem nome’, diz um poema de Hoffmannstahl, que compara essa saudade à melancolia de quem passa num navio, à noite, diante da cidade natal, vê as ruas e os jardins familiares da infância, vê a si mesmo ainda criança na margem, gostaria de responder a uma luz que o saúda de uma janela mas é levado para longe pelo navio”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Integrando o vasto universo temático do romance de Jacobsen, encontra-se um trecho que, creio eu, obtém êxito em colocar beleza e verdade lado a lado. Trata-se da descrição de uma pintura de Erik, em que se percebe a necessidade de fazer escolhas, considerando que a cada uma equivale uma infinidade de renúncias: “(...) uma jovem procurava tirar a própria sorte, à moda italiana. Está ajoelhada num lugar onde a terra parda aparece em meio à erva curta; coração, cruz e âncora de prata batida, destacados do seu colar jazem no chão, e ela ajoelhada, os olhos conscienciosamente fechados, cobertos por uma das mãos, enquanto a outra se estende para encontrar a felicidade suprema do amor, ou o amargo sofrimento mitigado pela fé, ou o destino comum de paciência e de esperança. Ainda não ousou tocar o solo. E é tão tímida aquela mão na sombra fria e misteriosa, as faces enrubescem e a boca hesita entre a prece e o pranto. (...) Ah, se soubesses! Felicidade indizível no amor, amargo sofrimento mitigado pela cruz, ou a esperança e a paciência do destino comum?”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Em praticamente todo guia destinado a aspirantes a escritor, aparece em posição de destaque o fato de o tempo do leitor ser precioso; aconselham-nos, portanto, a sermos breves, se não quisermos ficar no anonimato. Tendo em vista que meu tema hoje é a fugacidade do tempo, creio não poder discordar: sei que, no que depender de minha prolixidade, os leitores passarão longe deste blog. Para encerrar, portanto, além de me desculpar pela extensão do texto, gostaria de acrescentar que não, não creio que a beleza tenha desaparecido por completo. Em todo caso, sou levado a pensar que o belo se oferece mais facilmente e com maior generosidade não apenas por engano, como nas palavras de Sabina, mas quando não temos dúvidas sobre onde procurá-lo, e quando se tem em mente que ele pode ser encontrado às vezes mesmo por acaso – o que faz do encontro algo ainda mais comovente. Em todo caso, sugiro com humildade as páginas imortais de todos os grandes mestres da literatura. E, obviamente, as obras de Chopin, Schubert e Mozart.<o:p></o:p></span></div>
Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-30801461988554302592012-11-10T22:20:00.000-08:002012-11-10T23:10:23.337-08:00Um ano de "Contemplações"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://3.bp.blogspot.com/-urUFG0VBq_w/UJ9DBHsxKuI/AAAAAAAAASU/lB0Himbucxc/s1600/Caspar_David_Friedrich_-_Moonrise_over_the_Sea__detail_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="236" rea="true" src="http://3.bp.blogspot.com/-urUFG0VBq_w/UJ9DBHsxKuI/AAAAAAAAASU/lB0Himbucxc/s320/Caspar_David_Friedrich_-_Moonrise_over_the_Sea__detail_.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando criei este espaço, tinha em mente apenas de forma um tanto vaga quais eram os meus objetivos primordiais. Confesso que, de início, faltava humildade nos propósitos: era meu desejo abarcar assuntos como livros e literatura, música, filosofia, arte em geral – ou seja, um leque que se revelou vasto demais e que, pela falta de uma maior precisão na abordagem, acabou por tornar obscura a meta inicial, que deveria ser a ênfase na leitura e nos escritores. Posso acrescentar ainda, sobre esse início, outro fato, também relativo a inícios, mas, no caso, aos textos como unidade: sempre que me ponho a escrever algo, é com um sentimento de comoção, em geral por algo lido ou ouvido ou mesmo por algum elemento ainda em germe na ideia e a ser definida na escrita. Essa comoção existe mesmo se o texto em questão acaba permanecendo inacabado, por uma ou outra razão. E creio poder dizer hoje que a intensidade, assim como a experimento, não esteve ausente nessa minha breve jornada, seja nas crônicas – realmente não sei como classificar meus escritos -, seja no todo. Uma comoção com mais perplexidade que eloquência, é verdade, e, por causa disso, também caracterizada pelo tom balbuciante, mais que prolixo em seus esgares, que em conteúdo revela certo parentesco com a mais completa mudez. Não creio estar sendo rígido demais comigo mesmo, mas sincero. Pois, passado pouco mais de um ano, vejo o quanto faz falta um foco mais preciso na escolha e na condução dos assuntos. Creio não ser exagero dizer que, tal como um viajante deslumbrado, deixei-me muitas vezes distrair e fascinar por inúmeros cantares, dos quais me pareceu por bem dar testemunho, e acabei me desviando daquilo que havia tomado como objeto inicial, muito bem resumido por Elias Canetti, que, escrevendo sobre literatura, se referiu a obras “das quais precisamos, de uma outra maneira, certamente, mas não menos que de nosso pão de cada dia, pois seríamos nutridos e sustentados por elas mesmo se nada mais nos restasse, mesmo se nem ao menos soubéssemos o quanto elas nos sustentam, ao mesmo tempo que, em vão, procuram em nossa época por algo que se possa igualar”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Pois bem: quis dar a conhecer autores, compositores, obras, comentá-los, interpretá-los. Contudo, e talvez esse tenha sido o meu erro, deixei-me conduzir com ânsia talvez exagerada quando procurei tratar de vivê-las, essas obras, e de acomodá-las em minha rotina, ao lado de meus demais afazeres e obrigações. Por outro lado, pergunto-me se a voz daquele que está sob o encanto de determinada melodia, imerso em contemplação, não constituiria talvez um ponto de vista suspeito para descrever tal música, tal canto, tais livros. E, não sabendo viver sem entusiasmo, esse humilde deus interior que habita de forma diferente em cada um de nós, minha voz passou a ser, para mim mesmo, objeto de desconfiança, ou mesmo indigna de crédito, ao menos no que se referia a tais assuntos. Tornou-se necessária então uma pausa, uma tomada de consciência, para buscar lançar sobre as metas uma luz mais precisa, única maneira de distingui-la em meio às sombras. Vem-me à mente a ideia vaga dos peixes, que descobrem a existência da água em que estão mergulhados apenas no momento em que ela lhes falta; de modo semelhante, talvez não sejamos as melhores testemunhas do mundo que nos rodeia. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>É verdadeiro o fato de haver comoção nesse deixar levar-se, nessa imersão no elemento poético, na linha melódica; mas, para o leitor, é indispensável que haja objetividade, sob pena de se deixar de saber, de um momento a outro, o que esperar. Por uma série de boas razões, estou muito distante de ver-me como poeta ou escritor; ao examinar o fruto de minha dedicação, vejo antes de tudo o limite, as falhas - sobretudo a presunção na escolha de alguns dos temas - e a grande distância da sonhada simplicidade. Talvez o tempo mude esse meu modo de ver. É nesse ponto, a respeito da necessidade de um norte, e de que esse ponto seja bem definido, que me valho outra vez de Canetti: “O poeta está mais próximo do mundo quando carrega em seu íntimo um caos; no entanto, e este foi o nosso ponto de partida, sente responsabilidade por esse caos – não o aprova, não se sente bem com ele, não se crê importante por ter em si espaço para tanta coisa contraditória e desconexa, mas odeia o caos, e não perde jamais a esperança de dominá-lo em prol dos outros e de si mesmo”. A respeito disso, acrescento: não é necessário ser poeta para ter em si esse estado de aparente desordem: basta ser leitor. Considero-me um sujeito muito feliz pelo privilégio de poder viver em meio a um “caos” de trabalho, livros, animais, música, amigos, letras, textos, e sou muito grato à vida por essa possibilidade. Mesmo que me faça feliz, porém, o caos, seja de que elementos for, é sempre aquela desordem que, de forma completamente diversa daquele universo caótico primordial de que temos uma vaga descrição, se faz de elementos já definidos, mas que, bem ou mal, precisam conter entre si uma certa harmonia, sob pena de esse elemento de instabilidade que às vezes lhe é próprio passar a reger nossos dias, já numa coloração mais obscura. As palavras de ordem parecem ser clareza de objetivos e ajuste de foco – não em mim mesmo, mas nas leituras e nos autores. Mesmo que o eco àquilo que se escreve não seja outro senão o mais absoluto silêncio; trata-se, mais do que nunca, da típica questão de satisfazer antes de tudo a si mesmo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Há alguns meses, escrevi sobre a maneira como Michelangelo fazia suas esculturas, comparando em seguida seu método à formação de uma voz, através da retirada de tudo que não era forma, sucessivamente, até que não restasse senão a escultura. Ignoro de que maneira nasce a voz que ouvimos ao ler uma obra literária; ignoro também se meus textos, salvo as falhas, possuem qualquer aspecto característico, no sentido de timbre, pois minha maneira de escrever é antes de tudo instintiva. E é dessa intuição que me vem a ideia de que elaboramos nossa tessitura em primeiro lugar lendo, lendo muito, e relendo, até que uma grande multiplicidade de vozes tenha ressonância em nosso silêncio interior. Posso estar errado, mas creio que parte do processo se resuma em buscar conferir um estado de harmonia a essas vozes, embora não lhes retirando de todo os tons dissonantes; e creio que isso se faz sobretudo ouvindo-se a si mesmo. O arranjo das palavras que se elevam desse coro, de seus desajustes e de seu estado inicialmente confuso, comporão nossas linhas. A respeito disso, talvez seja pertinente recordar aqui algumas palavras de Danilo Kis: “Eles jogaram os livros no chão, pisoteando-os e rasgando-os diante de mim. (...) E eu disse que não os rasgassem, pois uma multidão de livros nunca é perigosa, mas um livro só é perigoso; e eu disse que não os rasgassem, pois a leitura de inúmeros livros leva à sabedoria e a leitura de um só, à ignorância armada de loucura e ódio”. Não creio poder dizer a meu respeito que a leitura me tenha trazido alguma sabedoria; não guardo mais esperanças quanto a isso. Pois, se o próprio Montaigne fala da ilusão que vez ou outra temos de que, com a idade, nos tornaremos mais maduros, vemos essa ideia ir por água abaixo quando a idade vem por si, com o tempo, e percebemos que ela, fora os anos a mais, nada nos traz em acréscimo. Segundo o filósofo francês, por mais que estar ciente disso seja um pequeno princípio de conhecimento, não é coisa que valha muito. Contudo, talvez seja suficiente para que não nos enganemos. Em todo caso, e lembrando a maneira como Comte-Sponville encara a esperança, inicio este segundo ano em estado de consciente desespero em relação a melhorar em algo, isso no sentido de que o crescimento, como se sabe, só vem através de muito esforço. E disso não tenho medo. Tampouco a quase inexistência de eco - salvo as exceções que fazem desta uma regra menos penosa - é motivo para maiores desânimos. Pois, por menor que seja nossa contribuição, caso ela seja honesta e sincera, teremos, ao final, um roteiro escrito de nossa jornada, mesmo que esta seja apenas mais uma entre muitos milhões – e mesmo que esse roteiro exista apenas para uso próprio, em função da precária capacidade de nossa sempre ineficiente memória.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;"></span><span lang="EN-US" style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: EN-US;">Caspar David Friedrich: “Moonrise over the Sea”<o:p></o:p></span></div>
Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-53587266660315002292012-10-21T18:47:00.000-07:002012-10-21T18:55:06.452-07:00Infância e leitura: impressões<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">No momento em que planejamos algo – qualquer coisa que tenha origem em nossa história como indivíduos –, antes mesmo de dar o primeiro passo ou, no caso em questão, colocar na página a palavra inicial, creio ser natural em nós o desejo de saber de que modo chegamos ao ponto em que estamos no momento de tal ato ou, para ser mais específico, no instante exato em que tiveram início estas páginas. Natural ou não, o que me leva a essa interrogação é a curiosidade em relação a saber como fui levado, pelo acaso, por acidente, pelo destino ou mesmo por uma outra via não imaginada, dessas que sempre fogem ao alcance, a começar a escrever estas linhas. Por um senso de honestidade e de lealdade para comigo mesmo e para com o eventual leitor, cumpre dizer que, se agora empreendo esse pequeno inventário, essa procura não só por respostas, mas também por antigas interrogações, isso não tem origem senão na curiosidade e no desejo de perpetuar algumas imagens escolhidas. Estou ciente de que isso só é possível de um modo bastante precário, e que, no fim, para o bem ou para o mal, mesmo os fatos que se logrou descrever aparentemente com maior exatidão não serão mais que meras fantasias e variações em torno de um mesmo tema: o recordar, e, nesse exercício, bastante proustiano, aliás, buscou-se a fidelidade não tanto aos acontecimentos tal como se sucederam, mas ao modo como os sentimos. Dito isso, creio estar sendo sincero ao afirmar que minhas palavras têm sua origem em tardes bastante remotas, quando eu, criança, ao contrário de outros meninos, costumava brincar sozinho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Na maior parte das vezes, era por escolha própria o fato de ser apenas eu a brincar, e isso por uma razão bastante simples: estando a sós com minha imaginação, podia retardar ao máximo o momento que, cedo ou tarde, sempre chegava, isto é, a hora em que, entre dois, éramos confrontados com a realidade imediata: as vozes de nossas mães nos chamando para voltar para casa, para fazer deveres ou mesmo para tomar banho. A verdade é que, em companhia de outros meninos, o faz-de-conta adquiria uma fragilidade muito mais delicada, e a voz das outras crianças, quando menos se esperava, era a desestabilização em potencial. Em relação a isso, para o bom andamento de qual fosse a brincadeira do dia, nasceu em mim, naquelas tardes antigas, a fantasia de que nada é mais real do que, em termos de ficção ou realidade, nós mesmos estabelecemos como verdade sagrada. E assim, com dogmas que apenas eu e algum hipotético anjo da guarda conhecíamos, as tardes semiencantadas se sucediam, tendo como cenário o quintal e as ruas de uma pequena cidade do interior.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Como se pode suspeitar, não era porém o desejo de dar maior poder à fantasia a única razão pela qual minhas ficções eram desprovidas de personagens coadjuvantes. Por um certo tempo, e por uma razão que busco até hoje compreender de alguma forma, acreditava-se, não sei se com base em fatos ou crenças, que eu era diferente dos outros meninos da minha rua. Falava-se em uma suposta diferença como se todos os outros fossem iguais entre si. Inútil tentar saber em que consistia tal diferença. Pelo pouco que me foi dado conhecer a respeito, recordo-me de certa vez em que me foi dito que eu era ingênuo demais. É fato que havia em mim um certo ardor na forma como vivenciava o que lia, um ardor talvez excessivo. Essa característica permanece inalterada, mas em nada me prejudica o viver; antes pelo contrário. E se é verdade ou não que só nos damos conta de nossa ingenuidade no momento em que não a possuímos mais, concluo disso que talvez eu seja ingênuo até hoje.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Não creio, todavia, que tal característica se devesse à sinceridade com que, naquelas tardes, me entregava aos papéis de herói ou cavaleiro. Antes, prefiro acreditar numa versão mais racional, até porque só podemos habitar com êxito o reino da fantasia quando se está sob o primado básico e necessário de uma realidade mais palpável, que passa por saber das muitas verdades a que, em qualquer fase da vida, se tem acesso e às quais se está submetido, e, entre elas, o conhecimento de que todos os seres, mesmo as crianças, possuem em grau elevado elementos como maldade e mesmo crueldade. Para resumir os fatos, digo que decidiu-se, com base em não sei quais critérios, verdadeiros ou não, que eu não era como os outros e, em decorrência disso, eu mesmo preferia brincar sozinho - até porque não havia outro remédio. Não creio ter errado nessa preferência: talvez eu já intuísse que essa era a única maneira de não macular a infância, essa fase de sonhos em que tudo tem origem, e protegê-la de uma proximidade mais que a desejada de elementos nocivos de uma face menos beatífica da realidade. Pois tudo tem seu tempo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Ao contrário do que se pode imaginar, porém, essa crença de que eu era diferente só me trouxe vantagens. Pois, para povoar aquelas tardes remotas, passei a recorrer com maior frequência aos livros da biblioteca do colégio onde estudava. Desse modo, passei a preencher minhas horas e minha vida com conteúdos que nenhum outro ser humano poderia me oferecer, a não ser os escritores. De minha convivência com eles, além dos primeiros rabiscos, começou a se intensificar, naquele tempo, além de um aprofundamento da imaginação, uma voz interior – penso que não estou errado em chamá-la desse modo – ou, em palavras mais precisas, uma consciência; se algumas vezes, ao longo da vida, fui algumas vezes privado dela, é coisa que ainda veremos. Daquelas tardes em companhia dos livros, dos sentimentos que me animavam, a noção que me restou talvez não seja diferente daquilo que na época eu experimentava em relação aos personagens das histórias narradas, que, na minha ânsia por vivenciar algo semelhante em encanto àquele universo feérico, mais afastava do que aproximava. Era algo como um dar-se a conhecer para depois tornar-se distante e impossível. E dessa inacessibilidade, para um menino tido como ingênuo, eu era bem consciente. Prova disso é a lembrança vívida de certa tarde em que reagi à beleza, ou à sua intangibilidade, de uma forma mais intensa que o habitual. Na aparência, era uma tarde como as outras; talvez apenas estivesse um pouco mais sensível, ou talvez a suposta diferença tivesse sido apontada de modo um tanto mais brusco. Mas o fato é que tinha em mãos uma gravura representando o cenário e os personagens de um dos contos de que mais gostava. Não sei se por saber-me de fato comum, em nada diferente aos meninos que povoavam o cotidiano de minha rua, ou por ter consciência de estar tão distante daquele universo imaginário, lágrimas nada fictícias passaram a correr de repente sobre minha face. Instado por minha mãe, preocupada, sobre a origem do pranto, não soube o que responder. Limitava-me a mostrar a imagem que tinha em mãos, mas esta, de um momento a outro, perdera sua eloquência e tornara-se anódina, ao menos para a uma mãe alvoroçada diante de um filho que chora por uma razão que ele próprio não soube então compreender. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Mas este foi um fato isolado, e as tardes posteriores tiveram continuidade sob égides mais equilibradas entre fantasia e a realidade cotidiana. Mas de qualquer forma, sob certo aspecto e por razões difíceis de especificar, acabei me tornando exatamente aquilo que antes eu procurava manter à distância. Em termos mais precisos, uma voz desestabilizadora, que não hesita em chamar a verdade de ficção desprovida de sentido e esta, de realidade imediata. Voltando ao tópico do ponto de partida, acredito estar sendo honesto em dizer que estas páginas nascem exatamente disso: de buscar tornar difusas as linhas imaginárias entre uma instância e outra, para fazer delas a minha história e a história dos que me cercaram, dos que ainda me cercam e do que vejo além, na linha um tanto obscura de um horizonte em que ainda não se distingue um fim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">A título de informação, foi apenas depois do contato com os escritores que desisti de brincar com os meninos da minha rua. De uma certa forma, posso dizer que, através da leitura, e também do próprio tempo, descobri que eles não eram o que eu pensava que fossem. Sei que pessoa alguma é culpada da imagem que dela fazemos, e por isso eles permanecem, ao menos nisso, inocentes. De qualquer modo, deixei-os de lado e só depois disso tive amigos: meus colegas de escola, que, durante todo esse tempo, estavam lá, à minha disposição, esperando apenas que eu os procurasse. E nos tornamos amigos sinceros. Em sua opinião, não havia diferença entre nós, a não ser essas que diferenciam um indivíduo de outro. Em última análise, não éramos mais do que isso: garotos comuns, como quaisquer outros, atravessando as fases mais decisivas da vida, no início de suas trajetórias. E, só para constar, nunca mais chorei pela ficção ou pela arte; a realidade em si já é suficientemente trabalhosa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Nesses exercícios de fantasiar, não são mais os chamados maternos que anunciam o momento de parar. Mas, de qualquer maneira, estejamos nós sob o primado do real ou do fictício, sejamos nós adultos ou meninos, há algo de que não logramos fugir, e que permanecerá para sempre inalterado: o adiantado da hora ou, em outras palavras, da única coisa imutável em nossa existência de criaturas mortais: a premência nunca flexível do tempo.<o:p></o:p></span></div>
Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-13333433127599263672012-10-08T21:30:00.000-07:002012-10-09T01:47:46.158-07:00Das dificuldades de prestar tributo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-vCcpk1zSRdk/UHOn2W08ilI/AAAAAAAAAQk/FX4J-Du9HXQ/s1600/Friedrich_Cloister_Cemetery_in_the_Snow_1817-19.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="238" nea="true" src="http://1.bp.blogspot.com/-vCcpk1zSRdk/UHOn2W08ilI/AAAAAAAAAQk/FX4J-Du9HXQ/s320/Friedrich_Cloister_Cemetery_in_the_Snow_1817-19.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Dizem que o tempo cura todas as feridas. Faz muito tempo que essa frase me foi dita, em circunstâncias nada comuns. Hoje, passados vários anos, sinto-me duplamente enganado: por quem me disse tais palavras e ao mesmo tempo por mim mesmo, por ter acreditado. De qualquer maneira, perder alguém com quem dividimos a vida desde o momento que nascemos nunca poderá ser definido como algo de que nos desincumbimos com facilidade, pois qualquer dor que sentiremos nesse processo de luto será sempre um desafio às leis da natureza e dos afetos. Quando se trata de ver a morte de um irmão de apenas 30 anos de idade, no auge de sua vitalidade, que, além de ser nosso irmão, era esposo dedicado e pai de um menino de apenas um ano e oito meses, palavra alguma que nos digam tomará o lugar da total ausência de sentido e da precariedade de qualquer esboço de resposta a que tentamos, por teimosia, nos apegar. Embora já tivesse perdido meu pai, creio que, por mais que se tente, nunca estaremos preparados para esses momentos. Nessas ocasiões, costumo dizer, só o silêncio é capaz de simbolizar nosso estado e de fazer ressoar nossa total perplexidade. E esta não é outra senão a mesma de todos os dias, acrescida apenas de três camadas ou mais de absurdo. Existe uma frase segundo a qual o que não tem remédio remediado está, e, por mais que as palavras, nesses tempos difíceis, digam pouco, de uma maneira ou de outra é a elas que nos agarramos quando tudo à nossa volta parece desabar, como se o simples fato de nomear objetos e sentimentos e descrever experiências com a linguagem que todos usam no dia a dia fizesse as coisas, aos poucos, retomarem uma certa aparência, sempre precária, é verdade, de normalidade. E assim, pouco a pouco, o mundo voltava aos eixos, enquanto a realidade prática nos levava a enfrentar decisões e detalhes de que, mesmo pequenos, preferiríamos ser poupados, como escolha de tons de mármore, datas e epitáfios. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Em tais escolhas, geralmente somos confrontados com várias emoções conflitantes, que, dependendo de nossas crenças, ou da falta delas, nos levam a enfrentar por uma última vez não apenas a figura de quem acabamos de nos despedir, mas nossas próprias convicções quanto à morte e, mais do que tudo, quanto ao significado mais imediato de nossa vida. Lembro de ter escrito, certa vez, que a dor da perda é a mais intensa das musas inspiradoras, e se nos vemos impelidos tantas vezes a desafiar a própria lógica do universo e da natureza, empenhamo-nos nessas últimas homenagens não por uma questão de demonstração de poder aquisitivo ou de ostentação, como pretendem alguns, mas como a última coisa ao nosso alcance que podemos fazer, como uma última palavra dirigida àquele que partiu. Por mais que saibamos: é tarde. Foi pensando desse modo que buscamos, meus familiares e eu, imprimir à sepultura de meu irmão algo de sua personalidade: um livro aberto, em mármore, com seu nome e as datas de nascimento e morte; ao lado, uma grande placa em bronze, com algumas palavras em homenagem, além de uma fotografia. Desse modo, aquele que partira tão cedo, emoldurado em metal nobre, lançava-nos seu franco sorriso, literalmente do outro lado, e, à sua direita, um trecho especialmente escolhido e traduzido de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Os frutos da terra, </i>de André Gide: “Eu precisava de um pulmão, disse-me a árvore. Então, minha seiva fez-se folha a fim de que com ela eu respirasse. Quando terminei de respirar, o meu fruto caiu, mas não morri por causa disso. O meu fruto contém todo o meu pensamento sobre a vida”.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Feitas essas escolhas, a vida seguiu seu rumo e, com o passar do tempo, o cotidiano pareceu retomar seus ares de normalidade, seja lá o que isso for.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">É verdade que todos os anos, em certa data, havia horas difíceis: dia 18 de novembro era aniversário de meu irmão. Quanto ao dia 2 desse mesmo mês, nunca teve grandes significados para mim: saudade não é coisa que se sente com hora marcada. Em vista disso, ia ao cemitério em datas sem relação com as tradições. Na verdade, mesmo que as escolhas referidas acima tenham sido feitas com todo o amor que nos restava, e que ainda resta, vejo os cemitérios mais como um repositório de dados como datas, nomes, e, se fosse fazer uma homenagem, dificilmente me ocorreria ir a uma sepultura, por mais que haja quem diga que tudo que restou do ente querido se encontra lá. Não penso desse modo. A criação da casa de cultura e a rua com seu nome, bem como o lançamento em livro das crônicas de Marco Antônio, se revelaram homenagens muito mais profundas, pois provaram a mim, como relutante revisor, que um ser humano pode ensinar muito a outro mesmo não estando mais ao nosso lado. Mesmo que seja um aprendizado às vezes doloroso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Foi por preferir ver o que restou de Marco nos passos e conquistas de meu sobrinho Arthur que passei a maior parte desses anos sem ir ao cemitério. Mesmo assim, foi com o máximo espanto que, em 2009, recebi a notícia de que a placa maciça e os caracteres em bronze haviam sido roubados do túmulo. De alguns anos para cá, com o agravamento do uso do crack, visitas desacompanhadas são pouco recomendáveis até mesmo à luz do dia. (Meses depois, os caracteres seriam recolocados, mas em metal mais comum). Em todo caso, independente de causa, a saudade em si, agravada pela notícia do roubo, fez pesar-me a consciência por tantos anos sem uma homenagem mais convencional à memória de quem se foi. E assim, com pesar, fui a uma floricultura e escolhi crisântemos de um branco luminoso e vibrante – dizem que as outras cores não são apropriadas, embora não entenda muito disso. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Foi com a inocência dos distraídos que me dirigi, então, ao Cemitério Municipal, esquecido de um fato óbvio: que ano a ano são muitas as mortes e todos os espaços vão sendo aos poucos preenchidos. Contudo, lembrava-me bem do pequeno monumento erigido em memória do irmão que partiu, mas não contava com um fato inesperado: à medida que avançava por entre os túmulos, percebi haver muitos outros com caracteres roubados, muitos outros túmulos imitados com idêntica representação de livro aberto, de cruz e retrato – todos na mesma situação, faltando nomes e os dados mais básicos. Tomado da mais completa perplexidade, deparei-me com várias possibilidades. Em um daqueles túmulos, jazia um irmão, mas, especificamente, em qual deles? Tratava-se da morte anônima, literalmente. Diante da incerteza, constrangido, deixei as flores sobre um daqueles monumentos multiplicados, provavelmente o errado, olhei em volta e deixei o lugar. À perplexidade das perdas somam-se as premências de quem sobrevive independente de conhecer ou respeitar a memória dos que já não podem se defender. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Convenci-me de que, sob certos aspectos, é verdade que a morte tem o poder de igualar a todos. Qualquer palavra talvez fosse suspeita; em todo caso, sou levado a pensar, embora sem certeza alguma, que as grandes perdas, assim como outros processos gradativos, se deem também aos poucos, aqui e ali, enquanto buscamos reconstruir, mesmo depois de tantos anos, o sentido do que restou. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
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<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Caspar David Friedrich: “Cemitério na neve”, 1817<o:p></o:p></span></div>
Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-79266243428561373442012-09-16T13:31:00.000-07:002012-09-16T13:31:58.099-07:00Coisas que perdemos no caminho<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Existem vezes em que o espaço em branco representa um desafio maior do que realmente o é nas outras vezes, e a tarefa de escrever, na maior parte das vezes uma atividade tranquila, apesar dos percalços e dos eventuais silêncios, se torna um verdadeiro desafio. Isto acontece, entre outros fatores, pelo fato de alguns assuntos representarem uma verdadeira prova à nossa capacidade de exposição e de síntese. E quando nos propomos escrever sobre os rumos incertos do mundo atual e seus descaminhos, há que se ter cuidado com as palavras. Em sua obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A resistência, </i>o escritor argentino Ernesto Sabato traça um preocupante painel de nossa realidade; ao concluir a leitura desses textos, verifica-se que o adjetivo “sombrio”, usado para descrevê-los no texto da contracapa, nada tem de inadequado, tendo em vista que o qualificativo define muito bem os dias atuais, que estão longe de constituir um cenário pacífico. Talvez uma das melhores maneiras de descrever um determinado período seja através da enumeração de coisas que perdemos ao longo do tempo. Ao iniciar esse inventário, a nossa primeira descoberta é que, ao mesmo tempo em que nos cercamos de toda espécie de artefatos de utilidade duvidosa, por outro lado nos privamos de coisas essenciais. Podemos citar um trecho em que Sabato afirma que um mundo sem espírito não passa de uma terra devastada, ou, resumindo as suas palavras em outros termos, trata-se de uma paisagem de grande desordem, estado estabelecido sem que algo de maior gravidade tenha necessariamente acontecido de uma hora para outra. Se minha leitura foi correta, a ameaça se encontra justamente nessa forma sutil como o caos se instaura. De modo mais específico, segundo o escritor, “o momento de maior empobrecimento de uma cultura é esse em que o mito começa popularmente a ser definido como uma falsidade”. Se concordarmos com Luc Ferry, para quem a mitologia ocupa o elevado grau de pré-história da filosofia, percebemos a real gravidade da situação: com efeito, que tipo de pensamento pode surgir de uma sociedade desprovida de todo o arsenal do imaginário, lembrando uma realidade da qual até mesmo os relatos mais essenciais desapareceram? Pensando no papel exercido tanto pelo imaginário como pela mitologia, podemos nos interrogar, juntamente com Sabato: “E acaso são explicáveis os grandes valores inerentes à condição humana, como a beleza, a verdade, a solidariedade ou a coragem? O mito, assim como a arte, exprime um tipo de realidade da única forma como ela pode ser expressa”, escreve, salientando a inutilidade de toda tentativa de racionalização da mitologia: “Defronte a questões inefáveis, é infrutífero tentar aproximar-se por meio de definições”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Deparei-me com essas palavras do autor de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Sobre heróis e tumbas</i> de uma daquelas maneiras que nunca sei se posso considerar casuais ou aleatórias. De qualquer maneira, casualmente ou não, estava há poucos dias lendo um documento que me permitiu ter uma ideia das reais proporções de nossas perdas, não apenas em termos de mitologia, mas em relação a um contato mais vívido com o mundo natural e à convivência pacífica com a natureza. Da maior parte das coisas que perdemos só nos damos conta muito tempo depois, quando lançamos um olhar em retrospecto. Em 1852, o governo dos Estados Unidos fez um inquérito sobre a aquisição de terras tribais para destiná-las a imigrantes que chegavam ao país. Em resposta, o chefe Seattle escreveu uma carta – hoje bastante conhecida, embora não respeitada como merece - que tenho na conta de uma declaração de princípios e de ética poucas vezes superada. A seguir, transcrevo alguns trechos: “O presidente, em Washington, informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu, ou a terra? A ideia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte da terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção de praia, cada bruma na floresta escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e na experiência do meu povo. Conhecemos a seiva que circula nas árvores, como conhecemos o sangue que circula em nossas veias. Somos parte da terra, e ela é parte de nós. (...) Se lhes vendermos nossa terra, vocês deverão lembrar-se de que ela é sagrada. Cada reflexo espectral nas claras águas dos lagos fala de eventos e memórias do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do meu pai. (...) Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara. O vento, que deu ao nosso avô seu primeiro alento, também recebe seu último suspiro. O vento também dá às nossas crianças o espírito da vida. Assim, se lhes vendermos a terra, vocês deverão mantê-la à parte e sagrada, como um lugar onde o homem possa ir apreciar o vento, adocicado pelas flores da campina. (...) O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela. (...) Amamos esta terra como o recém-nascido ama as batidas do coração da mãe. Assim, se lhes vendermos nossa terra, amem-na como a temos amado. Cuidem dela como temos cuidado. Gravem em suas mentes a memória da terra tal como estiver quando a receberam. Preservem a terra para todas as crianças e amem-na, como Deus nos ama a todos”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://4.bp.blogspot.com/-TAgWV9ApfGw/UFY2VakfoJI/AAAAAAAAAQE/Sl4WSSM1zuw/s1600/narcissus-caravaggio-ii.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" hea="true" height="320" src="http://4.bp.blogspot.com/-TAgWV9ApfGw/UFY2VakfoJI/AAAAAAAAAQE/Sl4WSSM1zuw/s320/narcissus-caravaggio-ii.jpg" width="262" /></a></div>
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<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Como se percebe, a carta não trata de apenas um assunto, mas de uma infinidade de valores de que hoje, em razão de nossa memória de curto alcance, entre tantos outros fatores, nos vemos privados, de uma maneira que me recuso a considerar irreversível. Em termos descritivos, talvez não seja tão difícil definir a sociedade atual. Vejo a história da pintura como uma coleção de imagens cuja eloquência não se perdeu com o passar dos séculos. Antes pelo contrário: nela estão refletidas várias etapas pelas quais passamos, estejam elas no passado ou no presente, com alcance para além do futuro. Nesse sentido, creio que uma das imagens mais condizentes com nosso tempo é o “Narciso”, em que Michelangelo Merisi da Caravaggio retrata o jovem que, segundo a lenda grega, apaixona-se pelo próprio reflexo na água, paixão que o leva a afogar-se. (Este é apenas um entre tantos exemplos de como os mitos podem iluminar fenômenos humanos). A alusão não podia ser mais clara nem mais atual: tão entretidas em contemplar a própria face, as pessoas perderam a capacidade de se relacionar com o mundo. Não se enxerga o outro porque, além de os olhares terem se desviado em direção ao espelho, perdeu-se a empatia. E o mais irônico disso, e também o mais grave, é que os olhos estão voltados apenas para a superfície, incapazes de olhar para dentro de si, ou melhor, para seu interior. Em parte, talvez isso aconteça porque o interior não contém coisa alguma. Ignoro se é possível a alguém aperceber-se do próprio vazio sem uma interferência externa. Em todo caso, é sempre bom lembrar que muitas coisas brotaram de uma consciência do vazio – desde que essa consciência seja sincera. Em sua obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O poder do mito, </i>Joseph Campbell fala do modo como o nosso relacionamento com o mundo exterior pode variar de acordo com as palavras que usamos: “Os índios se dirigiam a todo ser vivente como ‘vós’ – as árvores, as pedras, tudo. Você também pode se dirigir a qualquer coisa como ‘vós’, e se o fizer sentirá a mudança na própria psicologia. O ego que vê um ‘vós’ não é o mesmo que vê uma ‘coisa’. E quando se entra em guerra com outro povo, o objetivo da imprensa é transformar esse povo em ‘coisas’”. Creio que seja assim mesmo. A respeito disso, se passássemos a dedicar aos assuntos alheios um décimo do empenho e da atenção que costumamos dedicar aos nossos próprios interesses, não teríamos uma sociedade tão individualizada. Utopia? Talvez. Mas prefiro pensar que, ao menos em alguns lugares, longe ou perto, compreensão e lealdade ainda não sejam coisas de um passado mítico e que a ética ainda respira, não obstante seu estado de fragilidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://2.bp.blogspot.com/-ymDVQ0PUF8k/UFY2ppXqBnI/AAAAAAAAAQM/wJiTVKoJHrY/s1600/holland-house-library.jpg2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" hea="true" height="252" src="http://2.bp.blogspot.com/-ymDVQ0PUF8k/UFY2ppXqBnI/AAAAAAAAAQM/wJiTVKoJHrY/s320/holland-house-library.jpg2.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Depois de falar da lucidez de Ernesto Sabato, da terra vista pelos olhos dos índios, de Narciso e de uma nova maneira de ver a natureza e a sociedade, gostaria de evocar uma outra imagem como complemento à anterior. Uma imagem que não signifique resignação, mas aceitação do fato de que o mundo está passando por dificuldades e que precisamos colocar-nos em atividade para recuperar o que foi perdido. Existe uma fotografia que retrata a biblioteca da Holland House, em Kensington, atingida por um bombardeio em 22 de outubro de 1940. O que se vê, tendo como fundo uma realidade destroçada, são as estantes de livros em meio à destruição, examinados por três homens. Quem os descreve é Alberto Manguel, em sua obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Uma história da leitura:</i> “Eles não estão dando as costas para a guerra, nem ignorando a destruição. Não estão escolhendo os livros em vez da vida lá fora. Estão tentando persistir contra as adversidades óbvias; estão afirmando um direito comum de perguntar; estão tentando encontrar, uma vez mais - entre as ruínas, no reconhecimento surpreendente que a leitura às vezes concede – uma compreensão”. Não gosto da expressão “indigência cultural”, pois sempre me pareceu elitista e um tanto exagerada. Mas, ao ver tal imagem, em contraposição ao mundo de hoje, é impossível deixar de me perguntar se haveria, atualmente, numa atmosfera constituída por destroços, alguém que, depois de um bombardeio e em meio ao caos, se pusesse a ler os títulos nas lombadas. É difícil responder. Gosto de pensar nas futuras gerações com certa dose de esperança e na possibilidade de um tempo melhor após algumas décadas. Em todo caso, não creio poder viver para ver esse momento em que uma nova escala de valores será inaugurada. Mas talvez eu esteja enganado. Queria imensamente que assim fosse: um engano, nada mais que isso, e que sim, deve-se dar um voto de confiança à humanidade. Até prova em contrário.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">(Tendo em vista o assunto, não sei se respondi à altura à prova do espaço em branco. Isso é algo que apenas o leitor saberá dizer. Em todo caso, o som da chuva, lá fora, é sussurro que me diz, ao pé do ouvido, que, antes de pensar em responder, devo esperar a madrugada passar). <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Caravaggio: “Narciso”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Holland House Library, Kensington, outubro de 1940<o:p></o:p></span></div>
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Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-19402125188031573752012-08-31T15:05:00.001-07:002012-08-31T15:06:41.106-07:00Maneiras de escrever: lições de Rilke e Montaigne<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Entre tantas páginas que a literatura nos legou a respeito de como escrever, algumas das mais preciosas nos foram deixadas por Rainer Maria Rilke, não exatamente na sua obra literária, mas em suas cartas, que acabaram por constituir um gênero à parte entre tantos outros. O ano era 1903, e o destinatário era o jovem Franz Xaver Kappus. “Procure entrar em si mesmo”, escreve o poeta; “Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte ‘sou’, então construa sua vida de acordo com essa necessidade”. Mais de cem anos se passaram, e é possível que muitos outros séculos se passem; se essas palavras persistiram, é porque elas tiveram entre os seus leitores uma infinidade de jovens aspirantes a poeta, ou mesmo leitores comuns, para quem elas foram de uma utilidade que não foi possível encontrar em outras fontes. Se era de maneira consciente que Rilke escrevia suas cartas para a posteridade, é questão que já perdeu a importância. A verdade é que, de uma forma ou de outra, suas cartas entraram para esse reduzido número de epístolas cujo destinatário maior é a humanidade de todas as épocas, independente do fato de quererem ser escritores ou não. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Muito mais do que outras questões de maior alcance, tais como “como viver, ou ainda “o que podemos esperar da humanidade”, as interrogações sobre como e por que escrever receberam e continuam a receber por parte de escritores, independente de sua nacionalidade, um tratamento especial. É de se acreditar que muitos se detiveram nesta questão pelo fato de elas pertencerem ao reduzido campo em que as respostas ainda fazem sentido. Sobre tudo o mais, ou sobre os aspectos em que a vida se revela mais misteriosa e cheia de interrogações, a melhor alternativa é simplesmente calar-se. E quando há tentativas nesse sentido, dificilmente se trata de palavras possíveis de serem resumidas. Clarice Lispector, também por sua vez procurada por um jovem escritor que lhe havia enviado alguns contos, resumiu seu ensinamento através de um conselho que vale para todos nós, literatos ou não: antes de começar, antes mesmo da primeira palavra, é necessário perder o medo. Não tenho meios para saber que resultado essas palavras tiveram no destino do jovem a quem foram destinadas. Quanto a mim, porém, posso dizer que ao menos creio não ter mais medo nem de viver, nem de escrever. Como diz o título de uma famosa canção, “o medo de amar é o medo de ser livre”, e creio que esse temor sirva também para outras áreas. E quanto à liberdade, mantenho certa reserva, essa justificada por outra canção, segundo a qual “liberdade não é mais que outra palavra para nada a perder”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Escrita e liberdade foram palavras-chave para o criador do ensaio como gênero, Michel de Montaigne. Interrogação e dúvida talvez fossem dois elos a mais. Segundo Virginia Woolf, o filósofo francês é o exemplo único de escritor que soube, com as palavras, escrever a si mesmo como em um retrato. De acordo com a escritora, é apenas a ele que pertence a capacidade de proceder “este relato de si mesmo, seguindo suas fantasias, dando o mapa completo, o peso, a cor, e o diâmetro da alma em sua desordem, sua poliformia, sua imperfeição”. E, como assinala Virginia, os séculos passam e mais e mais leitores são levados a reconhecer-se nas páginas dos Ensaios, sempre intrigados com o fato de terem sido tão bem descritos tantos séculos antes de nascer. Mas, de forma mais detida, vejamos as palavras do próprio Montaigne, na sua carta ao leitor, a quem apresenta e dedica seu livro: “(...) possam nele encontrar alguns traços do meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. (...) Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu”. Recordo-me de minha reação quando li pela primeira vez alguns de seus ensaios, e, pelo que pude mais tarde comprovar, não foi uma impressão exclusivamente minha, essa de perguntar-me como podia esse homem do século XVI conhecer tão bem a alma dos leitores de todos os tempos. Encontrei uma explicação posterior, em algumas palavras de Ralph Waldo Emerson sobre a arte de escrever. Trata-se de uma escrita que não se produz meramente com tinta sobre papel, mas “escrever como se deposita o orvalho sobre a folha e as estalactites sobre as paredes da gruta, como a carne decorre do sangue e como a fibra lenhosa da árvore se forma a partir da seiva”. Creio que estas palavras colocam fim àquele clichê segundo o qual escrevemos por nos sabermos mortais; salvo os grandes predestinados, escrevemos todos para o olvido.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Sim: escrevemos para o esquecimento, e mesmo assim o fazemos, teimosamente, pois, sendo real a assertiva de Rilke sobre a impossibilidade de viver sem escrever, não temos alternativa. A esperança talvez esteja nas entrelinhas. É nesse ponto que a escrita nos desafia, nos amedronta, nos coloca diante de nós mesmos, tal como acontecia de modo natural com Montaigne. É essencial perder o medo, como aconselhou Clarice; se assim não fosse, as entrelinhas acabariam por dizer, malgrado nós mesmos, tudo o que gostaríamos de calar. É válido recordar aqui o subtítulo de uma obra de Alberto Manguel, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A cidade das palavras: “</i>As histórias que contamos para saber quem somos”; um dos tantos modos de ver a literatura é como um inestimável espelho do que somos e também um guia para saber onde estamos e para onde nos dirigimos. Ao menos é com essa curiosidade que sou levado a escrever, independente do fato de ser lido ou não. Ao menos para mim, sem palavras, não haveria cidade, nem casa, tampouco natureza, mas um grande caos. Nossa ordem está mesmo nos livros, nas linhas que se amontoam, independente do crepitar de fogos sagrados e da música do cosmos. Pelo que me é dado observar, este conteúdo está presente também sobretudo no que calamos; sobre essas linhas subliminares, que também encontramos apenas em grandes obras, é interessante o que diz A.D. Sertillanges: “A palavra pesa quando se sente por baixo dela o silêncio, quando ela oculta e deixa adivinhar, por detrás das palavras, um tesouro que ela libera progressivamente como convém, sem precipitação e sem agitação gratuita. O silêncio é o conteúdo secreto das palavras que contam. O que faz o valor de uma alma é a riqueza do que ela não diz”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Se a mim por minha vez alguém indagasse sobre as razões e desrazões de escrever, não sei o que responderia. Em todo caso, não teria por que não dizer meu próprio pensamento e postura ante meus escritos, postura que me foi legada por Clarice. Interrogada sobre em que sentido ou grau suas obras poderiam alterar a realidade imediata, ela respondeu não ter ilusão alguma: “Não altera em nada”. E, mesmo assim, seríamos imensamente menos ricos se não tivéssemos, entre tantas outras obras, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A hora da estrela.</i> Isso, contudo, quanto a Clarice. No meu caso, basta a primeira parte da resposta: não guardo ilusões. Contudo, longe estou de querer desistir; quanto a isso, a lição de Rilke vale por toda a vida, independente do que se faça. E há ainda uma coisa de que não podemos nos esquecer: que, destituída por completo de sua porção de mistério, escrita alguma tem valor.<o:p></o:p></span></div>
Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-80947673278594772552012-08-10T21:13:00.001-07:002012-08-10T21:15:02.120-07:00Baudelaire e a infância; sobre a vida própria de certas frases<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-olaDlDrmlUc/UCXarxVAmgI/AAAAAAAAAPo/CdVjM6fNTRE/s1600/Monet.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" kda="true" src="http://1.bp.blogspot.com/-olaDlDrmlUc/UCXarxVAmgI/AAAAAAAAAPo/CdVjM6fNTRE/s320/Monet.jpg" width="236" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
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<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">“A infância é nossa pátria”, dizia Baudelaire. Durante muitos anos conhecia a frase, mas ignorava seu autor, e também não sabia dizer quando a teria ouvido pela primeira vez. De certo modo, acabei associando-a indevidamente com o anonimato. Com o tempo, também de forma equivocada, por desconhecer a origem, além do fato de dizer respeito a um tema universal, passei a considerá-la como um desses provérbios que, não sendo de ninguém especificamente, acabam pertencendo a todo mundo. Enganei-me. Resta saber se a frase diz respeito apenas ao autor ou se é válida para todos. Mas antes disso, uma consideração: já tinha reparado que algumas das frases que memorizamos parecem criar vida própria em nossas mentes. Sei que se trata de falta de uma memória mais exata, mas é como se essas sentenças resolvessem modificar-se por conta própria, alterando-se, adaptando-se a nossas ideias – mesmo quando as contrariam -, misturando-se a outras, criando nuances, até o momento em que resolvemos buscar sua origem e acabar não com as incorreções – seria errôneo considerar desse modo nossas próprias reflexões sobre os temas -, mas com os desvios. E é então que descobrimos que elas guardaram pouca relação com o que eram de início, e, em alguns casos mais raros, tornaram-se seu oposto. Mas voltando à frase de Baudelaire: se a infância é realmente nossa pátria (e creio que o autor de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">As flores do mal</i> sabia o que dizia), não é difícil imaginar-nos como uma legião de expatriados sonhando com o momento de voltar a uma terra da qual, embora sempre tenha sido nossa, fomos desapossados. A ideia, se de início nos soa estranha, depois parece muito natural e até um pouco óbvia. E, pensando assim, não é preciso muito esforço para ver em cada rosto maduro a fisionomia de um exilado e para interpretar quase todos os livros que lemos como canções de um desterro não apenas forçado, mas mal e mal suportado. Poucos são os exílios voluntários, em que a própria pessoa, depois de ponderar, admite que o melhor seria partir - e mesmo nesses casos, o expatriado passou a viver tristemente com dois corações. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Também não deixa de ser verdade, sob esse ponto de vista, que a partir do momento em que nascemos não cessamos mais de partir. E viajar, nesse caso, seria exilar-se duas vezes. Eis talvez um novo modo de nos definir: somos seres que partem o tempo todo, e que, exageros à parte, já nascem indo-se embora. De pouco adianta que, em pensamento, em projetos ou em sonhos não cessemos de planejar um retorno impossível e de sonhar com a pátria a cada minuto mais distante. É como se a expulsão do paraíso deixasse de ser exceção para tornar-se regra: da perfeição do mundo em que nascemos nos percebemos arrebatados quando menos esperamos, e de pouco valeria interrogar se estamos preparados para isso: no mais das vezes, a vida não nos faz perguntas – ao menos não a esse respeito - e também não nos pede licença. Pergunto-me se existe algo de espontâneo em buscar recriar a pátria no mundo que aos poucos passamos a habitar e a chamar de nosso, tarefa a que nos dedicamos incessantemente em cada dia de nossas vidas; não raras vezes, a tendência é fazer da nossa casa uma versão à nossa maneira das salas de nossos pais ou avós, ancestralidade sempre presente mesmo quando se trata de transgredir e de romper barreiras. E as semelhanças vão um pouco além disso: já se disse anteriormente que ser velho é voltar a ser criança. Poderia-se perguntar se seria isso o paraíso reconquistado; o mais provável é que esse repovoamento não passe de uma tosca compilação de arquétipos imperfeitos, repleto de incapacidades e ao mesmo tempo prenhe de outras mais e que, à medida que o tempo passa, não deixam de se agravar, até o momento em que realmente não faz mais diferença alguma. O que nos salva então é o embarque clandestino na infância de outros seres. Além disso, o que nos resta, então, se do lugar de nossa infância estamos para sempre privados e se toda referência a esse tempo, como é talvez erroneamente considerado, não deixamos jamais de perder? A resposta talvez não seja tão difícil; de todas as lições da infância, talvez a maior seja justamente a que esquecemos com maior presteza: as técnicas do sonho. Talvez seja apenas através dele que podemos vislumbrar, mesmo que com uma verossimilhança mínima, o que está para sempre perdido e o que mesmo na nossa memória cada dia parece servir apenas para ofuscar, tornar obscuro. Dito isso, seria melhor recolhermo-nos na esperança de sonhar, desses sonhos que, raros, situam-nos no nosso verdadeiro lugar. Pouco importa se deles despertamos um tanto desorientados: é próprio da perfeição o deixar-nos por vezes transtornados. E, depois disso, com esse pouco de paz que colhemos quase ao acaso, devidamente armados para um ou dois minutos, o mais acertado talvez seja mesmo tornar a dormir.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span lang="EN-US" style="font-family: 'Times New Roman','serif'; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: EN-US;">Claude Monet: “Un coin d’appartement”, 1875<o:p></o:p></span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-76455512914070279012012-07-29T19:22:00.000-07:002012-07-29T19:22:15.234-07:00Quando as palavras nos abandonam<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Embora na verdade tivesse uma certa aparência de ritual, não havia muito mistério nisso de escrever. Basicamente, eram apenas um ou dois pré-requisitos a serem respeitados, alguma inspiração e o trabalho de colocar-se à escuta, e o texto nascia fluente, como se eu apenas transcrevesse algo que já existia inteiro em sua forma final, mas em outra esfera. Tudo na verdade muito simples, pouca coisa para explicar e nada para entender. O leitor atento terá percebido que usei o verbo no passado: “havia”. Pois, de alguns meses para cá, escrever se tornou tudo, menos um processo simples, e não é verdade que não tenha me esforçado. Muito pelo contrário. Gastei semanas em tentativas inúteis de produzir algo que lembrasse a dignidade de textos anteriores, mas era como se nada do que brotasse de minhas mãos tivesse o direito de sobreviver para contar sua breve história de inexistência. E verifiquei por experiência própria o fato de que nos acostumamos a tudo, ou a quase tudo: eu já havia me habituado a esse processo contínuo de escrever para descartar, muitas vezes sem mesmo perder tempo em releituras vãs, que, por si, não trazem sopro algum ao que já nasce sem vida. Tudo em vão.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">E, embora não pudesse ser assim considerado, como já disse, busquei as aparências de ritual para procurar vencer esse silêncio que, em lugar das antigas palavras querendo vir ao mundo, passou a me habitar de uma hora para outra, quando eu menos esperava, e que me fez mudo ante um mundo que, de um momento a outro, se tornara paradoxalmente de uma eloquência nunca antes experimentada, ao menos para mim. Conforme escreveu Susan Sontag em um ensaio, em literatura o tempo existe para que não aconteça tudo de uma vez, enquanto que o espaço serve para que não aconteça tudo com a mesma pessoa. O fato é que, por algum tempo, senti como se eu fosse a exceção viva dessa regra, sem tempo e sem fôlego para assimilações. Se eu mesmo disse há tempos atrás que as palavras nascem do silêncio, a minha dedicação em observar essa ausência de ruído conseguia produzir apenas ecos vazios e cópias idênticas em significado a essa mudez de que de me vi tomado. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>E a escrivaninha, preparada como um altar para ofícios sagrados, continha livros, canetas-tinteiro, papel branco e o violino em estanho inclinado em seu suporte. Tudo ao som de “Clair de lune”. E tudo em vão, outra vez. Da experiência, só restou a comparação com outros altares, outras mesas, como aquelas que, relembrando tempos imemoriais, reúnem até hoje congregações em torno da repartição dos pães, do vinho. Seria essa comparação uma inveja guardada ou expressão de desejo por reunir-me a esses irmãos? Pode ser. Creio que talvez, a essas alturas e nas atuais circunstâncias, seria bom e consolador, já que as palavras me deixaram só, pertencer a alguma coisa que seja. Mas para isso é necessário antes de tudo fé, e pré-requisitos não podem ser fabricados de uma hora para outra, para nosso uso. Como seria fácil se assim fosse. E, por uma questão de princípios, mentir é coisa que não faz parte de meus hábitos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Tendo me tornado uma criatura do silêncio, ou de sujeito momentaneamente privado de palavras, procurei ampliar meu conhecimento musical. Nenhum esforço é vão, e posso dizer mesmo que ganhei muito com isso. Novos intérpretes, novos instrumentos, novos gêneros... é incrível a habilidade que alguns musicólogos possuem – ou acreditam ter – para reunir todo um período – no caso, a Inglaterra elisabetana, em apenas dois ou três discos. Impossível deixar de questionar que critérios foram levados em consideração para tais compilações. Quantos instrumentistas e compositores terão dedicado suas vidas inteiras a compor e, no momento da seleção, por uma simples questão de opinião, foram deixados de fora? Outra coisa: nesse período em que permaneci ágrafo, ao contrário do que talvez se imagine, li muito. Na verdade, não tendo a me sussurrar no ouvido vozes dizendo sobre o que escrever, li como nunca antes na vida. Diga-se também de passagem que o meu trabalho também não ficou prejudicado com esse meu não tão repentino silenciar. Para usar de sinceridade, talvez a ausência de palavras já se anunciasse no instante exato em que, ainda menino, brotaram as primeiras palavras, décadas atrás, das quais tenho pouca recordação, e creio não ser errado supor que o fim de qualquer coisa que seja está já em seu início, em gestação. Algumas questões se tornam inevitáveis, não apenas a quem escreve, mas a todos nós: há quanto tempo se faz da escrita razão de viver? Quantos morreram no cumprimento desse ofício? Em que a humanidade melhorou com toda a dedicação dos homens que se sacrificaram para lhes legar um universo de palavras? O que as pessoas leem, hoje em dia? Com o que estarei contribuindo, se deixar de ler ou estudar partituras para dizer – suprema presunção – algo novo? No momento em que nos propusemos tais questões, mesmo que permaneçamos longe das respostas exatas, é natural que alguma verdade se atinja, mesmo contra nós mesmos – a realidade às vezes dói. (E se não perguntamos, o que, mais precisamente, estamos fazendo nesse mundo?). Mesmo que as grandes verdades já tenham sido todas ditas, e de maneiras muito mais inspiradas que esse meu escrevinhar sem o mínimo apuro. E que, malgrado deixarmos de fazer coisas mais produtivas, o fato é que a resposta é não, as pessoas não irão ler o que escrevemos especialmente para elas. E, mesmo que lesse, a humanidade, por uma questão de ignorância, permanece unida apenas no que ela tem de pior: a própria ignorância e a aversão a verdades duras. Pergunto-me se acaso não estarei sendo crítico demais para com meus semelhantes. Em caso afirmativo, aceito de bom grado a pena com que queiram me punir, feliz por estar equivocado. Mas não vejo necessidade de punição: pois o que seria pior que escrever para ninguém? </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Isso posto, talvez agora eu possa voltar a selar a paz com as palavras e quebrar esse silêncio de tantos meses. Na verdade, para ser mais exato, não era silêncio o que havia em meu cérebro, mas algo ritmado, como um repicar de sinos. E, pensando nos músicos elisabetanos esquecidos, lembro de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis por que nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">(Da escrita deste texto, fica uma lição, se houver um próximo nessa coisa incerta de escrever: lembrar de ao menos tentar abrir mão das citações e frases de efeito. Que Donne me perdoe por hoje, pois não era uma questão de efeito, mas sim de conteúdo. Por hoje, era só, e muito obrigado). </span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-61729126575394674992012-07-20T21:07:00.000-07:002012-07-20T21:07:36.993-07:00Algumas palavras sobre o legado de nossos antepassados<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">“Muitas pessoas olham para o mundo e se perguntam: por quê? Eu penso em coisas que nunca existiram e me pergunto: por que não?”</span></i></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 10pt; line-height: 115%;">George Bernard Shaw</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://3.bp.blogspot.com/-S-t4ktgSFno/UAoqDCtA76I/AAAAAAAAAPU/m1pmFZo61xk/s1600/01_WEINGARTNER_Pedro_1853-1929_TEMPORA_MUTANTUR_in_TOBINO_-2007-_p_012b.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" hda="true" height="229" src="http://3.bp.blogspot.com/-S-t4ktgSFno/UAoqDCtA76I/AAAAAAAAAPU/m1pmFZo61xk/s320/01_WEINGARTNER_Pedro_1853-1929_TEMPORA_MUTANTUR_in_TOBINO_-2007-_p_012b.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">A expressão pode até parecer estranha ou pouco adequada ao contexto, mas talvez a melhor maneira de definir o continente europeu à época do início da imigração alemã seja sob a forma de um grande museu de paradoxos. Entre os diversos aspectos a serem considerados, estava o fato de muitos países se encontrarem numa situação de total devastação após as derrotas napoleônicas. A esse respeito, o filósofo Will Durant se interroga por que a primeira metade do século 19 “levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas” na literatura. Na música, esse aspecto pouco afeito à vida e à sua continuidade encontrou vozes altamente expressivas em compositores como Schubert, Schumann, Chopin e o próprio Beethoven em seu período tardio, pós-<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Nona Sinfonia</i>: a famosa <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ode à Alegria,</i> que encerra essa grande obra estreada em 1824, não poderia ter vindo à luz numa atmosfera menos condizente. Na filosofia, o espírito não era outro: Arthur Schopenhauer publicava, em 1818, sua “grande antologia do infortúnio”, intitulada <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O mundo como vontade e representação, </i>que, poucas décadas após seus surgimento, se converteria em uma das mais importantes vigas de sustentação do pensamento ocidental<i style="mso-bidi-font-style: normal;">.</i> Segundo Durant, “por toda a parte, no Continente, a vida tinha que recomeçar do zero, para recuperar dolorosa e lentamente o civilizador excedente econômico que havia sido consumido na guerra”. Também entrou para a história uma frase de Goethe que ilustra e define o estado de ruína desse período: “Agradeço a Deus por não ser jovem em um mundo tão inteiramente liquidado”. <i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></i></span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 10pt; line-height: 115%;"></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Se por um lado a situação era consequência da guerra, por outro a miséria era trazida por outra revolução, essa de caráter industrial. De início verificados na Inglaterra, aos poucos os frutos inesperados do progresso e dos avanços tecnológicos se estendiam para o resto da Europa, substituindo a mão de obra humana por máquinas, levando dessa forma milhares de trabalhadores, como luveiros, ferreiros, carpinteiros e tecelões ao desemprego e, em consequência, à miséria. A esses fatores, pode-se acrescentar, a respeito do empobrecimento no campo, as sucessivas divisões hereditárias. Outro motivo causador de descontentamento era o serviço militar obrigatório, que, em tempos de guerra, estendia-se até que a paz fosse restaurada. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Havia também os interesses do Império brasileiro na vinda de imigrantes; não se pode esquecer que a esposa de Dom Pedro I, Leopoldina, era filha do Francisco I, da Áustria. Consciente da situação do país de origem da imperatriz e atendendo de início ao interesse de formar um exército, para depois voltar sua atenção aos camponeses, o governo imperial tratou de criar as condições necessárias para a vinda dos primeiros imigrantes. A primeira leva, como se sabe, aportou nas margens do Rio dos Sinos em 25 de julho de 1824. Inicialmente, eram concedidos a cada um 77 ha de terra, além de ferramentas, gado, sementes, entre outros auxílios. Contudo, sabe-se que tais promessas não foram cumpridas na totalidade dos casos. Bastante difundida é a seguinte frase, repetida a muitos dos alemães que aqui chegavam: “Aqui está a terra. De agora em diante, vire-se”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Conhecidos por um grande sentimento de apego às raízes e à cultura de seu idioma, o chamado germanismo, a imigração em princípio pode ter parecido uma ideia absurda a muitos alemães da época. Contudo, diante de um quadro amplamente desfavorável, parece natural que recomeçar a vida em outro país, na chamada “Terra da liberdade”, tenha sido visto como o único ponto luminoso no horizonte. A frase do dramaturgo Bernard Shaw, na epígrafe, dependendo do contexto em que for observada, sugere que muitas vezes os grandes momentos da história nascem exatamente de seu aspecto de total absurdo, em meio a momentos da mais absoluta calamidade, para a qual não existe solução senão no impensável. Do contrário, como entender que tantos homens e mulheres de todas as idades tenham concordado em despedir-se para sempre de sua terra de origem, de seu passado, de seus familiares, para embarcar em uma aventura que não era o fim das dificuldades, mas o começo de uma outra grande saga?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Hoje, passados quase dois séculos, não falta quem afirme que tal visão heroica do ato desses desbravadores não é fiel, e sim exagerada, romântica, pois de fato não havia alternativa para o caso de desejar-se prosseguir e continuar a tarefa designada a todos, que é viver. Todavia, um fato é consensual entre os descendentes de imigrantes: todos que buscam no passado as origens da família e sua história encontrarão basicamente fome e miséria. Pouco numerosas são, entre os imigrantes, as partículas sinônimas de nobreza, tal como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">von </i>ou, de uso ainda mais raro, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">van; </i>caso houvesse, seu uso se perdeu, entre muitos outros costumes. Mas a verdade inegável é que quem buscar se inteirar do seu passado e de suas raízes encontrará, salvo raras exceções, uma outra espécie de nobreza, aquela que não vem de berço, mas que costuma nascer aos poucos e em silêncio, não apenas em momentos extremos, mas também na simples vivência do cotidiano; uma forma de nobreza que permanece quase sempre inadvertida para quem realmente a possui e que guarda grande parentesco com a simplicidade. Ela surge através da maneira como se encara a vida, na postura ante seus constantes desafios, fazendo e escrevendo, no exercício de responder diariamente aos ditames do destino, através do trabalho, da abnegação e da ousadia, a sua e a nossa história.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-tcMmgzb1q1o/UAoqS1uv8eI/AAAAAAAAAPc/iHfd4eQ4HMM/s1600/johann-wolfgang-von-goethe-1775Angelica+Kauffmann.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" hda="true" height="320" src="http://1.bp.blogspot.com/-tcMmgzb1q1o/UAoqS1uv8eI/AAAAAAAAAPc/iHfd4eQ4HMM/s320/johann-wolfgang-von-goethe-1775Angelica+Kauffmann.jpg" width="241" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Tal modo de ver pode levar-nos a questionar o valor e a real efetividade de nossas atitudes em relação ao passado, mais exatamente no que fazemos para preservá-lo e honrá-lo. Trata-se de uma questão que leva a pensar mais uma vez em Goethe. De acordo com uma frase sua, “O legado de teus antepassados só se torna teu através dos teus próprios méritos”. Eis algo em que pensar, não apenas nesta data de 25 de julho, mas em todos os outros dias.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Pedro Weingärtner: Tempora Mutantur, 1898</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Angelica Kauffman: retrato de Johann Wolfgang von Goethe, 1775</span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-84815246436598053992012-06-30T12:48:00.000-07:002012-06-30T12:48:41.466-07:00Outra vez a humildade, as noites estreladas e Van Gogh<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://4.bp.blogspot.com/-46iXPgSHSJk/T-9XSkGF0ZI/AAAAAAAAAOg/9U9icTrOXhI/s1600/Starry-Night-over-Rhone-van-gogh.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://4.bp.blogspot.com/-46iXPgSHSJk/T-9XSkGF0ZI/AAAAAAAAAOg/9U9icTrOXhI/s1600/Starry-Night-over-Rhone-van-gogh.jpg" vca="true" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Uma das questões que me proponho com maior frequência é sobre a possibilidade – ou não – de escrever sem levar em consideração o momento exato em que alinhamos as palavras e as dispomos de maneira a que sirvam ao nosso propósito de dizer algo que tenhamos em mente e que, segundo nosso modo de pensar, acreditamos ter alguma utilidade ao público-alvo. Porque, ao menos no meu modo de vivenciar a escrita, qualquer coisa que resulta em um texto, na maior parte das vezes, nasce dos acontecimentos mais fortuitos, aqueles que, prosaicos, constituem os momentos mais triviais da minha rotina de cada dia. Escrever não é mais que uma maneira de assimilar melhor fatos que, não fosse o modo como os organizo em parágrafos, permaneceriam na categoria de “achados e perdidos”, aguardando uma assimilação lenta, que se dá por etapas, muitas vezes trabalhosas, até que acabem fazendo parte de um modo de ser e de pensar. É inevitável que, nesse processo, os assuntos se tornem recorrentes e reapareçam de tempos em tempos, e não creio na possibilidade de ser de outro modo; pois o que nos choca, o que nos chama atenção, ou o que nos parece belo, são coisas que pertencem a categorias já estabelecidas, que são acrescidas, com o passar do tempo, de novos elementos, de novos modos de ver, numa lenta elaboração daquilo a que normalmente se chama identidade. Sei que não é tão simples, mas é o que posso dizer por enquanto.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não faz muito tempo que postei neste espaço um texto em que lembrava um antigo hábito de meus ancestrais, hábito que me esforço por manter e, ao menos dentro de minhas pequenas possibilidades, legar aos que deverão ficar: o ato de contemplar as estrelas. Não ignoro que eram outros tempos e que, de lá para cá, a moderna tecnologia colocou à disposição dos meus contemporâneos um número bastante elevado de novas maneiras de passar seu tempo à noite, e, dessa forma, os céus foram pouco a pouco perdendo o seu público para o capítulo da novela ou para o facebook. As novas gerações, privadas de tal espetáculo noturno, acabaram também perdendo um ganho secundário que seus antigos apreciadores levavam de brinde: o senso exato de sua dimensão e, consequentemente, da noção de humildade. Não quero dizer que, para ser humilde, é preciso postar-se com certa frequência à noite sob abóbadas estreladas e esperar que, sob sua luz, ela exerça magicamente seu efeito de choque de realidade. Basta apenas não perder a noção de si mesmo, levando em consideração mesmo os aspectos mais básicos, como a consciência da finitude e a noção de, seja qual for o número de pessoas que se tenha como contatos na já mencionada rede social, o que conta mesmo é o número, geralmente muito restrito, de pessoas que realmente logramos atingir, e mesmo assim, de uma maneira bastante limitada, como uma ou outra ideia, uma palavra no vocabulário, etc. Isso sem perder de vista que, seja qual for a nossa contribuição na paisagem em nosso redor, ela não sobreviverá a uma ou duas gerações, até a sua total extinção. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Por pensar desse modo, acontece de eu às vezes sou considerado amargo, talvez também em razão da forma como expresso minhas crenças, sempre recorrendo a palavras tais como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">finitude, limites, </i>etc. Em minha defesa, repito o que anteriormente já escrevi: é exatamente no fato de sermos transitórios que reside nossa grandeza. Tenho plena consciência do lugar-comum que as linhas acima representam. Escolho, porém, correr o risco de ser pouco original, passando de um momento a outro, e sem pudor, a ser isso mesmo: antigo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não existe exceção que confirme a seguinte regra: sempre escrevo sob o efeito de um entre dois sentimentos distintos: o encantamento e a perplexidade. Embora possam muitas vezes ser confundidos, existe um contraste polar entre esses dois hemisférios. São, todavia, duas faces de uma mesma moeda. O que me mobiliza hoje e que me leva a pensar nos meus bisavós, suas enxadas e suas estrelas, é a percepção da incapacidade, ou da falta de vocação, não sei, de certas gerações para as noções mais rudimentares de humildade. A respeito dessa virtude, dizem-se muitas coisas, entre as quais, o fato de ser ela mãe de todos os demais dons; pelo pouco que me é dado conhecer, sou ignorante a respeito da veracidade dessa afirmação. Mas acredito que nela haja muita lógica: tenho grande dificuldade de entender como se poderia desenvolver dons, qualidades, enfim, virtudes, se as pessoas em questão revelam imensa dificuldade em ter um mínimo que seja de humildade. Não que eu reprove, em algumas pessoas, a alta conta em que se têm a si mesmos; difícil, isso sim, é concordar com um fato tido por elas como indubitável, indiscutível: o fato de sempre julgarem estar certos sobre tudo e a crença de que jamais cometem erros. A situação, que parece corriqueira, se agrava no momento em que esses próprios seres, do alto de seu pedestal, começam a olhar para baixo e buscam nos levar a imitar o seu exemplo e segui-los naquilo que creem possuir de mais genuíno: a própria humildade. E me questiono se está errado concluir que a arrogância, isto é, o extremo oposto da virtude em questão, conduz fatalmente à cegueira, impedindo não só que se enxergue as reais dimensões de si mesmo, como também levando a um vicioso círculo, que culmina, de maneira invariável, no desenvolvimento dos piores e mais lamentáveis defeitos. Talvez a origem disso tudo esteja na supressão do silêncio, sobre o qual já me detive anteriormente, e na privação de algo fundamental para o desenvolvimento da personalidade: o saber olhar-se a si mesmo em profundidade. Penso que a explicação para tal fenômeno esteja nas palavras de Lars Svendsen, em sua obra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A filosofia do tédio</i>: “Em vez da solidão, abraçamos o egocentrismo, e nele somos dependentes dos olhares de outros: tentamos preencher todo o seu campo de visão, procurando nos afirmar. O egocêntrico nunca tem tempo para si, somente para o reflexo de si que encontra nos outros. Ele nunca encontra paz em relação a seu pequeno e encolhido eu, no entanto é forçado a inflar um eu exterior de enormes proporções – mas trata-se de um eu gigantesco, e quem o inventou tem cada vez mais dificuldade de preenchê-lo”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Isso posto, lembro uma vez mais de meus bisavós e suas noites luminosas, imortalizadas sobretudo por Van Gogh. E me vejo diante de dúvidas, tais como saber onde foram parar, por exemplo, o amor ao silêncio que nasce juntamente com o amor à música, bem como o amor à riqueza das palavras. Mas meus ancestrais, bem como seus hábitos, estão mortos e enterrados há anos, e o horizonte que vislumbro à minha frente não é dos mais animadores. Todavia, quando o nosso próprio tempo não nos traz alento, sempre é possível recordar o passado. Muitas vezes esse é o único consolo que nos resta. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">(Peço a meus leitores que perdoem as repetições. E, uma vez mais, este texto não teria sido possível sem a referência ao filósofo norueguês. O caminho para me considerar escritor, junto com a capacidade de concisão, está muito além da linha do horizonte. Mas não penso em desistir, humildemente ou não. Aliás, não creio ser possuidor dessa virtude: é realmente humilde apenas aquele que se desconhece como tal).</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span lang="EN-US" style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: EN-US;">Vincent Van Gogh: “Starry Night over Rhone”</span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-61660476946988631952012-06-12T20:31:00.001-07:002012-06-12T20:37:38.591-07:00De esperas e de significados<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Nas últimas semanas, escrever tem sido tarefa inglória. Por mais que, com a alma embebida em livros, música e imagens, me coloque diante da escrivaninha na tentativa de dizer qualquer coisa brotada dessas leituras, audições ou contemplações, o fruto de meu esforço se revela sempre por meio de palavras que, numa ânsia exagerada de comunicar algo, tiveram uma morte tímida e prematura, antes que pudessem dizer qualquer coisa no pouco tempo em que estiveram no mundo, ou na tela. E do desaparecimento imprevisto e indesejado dessas frases natimortas, carrego a culpa e a responsabilidade, não de lhes vingar em mim o fim triste, mas de procurar dizer, em outros dias e em melhores condições, que sim, elas existiram, e que, por falha minha, não cumpriram a função para a qual foram criadas. Guardo saudades sobretudo do espaço em branco, das muitas noites em que, sentado neste mesmo lugar, as frases se formavam praticamente sem a minha intervenção, procurando juntar-se as palavras umas às outras, como se já existissem em sua forma final em outro plano, bastando eu postar-me, como agora, à espreita para que elas venham, como nas antigas noites, completar um círculo no qual meu papel parecia ser o de mero coadjuvante. Pois é assim que me vejo nesse exercício de escrever: como alguém que sabe que seu lugar é a parte de baixo de uma hierarquia formada, em ordem decrescente, pelos vocábulos, pelas frases, em seguida pelos parágrafos e, num nível mais abaixo, eu, o escrivão. Sei que parece um tanto místico, mas, a partir de minhas pequenas experiências com a escrita, posso dizer com sinceridade: é assim que funciona. São sempre inúteis quaisquer tentativas de subverter a ordem. Como disse certa vez a um amigo, não somos nós que determinamos a hora de escrever; esse ofício exige que nos vejamos com humildade e que reconheçamos que é a escrita e as palavras que escolhem o momento em que desejam descer de suas alturas. Faz muito tempo que disse isso, mas pouca coisa mudou em relação ao conteúdo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Pensei por um momento que a diferença entre a noite de hoje e as anteriores estaria no fato de saber previamente o assunto a ser abordado, mas não é verdade. Esse constitui mais um entre os tantos aspectos que não decidimos. Pois na maioria das vezes o tema era algo que eu apenas percebia por volta da terceira ou quarta linha, e depois bastava seguir o fio do raciocínio. Embora isso não seja uma regra, percebo agora que o assunto de hoje é esse mesmo: a ausência de tema, o vazio de significado. Possivelmente nas vezes anteriores também tenha sido essa a direção correta, mas que acabei ignorando. Humano que sou, esqueço às vezes o quanto é absurda essa nossa necessidade de que tudo, inclusive as palavras, faça sentido. Algumas vezes é possível corrigir os erros cometidos; porém, e infelizmente, na maior parte dos casos, é tarde, e lamentar pelos erros também é vão. E, à espera de um tema melhor que a ausência de significado, lembro-me de Vladimir e Estragon na peça de Samuel Beckett, esperando (inutilmente?) por Godot, e percebo através dos diálogos desses dois personagens o quanto é absurda a espera do que quer que seja. Absurda, sim. Não condeno os que pensam sempre que o melhor da vida ainda está por vir, ou os que buscam incessantemente pelo amor ideal; há ainda os que esperam pelo retorno do messias, vendo nos desastres naturais, provocados pela nossa própria espécie em séculos de abusos contra a natureza, sinais inequívocos de que ele está por chegar. Outros, menos precisos, esperam pela felicidade, sem saber dizer, quando interrogados a respeito, no que ela consistiria. Em todo caso, seja o que for, acreditam que a coisa esperada está sempre no futuro. Há dias atrás, numa livraria, vi uma frase num cartão, sem indicação de autor; transcrevo-a aqui: “Não existe caminho para a felicidade. A felicidade é um caminho”. Eis algo em que acredito, e se me fosse dado dizer algo aos que esperam, seja pelo que for, diria simplesmente isso, cuidando de acrescentar, de minha parte, que não esperem viver uma felicidade apenas no futuro, mas que buscassem vivê-la aqui mesmo, nesta vida. Porém, não são poucos os que creem numa espécie de obrigação de sentir-se aflitos, para serem consolados, e assim por diante. </span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://4.bp.blogspot.com/-WFI8-6wtSCE/T9gIMo3mzmI/AAAAAAAAAOQ/LsllzHj9Z_E/s1600/Beckett.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" pca="true" src="http://4.bp.blogspot.com/-WFI8-6wtSCE/T9gIMo3mzmI/AAAAAAAAAOQ/LsllzHj9Z_E/s400/Beckett.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Apesar de absurda, não creio ser inútil a espera de Vladimir e Estragon. Afinal, é preciso viver. Por sua intensidade e por sua beleza, compartilho aqui um trecho da obra: “Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada? Que esperei Godot com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite? Que Pozzo passou por aqui, com seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisto tudo? Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Pausa</i>) Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo, na terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto de nossos gritos. (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Escuta</i>) Mas o hábito é uma grande surdina. (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Olha para Estragon</i>) Para mim também, alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Pausa</i>) Não posso continuar”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">(Uma das muitas razões de eu não me considerar escritor é a dificuldade, ou a quase impossibilidade, de escrever sem recorrer a citações. Não guardo ilusões quanto a conseguir ser coerente; sei de minha incapacidade nesse sentido. Busco apenas ser sincero. Mas sei que isso não basta).</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Sei o quanto há de presunçoso em abordar temas como vida e morte, acaso e destino, existência ou não de sentido, e se falo deles é na condição de simples mortal, a quem tais assuntos inquietam, e é tudo que posso dizer. Creio que haja uma maior possibilidade de erros quando o assunto diz respeito a todos. E, a respeito da ausência de significado ou de sentido em calar, falar ou mesmo escrever, talvez um trecho de Lars Svendsen (de quem voltarei a falar em breve neste espaço) seja pertinente: “O significado que buscamos na ausência de significado, a experiência na ausência de experiência e o tempo na ausência de tempo – serão eles meramente ilusões? Uma sensação de perda não garante que qualquer coisa tenha sido realmente perdida, e, portanto, não garante também que haja algo – um tempo, um significado ou uma experiência – que tenha de ser recuperado”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">(Enquanto escrevia este texto – que não sei como classificar – esperava por um e-mail. Mesmo sendo pequena a esperança de recebê-lo, a espera inútil me decepcionou um pouco. Mas ficaria imensamente grato ao meu pequeno círculo de leitores pela licença de dizer apenas mais duas breves frases. São bastante simples, e se resumem a isso: não esperem. Vivam).</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Fotografia: Samuel Beckett</span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-2690546433775360572012-05-31T21:30:00.001-07:002012-05-31T21:31:38.855-07:00Algumas palavras sobre a ausência e o silêncio<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-9b-Pr83QlMk/T8hDwZLP4PI/AAAAAAAAAN8/h_4F9dA3j90/s1600/Viajante_sobre_Mar_de_Nevoeiro_-_Caspar_David_Friedrich.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" rba="true" src="http://1.bp.blogspot.com/-9b-Pr83QlMk/T8hDwZLP4PI/AAAAAAAAAN8/h_4F9dA3j90/s320/Viajante_sobre_Mar_de_Nevoeiro_-_Caspar_David_Friedrich.jpg" width="240" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Creio não terem passado despercebidos aos leitores deste blog o tom reticente dos últimos textos e, por fim, o abandono em que agora se encontra este espaço. Justamente por serem poucos, esses leitores não são menos que especiais, preciosos, e me pareceu incorreto deixá-los sem uma palavra de esclarecimento sobre tal silêncio. A eles, espero que as palavras a seguir sirvam ao mesmo tempo para explicar e para agradecer pela atenção.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">No último mês, estive em viagem a terras estrangeiras, onde tive a rara oportunidade de visitar lugares históricos e museus, jardins e palácios. Nesse período, aquela característica que Balzac usava para definir a idade de um homem, o entusiasmo, algo que creio sempre ter tido de sobra, foi em mim reavivada, e eu, de volta à minha terra, busquei condições para satisfazer a necessidade quase física de conhecimento. Falo aqui de entusiasmo no sentido grego da palavra: “estar possuído por um deus”, e isso se refere ao interesse vital que nos mantém vinculados à realidade mais imediata, bem como à curiosidade, ou necessidade premente, como disse acima, de buscar sanar a própria ignorância, de uma ou de outra maneira. E então entreguei-me mais do que nunca à literatura, à música, e dos encantos e da felicidade que tais artes, além da filosofia, costumam proporcionar, apenas poucos, muito poucos podem compreender.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Das viagens, leituras e ensaios de música, as lições aprendidas se somaram a outro fator que só pude perceber aos poucos, observando a vida e os costumes ao alcance de meus olhos; algo cuja existência eu nunca ignorei, mas que, em razão de certos contrastes, as circunstâncias me revelaram ser na verdade um grande deserto. Lembrei de uma frase de Einstein que, até pouco tempo atrás, me parecia um tanto presunçosa: a sentença em que ele afirma existirem apenas duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Hoje percebo que a presunção estava em mim, por pensar que talvez o grande físico houvesse exagerado. (E hoje me questiono acerca da natureza da estupidez. Interrogo-me, por exemplo, se se trata de algo de nascença, de estado gerado por falta de oportunidades ou se simplesmente é opção de vida). E, ao mesmo tempo em que me admirava diante da magnitude de algumas das grandes criações do gênio humano, sob outro aspecto inquietava-me com o que alguém, muito apropriadamente, chamou de “deserto de almas”; um deserto que teve sobre mim um efeito muito maior do que as exceções, que, felizmente, não são poucas. Diante disso, optei pelo silêncio, mesmo porque não havia outra escolha.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não é segredo para ninguém que a vida muitas vezes nos reserva circunstâncias que nos levam a calar. Para quem está habituado a fazer da escrita uma das razões de viver, o silêncio, em tais momentos, é duplo: ao mesmo tempo em que nós mesmos, por questões racionais, optamos por nada dizer, a voz que literalmente nos obriga a enfrentar quase todo dia o espaço em branco, outrora plena de ardor, parece por sua vez ausentar-se, como se nunca tivesse existido. Por experiência própria, sei que esses bloqueios são temporários e que acontecem de tempos em tempos. Talvez seja mera impressão, mas me parece que tais períodos sempre contribuem para um aprimoramento, mesmo que ínfimo ou imperceptível em seu resultado final: as palavras.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não foram poucas as tentativas de romper esse silêncio. Todavia, tudo que busquei escrever trazia a marca da distração, da ausência, de quem não está realmente presente naquilo que redige. Tenho para mim que os meus poucos leitores merecem algo muito melhor. E quando o nível dos textos está aquém dos meus próprios níveis de exigência, o mais adequado mesmo é prolongar o silêncio. É necessário ressaltar que, ao menos na minha concepção, isso não significa inatividade. Antes pelo contrário: quer dizer estudo, leituras, aprofundamento, esforço. Isso sem falar na busca incessante pelo aperfeiçoamento, que possivelmente não passa de uma quimera. Porém, é sabido que todos precisamos de um pouco de ficção; e, por outro lado, ao menos o desejo de melhorar, se insatisfeito, não nos traz prejuízo algum.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Dado o caráter limitado de todas as nossas experiências, tudo, para o bem ou para o mal, tem um fim. E, como em certos antídotos produzidos a partir da própria substância que lhe é antagônica, creio ter encontrado as primeiras palavras deste texto na própria inexistência de qualquer sinal que prenunciasse algo parecido a um pensamento mais digno de ser partilhado, e que me levou a buscar alento na negação. É de Cioran a seguinte frase: “Tudo pode ser sufocado no homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, assim como ao desaparecimento da religião sobre a terra”. Qualquer que seja o nome desse Absoluto, muitas vezes ele é tudo que nos resta – o que não significa pouco. A aceitação desse fato pode se dar por diferentes vias, algumas dolorosas, outras extasiantes, e, algumas vezes, simplesmente banais, como as coisas mais triviais do cotidiano.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Ignoro se as linhas acima cumpriram o objetivo de explicar as razões do silêncio. Tampouco sei dizer se o presente texto é o fim de um bloqueio, se é um recomeço ou uma retomada do ponto onde parei. Talvez o mais adequado seja vê-lo como um novo ponto de partida; daqueles pontos dos quais saímos cientes da inexistência de linha de chegada mais específica, nos quais nos movemos sem saber se percorremos um espaço horizontal, vertical ou circular. Em todo caso, seja ele o que for – um ponto luminoso entre um silêncio e outro -, não esqueçamos do essencial: lembrar que, seja qual for a natureza de nosso pensamento, jamais conseguiremos nos distanciar muito<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>da dúvida, causa de tantos mistérios – os quais, por sua vez, talvez sejam a origem maior do fascínio de tanta coisa que está sempre ali, ao nosso redor. E que às vezes pedem apenas um simples olhar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Por enquanto, era isso o que eu tinha a dizer. Peço aos que me leem perdão pelo tom confessional, mas em alguns momentos ele se torna necessário. Agradeço pela compreensão e, de resto, até breve. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Caspar David Friedrich: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Viandante sobre mar de nevoeiro,</i> 1818</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"></span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-38142703315802282952012-05-05T22:33:00.000-07:002012-05-05T22:43:44.052-07:00Das escolhas que fazemos - digressões<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">No momento de iniciar este texto, deparo-me com vários inícios possíveis. Sei porém que, entre essas possibilidades, apenas uma é a correta: como num jogo. Caso eu escolha a via errada, o futuro mais provável destas linhas é o esquecimento, destino frequente de muitos outros começos que, a despeito de terem parecido em princípio as palavras certas, não conduziram a coisa alguma além do vazio da obviedade. Desde muito tempo – talvez desde uma infância precocemente consciente de algumas coisas - convivo com essa necessidade incontornável, ou responsabilidade, de fazer as escolhas certas, na verdade desde muito antes que o escrever passou a fazer parte de minha rotina – ou seja, desde outros inícios, esses mais prementes e sem muitas possibilidades de escolha. Todavia, apenas hoje me ocorreu mencionar esse detalhe dos bastidores porque, casualmente ou não, ele vem ao encontro do meu tema de hoje: uma sensação estranha, muito difícil de definir, que algumas vezes acompanha a forma como atendemos aos chamados da vida, e a própria possibilidade de escolhermos entre atender ou não a esses chamados. A vida entre as palavras e as letras, com talento ou não, é uma existência à qual só podemos nos entregar por amor ao ofício, e, ao contrário do que muitos pensam, ela nos reserva, além de eventuais dificuldades, surpresas não raro fascinantes, que nos surgem das mais diversas formas, e que, além de serem momentos de uma enorme felicidade, nos dizem como que distraidamente, antes de voltarem ao mundo do esquecimento, de onde saíram por uma questão de poucos momentos, que sim, tomamos a decisão certa. Saber se o resultado é bom ou não torna-se questão secundária. Essas surpresas podem vir na forma de uma ideia à qual procuramos em vão, por dias sucessivos, uma maneira de revestir com as palavras mais adequadas, não encontrando, todavia, a despeito dos esforços nesse sentido, uma forma que satisfaça ao nosso senso de exigência; até que chega o momento, depois de já termos desistido tanto da busca como da ideia, em que ela nos surge por um desses dois caminhos: ou de uma consciência repentina, um lampejo de poucos segundos num dos momentos mais comuns do nosso cotidiano, ou ainda reproduzida da forma mais simples possível, através das palavras de um grande escritor. (A simplicidade, a ausência de esforço, a concisão, são essas as eternas marcas que revelam o abismo entre os grandes escritores e nós, simples e mortais, embora constantes, amontoadores de palavras. “Que ninguém se engane”, escreveu Clarice, a inesquecível, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A hora da estrela:</i> “só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Um desses pensamentos a que busquei em vão dar forma, na verdade apenas uma noção vaga, não obstante revestida de certa perplexidade, surgiu, certo dia, em algumas linhas de Jens Peter Jacobsen (escritor dinamarquês que, assim como Ibsen e Strindberg, me parece sempre subestimado e, infelizmente, assim como estes, muito pouco lido). Com palavras na aparência quase banais, escreveu ele que existem pessoas que vivem como se viver fosse a coisa mais natural do mundo. Trata-se de uma afirmação simples, mas que ao mesmo tempo me enche de espanto, especialmente porque se trata de uma verdade que pode ser constatada facilmente dia após dia, observando e comparando a nossa vida com a de outros viventes. Para muitos, viver é coisa que se faz com uma destreza toda peculiar, uma naturalidade intrínseca, que me leva a concluir que tal leveza é coisa para poucos eleitos, além de nos incutir a semente da dúvida: o que precisamos fazer para atingir tal estado de intangibilidade, de despreocupação daqueles cujo lema parece ser aquele antigo clichê segundo o qual “a vida é muito simples; nós é que a complicamos”? Quanto mais me interrogo, parece-me, mais distante me encontro de uma resposta que, começo a desconfiar, simplesmente não existe, embora em nada me agrade a ideia de render-me ao simplismo de certas ideias (“as coisas são como são”, entre outras). E não posso deixar de comparar o modo como tais seres conduzem suas vidas com a sucessão de afazeres, entre lazer e trabalho, além de outras atividades, que compõem a minha rotina. Parte dessas tarefas são ditadas pelas leis mais imediatas da vida, como o trabalho e tudo a ele relacionado. Contudo, como se trabalha tendo em vista a qualidade das horas ociosas, outras atividades vão se somando, sobrepondo-se umas às outras, gradualmente, entre convites de que não se pode declinar, além de encargos que aceitamos sem hesitar, tendo em vista, entre outros fatores, nossos princípios éticos mais elementares. Isso sem esquecer que a vida tem também seu lado estético. E assim acabamos nos comprometendo com a música, em ensaios para apresentações, ou com a escrita de roteiros para espetáculos. Enquanto procuramos nos desincumbir desses compromissos, os livros encomendados, sempre em quantidade maior em comparação aos poucos a que realmente podemos nos dedicar, continuam chegando, em caixas que já vêm se avolumando, empoeiradas, há anos nas estantes, onde permanecem à espera dos momentos, a cada dia mais breves, em que podemos nos dedicar a eles com toda a atenção e o cuidado que seus autores merecem. Tão vital quanto a leitura, há a necessidade quase física de escrever. Soma-se a isso o pacote da viagem com que tanto sonhamos, que pagamos com certo sacrifício e que, quando se aproxima, a despeito de ter sido planejada com meses de antecedência, parece vir em momento impróprio: como poderemos nos ausentar por tantos dias, deixando todo o resto em suspenso? E é nesse estado de total imersão nas obrigações e dúvidas sem possibilidade de resposta que surgem lembranças que talvez não passem de uma impressão errônea que o transcorrer do tempo muitas vezes confere ao passado: uma aparência de tranquilidade de dias em que nada havia de urgência ou de pressa que fosse. Um tempo que talvez nem sequer tenha existido, mas cuja lembrança, talvez não mais que um equívoco, nos traz a ideia de um fluir constante, calmo e, mais do que tudo, em estado de paz absoluta.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Ignoro se existem amálgamas perfeitos; embora se produzam em um processo natural, ao menos na aparência, existem conjunções, encontros de circunstâncias e de elementos, que me remetem mais uma vez a conceitos em que me detive não faz muito, a saber, de identidade. Na verdade, este talvez integre o vasto espectro dos assuntos que, quanto mais pensamos a respeito, mais nos afastamos da verdade – que talvez seja algo muito mais simples do que inicialmente suspeitamos. Entretanto, há uma interrogação que, por mais difícil que seja encontrar as palavras, não posso deixar de ao menos tentar verbalizar. No caso, a dúvida vai um pouco além da definição segundo a qual somos o que fazemos. Pergunto-me se acaso não se confere importância exagerada ao resultado de nossos esforços, em detrimento das circunstâncias que nos permitiram a realização do que nos propusemos fazer, somadas a algo inescapável: que o tempo que levamos na consecução das tarefas, na defesa de ideais, na realização de sonhos, constitui um elemento, esse sim, vital de nossa personalidade, uma vez que a escolha de como vivê-lo foi, casual ou não, deliberação exclusivamente nossa. Talvez em vários aspectos, não passemos disso: um tempo determinado que, somado, é nossa existência e, ao mesmo tempo, parte essencial de nós mesmos. Trata-se de uma noção que, ao mesmo tempo em que parece estranha, sugere também obviedade, e até uma grande dose de ingenuidade, e que talvez não passe de uma intepretação equivocada dos dias e das palavras do já citado Jacobsen, que se refere à existência do indivíduo como “aquela contínua caça de si mesmo, espiando astutamente as próprias pegadas (...) num eterno andar em círculo; aquele aparente mergulho no rio da vida, mantendo-se no entanto sentado, lançando o anzol à espera de pescar a si mesmo sob sabe-se lá qual estranho disfarce”. Assim como o tempo é fugaz e a vida, intangível, a noção de si mesmo é incerta e fugidia. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>E o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eu, </i>além de tudo, uma ilusão. Uma ilusão a cuja construção e manutenção nos dedicamos cada dia de nossa vida. Tal como os amálgamas perfeitos, pergunto-me se existem interpretações errôneas: é Ricardo Piglia quem defende os maus leitores, e, nesse caso, sou fruto acidental da busca por sanar minha própria ignorância. Por falar nisso, o conjunto das linhas acima me leva a crer que, na escolha entre os começos possíveis, um erro conduziu ao outro. Para encerrar esse ciclo de vias tortas, concluo aqui estas palavras, com a plena consciência de um aumento considerável na minha já significativa quantidade de questões não respondidas. E esperar que o tempo traga alguma resposta seria confiar demais, não no tempo, que de nada tem culpa, mas sim em mim mesmo, em vez de crer, isso sim, na incapacidade nossa de viver com alguma certeza, uma ao menos que seja.</span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-24627168876319350592012-04-25T13:52:00.000-07:002012-04-25T13:52:52.771-07:00À arte - uma tentativa de dedicatória<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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<a href="http://2.bp.blogspot.com/-8AC18iU6_H0/T5hhocZJpSI/AAAAAAAAAMU/xE0PFya1iK0/s1600/coresdeou...jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="317" oda="true" src="http://2.bp.blogspot.com/-8AC18iU6_H0/T5hhocZJpSI/AAAAAAAAAMU/xE0PFya1iK0/s320/coresdeou...jpg" width="320" /></a></div>
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<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Diz um filósofo que “é no diálogo com a dor que muitas coisas belas adquirem seu valor”. Creio na verdade dessa afirmação: se a beleza tem a capacidade de nos comover, em grande parte é por sabermos que ela é a exceção, e não a regra. Todavia, isso não quer dizer que os apreciadores da beleza em suas manifestações artísticas sejam sofredores por vocação. Antes pelo contrário: saber apreciar o belo, acredito, tem sua origem antes de mais nada em saber viver, em fazer da busca do conhecimento e da melhoria – do que quer que seja - um ideal constante. A apreciação da beleza também possui a rara capacidade de despertar em nós algo que sabidamente é uma de nossas características mais essenciais como seres humanos: a consciência da transitoriedade de tudo que nos cerca, sem esquecer que esse estar de passagem diz respeito também a nós, além da noção de que a única certeza é a da impermanência. Talvez seja essa uma das razões que nos levam, quando diante de certas formas mais específicas de arte, além dos êxtases de intensidade variada, a sentir um certo grau de tristeza, podendo chegar, dependendo do grau de nossa entrega, a algo não muito longe de um breve, mas significativo desespero. Desespero, sim – não existe outra palavra para essa sensação inconsolável de que aquilo que em dado momento nos encanta em breve não passará de erva fenecida, seca, como perecíveis folhas de outono a sucederem-se no curso incessante das estações. </span></div>
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<a href="http://2.bp.blogspot.com/--GEYTFHrDK8/T5hiL_3_jyI/AAAAAAAAAMc/9V5KYubtdio/s1600/coresdeou..2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="248" oda="true" src="http://2.bp.blogspot.com/--GEYTFHrDK8/T5hiL_3_jyI/AAAAAAAAAMc/9V5KYubtdio/s320/coresdeou..2.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Existe um pensamento que expressa com perfeição a grandeza e ao mesmo tempo a miséria da humanidade: “O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”. Não sei em que contexto Hölderlin pronunciou essa sentença, mas não creio que exista outra frase capaz de sintetizar tão bem a conclusão a que chegamos quando diante de uma espécie de arte mais tradicional: a pintura de paisagens. Não me refiro aqui a qualquer estilo, mas sim a um exemplo específico: o rigor formal das pinturas a óleo da artista plástica Kelva Lucia Gorgone Novaes – que, através da obra “Cores de Outono 6”, passa a partir de hoje a ilustrar este espaço. Um simples exame de seus trabalhos torna dispensável a necessidade de uma apresentação mais formal. Mesmo porque não é necessário um olhar muito detido sobre suas obras para descobrir as razões que levaram Kelva a figurar no panteão dos mais conceituados e premiados artistas plásticos brasileiros: através de tons ora sóbrios, ora em pulsações de cores mais vivas, essa artista, radicada em Paraíso, São Paulo, soube criar com êxito um estilo extremamente característico, que reproduz com precisão uma espécie de arte que julgávamos não apenas extinta, mas também quase esquecida, e que, através de uma habilidade peculiar das mãos da pintora, se revela não só atual, mas também mais necessária do que nunca. Necessária para nos lembrar de um fato na verdade bastante simples: que, embora hoje se privilegiem tanto os estilos mais modernos, o clássico, a despeito de tudo e de todos, é eterno. Creio que seja consensual o fato de que, de certa maneira, toda arte é uma forma de resistência, algumas mais, outras menos. A resistência de Kelva Novaes se dá em relação ao fugaz, ao transitório. Isso posto em primeira instância, embora por si já não seja pouco, podemos dizer que suas obras são também muito mais do que isso: por meio dessas paisagens e naturezas mortas, temos o privilégio de ver reproduzidas atmosferas de sonho, cuja maior característica percebemos de maneira inesperada - justamente no momento em que delas desviamos o olhar, instante em que, ao termos diante de nossos olhos uma realidade nem sempre condizente com o devaneio, percebemos a verdade tão bem expressa na frase de Hölderlin. Sim, é claro que a arte existe para nos despertar para as mais diversas realidades. Mas também é verdadeiro que o primado da imaginação tem o objetivo, não menos nobre, de nos conduzir a estados que fogem aos domínios do sono e da vigília: o encantamento, o cenário de nossos sonhos e doces promessas de felicidade em paraísos ainda possíveis, que, conforme quero crer, jamais serão perdidos. Concordo que talvez eu tenha uma visão romântica demais da arte. Contudo, se existem limites para as possibilidades de experiência com a literatura, a música ou a pintura, ainda não os encontrei. Sei que me arrisco, mas diria um pouco mais: acredito que seja justamente através dessas experiências que, a partir do contato com as mais variadas representações da beleza, ultrapassamos nossos próprios limites. Se com isso não nos tornamos pessoas melhores, ao menos é fato que, a partir de nossas vivências com as mais diversas formas de arte, passamos a conviver em maior harmonia com o mundo à nossa volta e, por que não dizer, com maior conhecimento a respeito de nós mesmos, importante passo para todo processo de aprendizado.</span></div>
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<a href="http://1.bp.blogspot.com/-AChYP7G2gsk/T5hi65VSV_I/AAAAAAAAAMk/0_iDLCogUNk/s1600/0902_kkonzert_2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" oda="true" src="http://1.bp.blogspot.com/-AChYP7G2gsk/T5hi65VSV_I/AAAAAAAAAMk/0_iDLCogUNk/s1600/0902_kkonzert_2.jpg" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Entre as várias centenas de canções compostas por Franz Schubert em sua breve existência, é difícil saber, entre tantas, quais seriam as prediletas dos intérpretes, bem como as mais inspiradas. São numerosas as coletâneas contendo, às vezes de forma exaustiva, aquelas consideradas, acima de qualquer discussão, suas obras-primas para piano e voz. Contudo, a presença quase constante, nessas antologias, de um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">lied</i> de tocante simplicidade parece conduzir silenciosamente a questão das preferências a uma espécie de consenso. Trata-se de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">An die Musik</i> (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Á Música</i>), composta por Schubert em 1817, quando contava 20 anos. Tendo por base versos de uma simplicidade quase ingênua, que dificilmente teriam sobrevivido sem a partitura, a peça não entrou para a história da música apenas como a profissão de fé do compositor, mas de todos os <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>cantores que se dedicaram a ela nestes quase duzentos anos. Em seus breves dois minutos e meio, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">An die Musik, </i>embora tenha vindo ao mundo como um despretensioso exercício musical de um dos maiores compositores de que se tem notícia, acabou se convertendo em um agradecimento à arte dos sons e, indo um pouco além, à Arte em si. Neste poema, escrito por Franz von Schober, o sujeito lírico se dirige à própria arte, dizendo das tantas horas penosas em que a vida se revela um universo hostil (eis o “diálogo com a dor” evocado pelo filósofo), sendo as circunstâncias mais difíceis convertidas pela arte em um mundo infinitamente mais rico. A segunda estrofe, de estrutura semelhante, contém, em palavras mais diretas, uma declaração simples, mas de cuja sinceridade ninguém ousaria duvidar, tendo-se em vista dois testemunhos eloquentes: a experiência própria de cada um e o apaixonado arroubo expresso na melodia do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">lied </i>mencionado: “Um doce, sagrado acorde de tua harpa me abriu os céus e me possibilitou a felicidade de uma vida melhor. Por isso, a ti, nobre arte, faço agora meu agradecimento”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quem canta tem o privilégio de fazer suas essas palavras. Eu, porém, que não tenho voz, limito-me a transcrever o básico desses versos, e, privado dessa nobre melodia, ouso acrescentar, em um breve sussurro, à música, à pintura, à literatura, no meu português mais simples e em palavras por completo desprovidas de harmonia, meu improvisado agradecimento. Ontem, hoje e sempre.</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"> Pinturas: Kelva Lucia Gorgone Novaes</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"> Franz Schubert, desenho de Moritz von Schwind</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-53300282761251094512012-03-26T18:09:00.004-07:002012-04-21T21:57:38.168-07:00Kathleen Ferrier e a pungente arte da transcendência<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Ao iniciar um texto, acontece-me às vezes de ter apenas uma noção vaga do que virá após a primeira frase. Embora seja certo que o assunto já esteja escolhido, muitas vezes é difícil prever as vias que o tema irá trilhar. Longe de ser um problema, essa característica da escrita é o que a torna ainda mais fascinante aos meus olhos, mesmo que os resultados quase sempre deixem a desejar. Hoje, além dos pré-requisitos mais habituais, como o recolhimento e o silêncio, ocorre algo que também não constitui novidade, mas que traz um receio, ou, na verdade, um senso da justa medida das coisas: a consciência de que a minha capacidade de expressão está muito aquém do tema proposto, além de saber da quase inexistência de leitores que, por mais que eu me esforce na escolha de adjetivos e em descrições, compreenderão o que tenciono transmitir. Creio que não entenderão porque, apesar de existirem parâmetros fixos de qualidades que permitem a atribuição de juízos de valor, não é novidade que o sentimento que temos diante de qualquer coisa que seja, sendo algo relacionado à arte ou não, feitas as contas, não passa na realidade de mera subjetividade, ainda mais quando se trata da característica mais particular que uma pessoa pode ter, muito mais eloquente que impressões digitais: a voz, e, no caso em questão, uma certa voz. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">É bastante conhecido o modo como Michelangelo definia seu ofício de escultor: tendo diante de si um bloco de mármore, sua arte consistiria em remover tudo que não fazia parte da forma desejada. Creio que com a voz humana, tida como o mais sensível entre os instrumentos musicais, o processo seja semelhante. Tem-se como ponto de partida uma matéria-prima em estado bruto e se dá início a um trabalho através do qual toda impureza é retirada, até que, depois de um longo processo de lapidação, reste somente a voz, límpida, pura e – o que a torna tão preciosa – única no mundo. É em razão do conhecimento, mesmo que vago, dos esforços e da dedicação necessários para esse processo que me encho de assombro e da mais completa perplexidade diante da voz da contralto inglesa Kathleen Ferrier. </span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-_CBs0fuvVjU/T3EPvXIDZdI/AAAAAAAAAJU/pqic9at4aOk/s1600/ferrier7+por+Houston+Rogers.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img aea="true" border="0" height="320" src="http://1.bp.blogspot.com/-_CBs0fuvVjU/T3EPvXIDZdI/AAAAAAAAAJU/pqic9at4aOk/s320/ferrier7+por+Houston+Rogers.jpg" width="317" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
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<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Sempre quis escrever algo sobre essa intérprete única de Mahler – sobretudo de Mahler -, Brahms, Schubert, entre outros, mas a simples audição de suas gravações era um constante desestímulo. Por essa razão, deixei seus discos de lado por algum tempo. Mas não sei até que ponto o distanciamento de alguns dias, semanas ou mesmo meses ajuda quando nos sentimos tão intimamente ligados a personalidades que, a despeito de já não viverem no momento em que nascemos, em muitos casos são para nós tão conhecidos quanto alguns de nossos amigos. Por fazerem parte de nosso dia a dia, esse laço, como tantos outros vínculos, algumas vezes, dependendo da intensidade de nosso apego, é algo quase visceral. Esse é meu caso em relação a Kathleen Ferrier e a sua arte: muito mais do que simples admiração, é uma espécie de fervor. A perplexidade a que me referi acima pode ser explicada pelo fato de perceber que a característica que mais se evidencia em seu timbre é sua rara naturalidade, algo muito espontâneo. Em outras palavras, observa-se que seu registro grave não é o resultado de anos de dedicação em conservatório, mas algo muito particular, apenas seu. Os próprios professores a quem ela recorreu reconheceram que seu trabalho se resumiu a ensaiar seu repertório e a afinar sua voz, que, desde o primeiro dia, estava já toda ali. Some-se a isso a grande raridade do registro de contralto; na maior parte das vezes, o repertório para essa voz é cantado por mezzo-sopranos concentradas nos graves.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Toda a intensidade e a raríssima beleza da voz, além da extrema sinceridade das interpretações de Ferrier, podem ser verificadas numa discografia que muitas vezes lamentamos não ser maior: infelizmente, sua carreira não durou mais que dez anos, uma década verdadeiramente radiosa – o que, por outro lado, contribui em muito para tornar tais gravações ainda mais preciosas. Do seu catálogo, além de obras de Mahler, é digna de nota a gravação, feita em dezembro de 1947, da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Rapsódia para Contralto, coro masculino e orquestra, op. 53</i>, escrita por Brahms com base em texto de Goethe. Na interpretação dessa obra, a contralto inglesa imprimiu à peça o tom de resignada contenção que marcaria a maior parte dos registros posteriores dessa obra. Três anos depois, foi a vez das <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Quatro canções sérias</i>, op. 121, também de Brahms, nas quais o estado de espírito, de grave austeridade, forma um verdadeiro teste de autenticidade para qualquer intérprete.</span></div>
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<a href="http://1.bp.blogspot.com/--xXFsLdOFmM/T3EQKdfdTyI/AAAAAAAAAJc/eGjHK1eXd2E/s1600/can%25C3%25A7%25C3%25A3o+da+terra.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; cssfloat: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img aea="true" border="0" src="http://1.bp.blogspot.com/--xXFsLdOFmM/T3EQKdfdTyI/AAAAAAAAAJc/eGjHK1eXd2E/s1600/can%25C3%25A7%25C3%25A3o+da+terra.jpg" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"></span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Autenticidade, aliada à mais completa entrega que se possa imaginar, talvez seja a palavra-chave para definir aquela que seria a gravação mais famosa de Kathleen Ferrier, realizada em 1952, e que entraria para a história da música como um dos clássicos do disco: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A canção da terra</i>, de Gustav Mahler, regida por seu discípulo Bruno Walter. O compositor começou a musicar partes desse ciclo de poemas chineses em 1907, pouco depois da morte de sua filha mais velha, de apenas quatro anos. Pouco depois desse acontecimento, outro golpe aguardava Mahler: o diagnóstico, por um especialista, das condições precárias de seu próprio coração. Pode-se imaginar, a partir dessas informações básicas, o significado e a força dessa obra. Dizer que se trata de um verdadeiro testamento musical é dizer pouco. Muito mais do que isso, o ciclo forma uma expressão da filosofia do compositor, baseada em um sentimento de amor à vida, à natureza e à terra, de cujos benefícios podemos desfrutar por um breve período para logo depois partir, enquanto esta se renova ano após ano, eternamente. A parte final, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Der Abschied,</i> isto é, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O adeus,</i> é uma síntese tocante e de rara intensidade dessa realidade. Segundo o crítico Michael Kennedy, “é praticamente impossível ouvir-se esta gravação sem levar em conta as circunstâncias pessoais dos artistas envolvidos – Walter, o amigo do compositor, e Ferrier, que soube, enquanto fazia a gravação, que o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Abschied</i> seria seu próprio adeus e que a terra bem-amada só voltaria a florir para ela mais uma vez. Como Mahler, ela respondeu ao desafio da sentença de morte (por câncer, em 1953) atingindo o pináculo de sua arte. Sim, é verdade que seu Sol agudo sente um pouco o esforço, mas o fulgor, a vibração e a compaixão transcendental de seu canto aqui o colocam acima de qualquer crítica mais negativa”.</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://4.bp.blogspot.com/-Hzt2DJB9d54/T3ERAJSnxUI/AAAAAAAAAJk/dDE_Y3epLKg/s1600/gustav_mahler.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img aea="true" border="0" height="320" src="http://4.bp.blogspot.com/-Hzt2DJB9d54/T3ERAJSnxUI/AAAAAAAAAJk/dDE_Y3epLKg/s320/gustav_mahler.jpg" width="260" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
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<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Enquanto escrevia esse texto, soube que o próximo dia 22 será o centenário de nascimento de Kathleen Ferrier. Para ser sincero, devo confessar que soube da proximidade desse centenário apenas por acaso, ao procurar por fotografias para ilustrar este texto: ou seja, não passa de uma feliz coincidência. Talvez eu esteja equivocado, mas penso que essas datas têm sua importância, sim, mas apenas para nos lembrar que grandes personalidades das artes e da filosofia são, antes de tudo, pessoas como nós. De resto, não dou muita importância, isso por pensar que certos artistas, em virtude de sua grandeza, depois de deixarem este mundo, passam a habitar outra esfera. Não gostaria de chamá-la de eternidade; mas creio que, de certa forma, constitui uma espécie muito particular de imortalidade, reservada a poucos. E reverenciar esses artistas, bem como sua arte, é, como já disse, uma questão de fervor, sentimento que independe por completo de datas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
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<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Kathleen Ferrier, fotografia de Houston Rogers</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Gustav Mahler, retrato de Michael Dudash</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;">
<br /></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-10821489282411028162012-03-15T00:47:00.003-07:002012-03-15T01:06:25.035-07:00Quantos somos, afinal, e o que enxergamos – Breve reflexão sobre Pirandello, Ofélia e Nietzsche<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">O ato de escrever, em alguns casos - e forçando um pouco a analogia -, pode ser comparado a uma tentativa de olhar-se no espelho com a finalidade de aproximar-nos um pouco do que somos e do que pensamos, diminuindo, através das respostas que surgem aos poucos, as vastas extensões de fatos que permanecem sempre no universo do desconhecido. É óbvio que a compreensão da maior parte das questões teima em ficar sempre muito além de nosso sempre limitado alcance, e se é por acaso o fato de que essas constituem para nós as dúvidas de mais premente necessidade de esclarecimento, é coisa que ignoro. Hoje o desafio do espaço em branco é duas vezes maior: além da obrigação moral de preenchê-lo com algo que valha um pouco mais que a alvura imaculada, há a tentativa de encontrar soluções possíveis para algo que pertence a esse campo mencionado acima: o do desconhecimento, sobre o qual me detenho mesmo sabendo da pouca possibilidade de encontrar algo além da incerteza - essa sim, constante. Contudo, ciente da pequena possibilidade de sucesso quanto aos resultados, ficarei muito satisfeito se encontrar, através dessa divagação, um pouco de paz em relação a algo indefinível, sem nome e que talvez exista em nós com o propósito único de nos levar à reflexão, como inimigo eterno da aparente quietude das respostas definitivamente esclarecedoras.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando o assunto em pauta é nossa identidade, o pensamento muitas vezes cede espaço ao senso comum. Sabemos que se trata de algo que vamos construindo ao longo dos dias que compõem nossa vida e que, em função de sucessivas experiências, diálogos, leituras, decisões, tomadas de postura etc., está sempre sofrendo alterações e acréscimos. É um processo que só encontra interrupção no final da jornada, e mesmo assim seremos surpreendidos entre uma posição e outra, como que em fuga, talvez no auge desse fenômeno que é a nossa formação. Fiz referência acima ao espelho, objeto cuja fidelidade em relação à realidade é tida como inquestionável. Contudo, creio que esquecemos com mais frequência do que deveríamos que, quando nos miramos na superfície aquosa, nós o fazemos com nossa visão subjetiva: a imagem que vemos refletida depende em tudo da nossa própria lucidez e lealdade em relação a nós mesmos. Lembrando Hume, talvez muito mais coisas, e não apenas a beleza, estejam na mente de quem contempla, e deformações ou aperfeiçoamentos surgem a partir desse fato. Em todo caso, não é diante do espelho, esse símbolo da vaidade humana, que nos deparamos com as maiores surpresas, ou mesmo alguns eventuais sustos. Eles podem vir tanto de um comentário banal a nosso respeito como da percepção básica de que a nossa visão de nós mesmos raramente coincide com a imagem que os outros têm de nós. Quando confrontadas, essas duas, três, quatro... (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">ad infinitum</i>) identidades distintas atribuídas a nós mesmos nos lançam uma silenciosa interrogação: qual delas é a mais próxima da verdade? Quando vivemos rodeados de muitas pessoas, podemos perguntar, sem a mínima esperança de encontrar alguma resposta, de quantas identidades, afinal, somos constituídos.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Pela presteza em nos oferecer fórmulas prontas, a realidade à nossa volta, talvez pelo excesso de informações, mais confunde que esclarece, pois, a julgar pelo que ouvimos, somos o que fazemos – principalmente num mundo materialista -, somos o que pensamos, o que comemos, o que deixamos de fazer – as escolhas -, e assim por diante. Se não me engano, o slogan da Livraria Cultura nos indica um caminho de concisão no mínimo surpreendente: “Ler para ser”. Quanto a mim, sinceramente não sei, pois estou entre aqueles que, ao buscarem respostas, encontraram tantas vias, algumas delas tão discrepantes entre si, que tudo que encontrei não passa afinal de fragmentos dispersos. Como sempre em caso de dúvida, recorro à literatura. Ao pensar nessa via de elucidação, meu contentamento me diz que sou antes de tudo um leitor. Todo o resto – que, para todos os efeitos, não é muito – veio e vem depois. Tal como Borges, sinto orgulho mais pelos livros lidos do que satisfação pelos resultados duvidosos dessa constante tentativa de encontrar alguma clareza, que é o juntar palavras não para compor outra realidade, mas como forma de interpretar e compreender essa que me cerca.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://4.bp.blogspot.com/-O0coD_vEg_A/T2GdNg1M2RI/AAAAAAAAAIg/J4JuNzmwOJU/s1600/luigi+1867-1936.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img aea="true" border="0" src="http://4.bp.blogspot.com/-O0coD_vEg_A/T2GdNg1M2RI/AAAAAAAAAIg/J4JuNzmwOJU/s1600/luigi+1867-1936.jpg" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Um dos aspectos que mais me fascinam na literatura é o fato de as maiores verdades muitas vezes surgirem da fala de personagens loucos – ou que se fazem passar por tais. Acima de todos, estão Hamlet, Dom Quixote e o Rei Lear. É em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Hamlet </i>que, através do desvario de Ofélia, entre murmúrios de uma pungência extrema e dos quais apenas a melancolia lembra a fala dos privados da razão, lemos a seguinte frase: “Sabemos o que somos, mas não o que possamos ser. Deus vos abençoe”. Um dos contos mais instigantes de Tchekhov é “Enfermaria número 6”, no qual os dois únicos personagens possuidores de algo semelhante à lucidez se encontram, ao final da narrativa, internados num manicômio. Mas é Luigi Pirandello, através do seu romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Um, nenhum e cem mil,</i> que me oferece um exemplo mais próximo do tema da diversidade de visões da identidade de uma única pessoa. As situações descritas na obra, segundo Alfredo Bosi, em seu prefácio, “levam ao paroxismo a consciência de um desajuste entre a vida subjetiva da personagem e a fôrma social, a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">persona </i>que a represa de todos os lados”.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">O romance mais complexo de Pirandello, escrito entre os anos de 1916 e 1926, tem um início quase banal: ao descobrir, por um comentário de sua esposa, que seu nariz pende para a direita, Vitangelo Moscarda ingressa numa cadeia de especulações metafísicas a respeito de sua própria identidade: “Quem será esse homem que mal conhece suas feições? Como o veem as pessoas mais próximas? O que restará dele uma vez subtraída sua imagem pública?”. Essas indagações acabam se revelando uma teia em que o personagem se perde de maneira inelutável, até a desintegração, estado que, por sua vez, o aproxima de uma verdade que não pode ser suportada, seja por ele, seja por seus semelhantes. É no prefácio de Bosi que encontramos o contexto desses acontecimentos: “(...) a máquina social exige, para manter-se em pé e reproduzir-se, uma engrenagem constante, um sistema de normas de comportamento dotado de um mínimo e, às vezes, de um máximo de coerência de expectativas; numa palavra, a sociedade requer uma forma. A forma enfeixa tanto as aparências físicas de um ser humano quanto as suas marcas sociais: o nome, a nacionalidade, a classe, o estado civil”. Segundo o crítico, os grandes romancistas do século XX inverteram essa perspectiva, olhando para dentro daquele sujeito que o naturalismo preferia descrever como um objeto.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">A partir da simples constatação a respeito de seu nariz, tem início a via-crúcis de Moscarda, cujas reflexões formam o cerne desta verdadeira saga de Pirandello em direção à desintegração e, ao mesmo tempo e de maneira paradoxal, à clareza. Faz parte dessa trajetória o seguinte pensamento: “Houvesse fora de nós, externa a vocês e a mim, uma senhora realidade minha e uma senhora realidade sua, digo, em si mesma, igual e imutável! Mas não há. Há em mim e para mim, uma realidade minha, aquela que me dou; e uma realidade sua e de vocês, para vocês, aquela que vocês se dão – as quais nunca serão as mesmas, nem para vocês, nem para mim”.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Existe em Proust uma passagem que talvez lance alguma luz na causa do dilema do personagem de Pirandello, ao mesmo tempo em que evidencia a inutilidade de qualquer reflexão nesse sentido, incluindo esta que esboço: “(...) nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos ‘ver uma pessoa conhecida’ é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e que, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte. Acabam elas por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal modo nuançar a sonoridade da voz, como se esta não fosse mais que um transparente invólucro, que, a cada vez que vemos aquele rosto e ouvimos aquela voz, são essas noções que olhamos e escutamos”. Pergunto a mim mesmo se me equivoco ao concluir, através dos pensamentos do personagem de Pirandello, que é justamente no sanatório que ele atinge uma espécie de iluminação, e se seria correto inferir que todo calvário conduz a uma libertação. Essas possibilidades me são sugeridas pelo seguinte trecho, perto do final de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Um, nenhum e cem mil</i>: “O ar é novo. E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado de vida. Desvio de repente os olhos para não ver cada coisa se fixar na sua aparência e morrer. Só assim consigo me manter vivo, renascendo a cada segundo e impedindo que o pensamento se ponha de novo a trabalhar, reabrindo por dentro o vazio de suas vãs construções”.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://1.bp.blogspot.com/-eMCiVSc6OPM/T2Gdjy4v1JI/AAAAAAAAAIo/4hJFWyn-hXI/s1600/Ofelia2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img aea="true" border="0" height="217" src="http://1.bp.blogspot.com/-eMCiVSc6OPM/T2Gdjy4v1JI/AAAAAAAAAIo/4hJFWyn-hXI/s320/Ofelia2.jpg" width="320" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Vem-me à mente mais uma vez a doce Ofélia, que passa por uma dupla purificação, a da loucura e a da água em que se afoga. E me interrogo o que teria essa personagem de Shakespeare a dizer caso fosse confrontada com a conhecida frase de Nietzsche, “Torna-te quem tu és”. Questiono-me também se seria correto concluir que tanto a filha de Polônio quanto o filósofo alemão levaram sua essência humana ao grau último de purificação, iluminação talvez, estado que (lembrando-me de um trecho da quarta cena do Ato III de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Hamlet</i>), ao mesmo tempo em que leva a nada enxergar, possibilita ver tudo o que existe para ser visto: o ar incorpóreo. </span><br />
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<span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Em todo caso, e para todos os efeitos, é possível que não haja afinal desvario algum no mal que os acomete. E se houver, tanto faz. Ao menos a julgar por Pascal, para quem “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria apenas outra forma de loucura”.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Fotografia: Luigi Pirandello</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">John Everett Millais: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A morte de Ofélia</i>, 1852</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-72274574653791194282012-03-02T00:45:00.003-08:002012-03-02T01:13:16.751-08:00A casa velha: um réquiem<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando eu era criança, era hábito nas férias de verão passar ao menos uma semana ou duas na casa de meus avós. Numa paisagem bucólica, cercado de galinhas, de vacas e de plantações por todos os lados, em contato com a natureza, encontrava uma atmosfera perfeita para ler os livros que escolhia na biblioteca pública de minha cidade especialmente para aqueles períodos de intervalo entre um ano letivo e outro. Eram dias em que eu mergulhava numa realidade em tudo diversa à daquela dos outros meses do ano: um lugar que oferecia a oportunidade de observar uma rotina vivida quase da mesma maneira como cem anos antes, ouvindo as pessoas falarem uma língua trazida por imigrantes e conservada por seus descendentes, além de ter na mesa do almoço os pratos mais tradicionais de uma culinária também preservada e por vezes, digamos, miscigenada. Fora isso, o dia a dia dos moradores daquele lugar, como me foi informado, apenas em poucas coisas havia sido modificada. Embora na época eu não tivesse muita noção desses fatos, eu valorizava muito essa oportunidade de conviver um pouco naquele lugar desbravado por meus ancestrais, que repousavam não muito longe dali. Desses tempos, guardo algumas das melhores recordações que se pode ter em relação a questões que mais tarde se desenvolveriam em meu pensamento, a saber, temas como a terra, a natureza, os livros e a arte, além de inúmeras, para não dizer infindáveis, questões envolvendo os animais, sua domesticação e a sua criação para o abate. São questões que ainda ocupam muito o meu pensamento e, se algumas delas me instigam, em outras encontro paz e sentido. Porém, mais especificamente em relação às que dizem respeito aos animais, não vejo qualquer possibilidade de encontrar paz. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Por mais importantes que tenham sido essas férias em companhia de meus avós, pelo que lhes sou imensamente grato, em memória, foi contudo outro lugar que me forneceu uma ideia (ou uma visão, não sei) de algo que me daria substrato para uma vida inteira de pensamento e de interrogações. Foram semanas que aprofundaram em mim uma tendência à divagação, algo que eu já possuía, mas que, depois daquelas semanas, se tornaria, ao lado da inquietude de pensamento, o aspecto talvez mais característico da minha personalidade: o caráter contemplativo. Eu tinha onze anos, e em vez de ir, como todos os anos, para a casa de meus avós, quis variar e aceitei o convite de um tio para passar algumas semanas em sua propriedade. Isso possibilitou que às já familiares vacas e galinhas se somassem porcos, cachorros e gatos. Além da casa de moradia, havia na propriedade imensos galpões, grandes plantações, um pomar, mata virgem e, para além dos limites de terra daquele irmão mais velho de meu pai, estradas para todos os lados e que me faziam pensar, não sei por qual razão, em uma frase que havia aprendido no colégio no ano anterior: que todos os caminhos levam a Roma. Com certeza, na época esse pensamento estava de todo ausente de minha consciência, mas percebo agora, em retrospecto, por mais aleatório que possa parecer, um sentido para essa frase: a possibilidade de que, para o desenvolvimento de nossa personalidade, a aparência da atmosfera em nossa volta, os fatos que vivenciamos ou os assuntos com os quais temos contato na mais tenra idade talvez não tenham toda essa importância que se costuma apregoar. E que muito mais importantes que tudo isso são as inclinações que já trazemos em estado de latência em nós mesmos e que despertarão de uma forma ou de outra, em qualquer cenário, em qualquer companhia e em qualquer circunstância. Se afirmar isso significa que não temos como fugir a nós mesmos, creio que seja realmente essa minha crença.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Havia, não muito distante dos galpões de meu tio, uma grande construção que era chamada simplesmente de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">casa velha</i> e que era usada como depósito de milho e onde dormiam os cachorros. Já a tinha visto muitas vezes anteriormente, em visitas, mas foi apenas naqueles dias que a examinei com maior atenção. De seu histórico, sabia apenas que datava de 1897 - data afixada com muita dignidade no frontão - e que, nas primeiras décadas do século seguinte, havia sido a casa mais luxuosa das cercanias. A veracidade desse fato era atestada pelos inúmeros ornamentos que a cercavam por todos os lados, nos peitoris das janelas, na pequena escada que conduzia à rica porta de entrada, em cujo cimo e laterais, bem como no interior, havia detalhes trabalhados em estuque. Em minhas longas caminhadas pelas estradas do lugar, era comum encontrar muitas casas de imigrantes, caracterizadas todas elas pela simplicidade, e algumas datavam de épocas muito anteriores à década de 1890. Nenhuma, contudo, se parecia com a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">casa velha, </i>o que me levava a concluir que não se tratava de mais uma moradia de imigrantes ou descendentes, mas da residência de uma família de grandes posses. Não obstante seu passado, havia rachaduras e em muitas partes o reboco já havia caído, deixando à vista os tijolos; muitos dos caixilhos das janelas já não tinham vidro, tudo isso sem que ninguém sequer cogitasse providenciar os devidos reparos. Talvez porque não a vissem como uma casa, muito menos como o palacete que era, mas apenas como as ruínas de um tempo há muito passado. Esses efeitos do tempo, contudo, só a tornavam ainda mais bela e preciosa aos meus olhos.<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"> </b>Eu tinha onze anos, repito, e nunca antes me sentira tão fortemente ligado a uma construção. Para mim, portanto, tratava-se de um sentimento novo, o que me pareceu estranho, pois nenhuma das casas em que até então havia vivido me tinha despertado tal apego. Se na época me perguntassem o que via de tão comovedor naquela construção, dificilmente saberia dizer algo que não fosse relacionado a tudo que acontecera em termos de fatos históricos pretéritos e que, enquanto ocorriam, a casa, durante todas aquelas décadas, estivera sempre ali, imperturbável, por mais que sua aparência, nos dias de minha estada, pouco guardava dessa impassibilidade. Mas talvez não fosse apenas isso; todos aqueles ornatos, aquelas cores ressaltando belos detalhes ou toda a pompa maltratada pelo tempo, tudo isso lhe conferia uma leve e comovente semelhança com uma flor murcha, talvez o símbolo máximo da brevidade da vida: uma flor que, não obstante seu estado, poderia muito bem voltar a reluzir e ocupar a posição que já lhe fora própria, se naquela época houvesse uma maior consciência de preservação.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Perdi a conta de quantas horas, de quantas tardes passei em volta e no interior daquela casa imensa, imerso nos mais variados pensamentos: buscava imaginar desde respostas a questões mais triviais, como quantas gerações haviam vivido ali, até detalhes mais precisos, como, por exemplo, como era a rotina dos moradores, em que consistia seu cardápio e ainda como se vestiam. Interrogava-me também se liam, e, no caso, quais autores. Outras indagações me eram inspiradas por vestígios ainda visíveis da vida na construção, como uma marca retangular na parede, em que se percebia, pela diferença nas cores, ter sido o lugar de um quadro; em outra parede, a existência de um nicho, como os que se encontram nos templos góticos, me dizia da religiosidade dos moradores. Em outra aposento, ao lado da porta, restara um suporte em madeira e metal para roupas e chapéus. Por mais que minha imaginação funcionasse, tais detalhes apenas vinham se somar à riqueza de algo que para mim, por si só, já constituía objeto da maior admiração. E as marcas do tempo, que se tornavam mais cruéis considerando a dignidade dos ornamentos e o fato de ter sido a residência de algumas das pessoas mais influentes das redondezas, a meu ver intensificavam um sentimento de injustiça que perdura até hoje: a rápida e implacável substituição do belo e do profundo pelo novo. Mesmo que o novo muitas vezes signifique algo infinitamente pior, promove-se o desterro do conteúdo e da profundidade, mesmo que a novidade muitas vezes substitua o bom por algo vazio, não raro completamente destituído de qualquer traço de beleza e, mais ainda, de significado.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Naquele meu culto precoce ao antigo e ao caráter belo e profundo das coisas atemporais, a despeito da minha pouca idade, não esperava de modo algum ser compreendido por meus tios e primos. Pelo contrário: era-lhes muito grato pelo simples fato de aceitarem minha admiração por aquela antiga casa, por mais que considerassem tal sentimento como algo que podia ter origem apenas no fato de eu viver na cidade.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Somente a passagem de exatas três décadas me trouxe uma compreensão mais clara de minha ligação com a aparência e a antiguidade daquela casa. Foi um entendimento que me veio através da leitura de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A arquitetura da felicidade, </i>de Alain de Botton: “Se as construções podem atuar como receptáculos de nossos ideais, é porque podem ser purgadas de todas as infelicidades que corroem as vidas normais. Uma grande obra de arquitetura nos falará de um grau de serenidade, força, equilíbrio e graça a que nós, como criadores ou como espectadores, normalmente não podemos fazer justiça – e por essa mesma razão ela irá nos divertir e comover. A arquitetura provoca o nosso respeito na medida em que nos supera”.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Alguns anos atrás, soube que a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">casa velha </i>não existe mais: foi demolida<i style="mso-bidi-font-style: normal;">.</i> Por essa razão, tenho evitado visitar meus tios e meus primos. O que não significa que não sinta saudades deles; porém, voltar àquela propriedade seria como retornar no tempo e não encontrar o passado no lugar onde ele deveria estar, para muito além da esfera de minhas recordações. É de Jorge Luis Borges a seguinte interrogação: “Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao descrever uma época do seu passado, não sentiu em algum momento que alguma coisa infinita se perdera?”. Talvez seja próprio aos amantes da arte esse estado de vaga confusão, esse constante interrogar-se, tendo diante de si a realidade e, na memória, algo como um vestígio, uma impressão mesmo que remota de todos os paraísos perdidos. E talvez os vislumbres que nos são dados um pouco a cada dia, por mais dadivosos que sejam, não passem de sombras pálidas de imagens que vimos em outros tempos e cujo reencontro está além de nossa capacidade imaginativa. E talvez também seja próprio do passado, como tudo que é esvaído, parecer mesmo algo único e para sempre perdido, tal como todas as coisas, enfim, marcadas pelo passar do tempo. Saudosismo em excesso? Sim, é possível, e gostaria imensamente que fosse apenas isso. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Porém, aos poucos, sei que devo me habituar aos fatos: em se tratando de respeito à memória, à beleza e à riqueza de significado, o mundo está longe de ser justo. E, entre inúmeros outros fatores, a rápida extinção dos poucos rastros de um passado vivido - e de tudo que lhe é característico -, porém aos poucos varrido completamente do alcance do tempo, do espaço e da recordação, é prova mais que suficiente dessa verdade.</span></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-30473959080650513512012-02-18T05:08:00.000-08:002012-02-18T05:08:47.550-08:00Lição ancestral de humildade<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não importa o que se diga nem quem o diga, mas o fato é que existem pessoas, e elas talvez sejam a grande maioria, que são superiores e distinguem-se em especial pela dupla notabilidade de estarem acima de tudo e de terem sempre razão. E eu, que não passo de um reles amontoador de linhas que não almeja ser outra coisa além disso, admiro-as muito e fico-lhes imensamente grato por dispensarem-me de estar certo sobre alguma coisa na vida, mesmo que seja pela mais insignificante das questiúnculas. Não que deseje de algum modo comparar-me a elas; apenas pensava cá com os meus botõezinhos o quanto tais criaturas são bondosas e mesmo gentis por deixarem a nós, os insignificantes, habitarem o mesmo mundo que elas, o qual, bem o sabemos, pertence-lhes em cada centímetro, assim como os planetas em redor, bem como o sol. É esforço inútil querer um pouco de sua atenção; toda ela está comprometida com suas próprias e urgentes necessidades, às suas causas que são realmente primeiras em todos os sentidos. No máximo, o que conseguiremos é um olhar de condescendência, não de quem se apieda, mas de quem se digna, embora não mais que por um instante, a olhar para baixo e ver-nos em nossa pequenez para, logo em seguida, observarem uma vez mais o quanto são fabulosas, coisa de que não se cansam de admirar. Quando sofrem, quando se preocupam, tais pessoas, temos que estar de acordo com elas quanto ao fato de que suas dores e misérias são as maiores de que se tem notícia desde Édipo e persignar-nos com sua triste sorte. “Se nenhum deus quer se manifestar na terra, sejamos nós próprios deuses”, diz um antigo poema alemão, como que profetizando que um dia o mundo se povoaria de deuses, cada um mais magnífico que o outro em potência e ato. E a nós, mortais, não resta muito mais que concordar com as palavras de Emil Cioran: “Cada um é para si mesmo um dogma supremo; nenhuma teologia protege seu deus como nós protegemos nosso eu; e este eu, se o assediamos com dúvidas e o colocamos em questão, é apenas por uma falsa elegância de nosso orgulho: a causa está ganha de antemão”. Que Deus me proteja do grau tão absoluto de tais seres: quero continuar a exercer meu trabalho e, nas horas livres, dedicar-me ao ofício, a eles indiferente, de juntar palavras e a dedicar-me a meus livros, pelo simples fato de não desejar felicidade maior nem mais completa nesse mundo.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">E, enquanto me distraio pensando nestas palavras, lembro-me do que dizem as gerações mais antigas. Nem preciso ir muito longe para colher exemplos: basta ouvir minha mãe, que, pelo próprio hábito de ficar calada, a observar, sempre teve muito a dizer, embora prefira sempre a quietude. Conta ela que, na sua infância e adolescência, como não havia televisão, o passatempo de todas as noites, após o jantar, era sentar-se à frente da casa em que morava com os meus avós e, com olhos fixos, atentos e encantados, contemplar as estrelas. Diz ela que é como se naquele tempo houvesse mais dessas formas nebulosas e brilhantes, pois o céu de sua infância, costuma dizer-me, sabendo de minhas intenções de escrevinhador, era tal que palavra alguma lhe faria jus. E me ocorre que os astros, entristecidos pelo descaso hodierno dos homens-deuses, refugiaram-se em outras galáxias, onde talvez ainda haja quem lhes dê atenção. Mas naqueles tempos, fosse inverno ou verão, era hábito passar horas com os olhos no firmamento. Meus bisavós, filhos de imigrantes e que viviam também da agricultura, quando em visita também se juntavam aos observadores do infinito. Sentados em cadeiras de palha, formavam uma plateia silenciosa e reverente, que se sabia testemunha de um espetáculo de beleza sem rival em termos de grandiosidade e que, se fosse instada a descrever o que via, preferiria silenciar a recorrer à inutilidade das palavras, por mais que os vocábulos correspondentes sempre me tenham soado de modo particularmente belo: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">die schoenen Sterne</i>, as belas estrelas. Recordar os dias de trabalho e as noites de descanso e encantamento de meus antepassados me trouxe à lembrança um fragmento imortal que poderia dar testemunho daqueles dias: “A terra respira fundo em repouso e sono. Todos os desejos transformaram-se agora em sonhos. Os homens, fatigados, retornam às casas para encontrar no sono a felicidade perdida e para aprender novamente a juventude”. Ao tomar nota dessas palavras, recordo-me de um poeta que, num conto de Jorge Luis Borges, diz que “o jornalista escreve para o esquecimento e que o desejo dele era escrever para a memória e o tempo”. A ilusão, enquanto dura, parece sempre doce. Amargos são os despertares: saber que não importa se somos poetas, jornalistas ou simples amontoadores de palavras; o fato é que escrevemos todos para o olvido. </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://1.bp.blogspot.com/-sAIenrWNYmk/Tz-iP6E8aDI/AAAAAAAAAIU/Qvc2aeRWd5w/s1600/Van_Gogh_-_Country_road_in_Provence_by_night1890.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://1.bp.blogspot.com/-sAIenrWNYmk/Tz-iP6E8aDI/AAAAAAAAAIU/Qvc2aeRWd5w/s1600/Van_Gogh_-_Country_road_in_Provence_by_night1890.jpg" yda="true" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Lavravam a terra, meus avós, bisavós e várias gerações que os precederam, e, como que seguindo intuitivamente uma receita de humildade prescrita por filósofos, dedicavam as horas da noite à contemplação de um céu que lhes aliviava o cansaço do dia e também da existência, um céu que, a julgar pelo que se diz, não é mais o mesmo. E hoje, ao escrever sobre eles e suas noites, sinto como se ainda há pouco tivesse deixado o cabo da enxada. E, como que temporariamente privado de memória e de passado, componho estas notas desconexas em outro idioma, tão diverso daquele de origem. Munido apenas de palavras, a única coisa de que disponho, manifesto o desejo inútil de que os meus contemporâneos se despojem da sua fantasia de deuses para revestir-se novamente de sua condição original de mortais, e, assim como em um passado não tão remoto, passemos todos a observar o firmamento estrelado. Todos calados e, acima de tudo, pacificados. Porque os astros nos dizem, em seu silencioso fulgor, de nossas limitações, apontando-nos um caminho de humildade e talvez até de virtude. E que, através da simples contemplação por alguns poucos minutos, não nos esqueçamos de quem somos, do que somos e não percamos de vista nossas origens, em algum ponto sempre modestas. Não fosse assim, ninguém teria imigrado. Ao domínio das noites estreladas pertence o poder de mostrar a cada um o que é e não deixar que nenhum ser humano se julgue mais do que isso, um ser que, na eterna noite dos tempos, feitas as contas, sequer terá existido e que, se pensar um pouco no que vê ao erguer os olhos acima da linha do horizonte, verá que todas as dores, assim como as glórias, são passageiras. “O homem é a medida de todas as coisas”, dizia o bom Protágoras. Tudo é uma questão de ponto de vista. Entre todas as questões, importa não esquecer jamais que, entre o céu e a terra, depois de algumas noites, na verdade não muitas, não restarão muitas coisas, e a filosofia será mais vã do que jamais foi algum dia. Para o bem ou para o mal, “para todo o sempre, eternamente... eternamente...”.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Vincent Van Gogh: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Estrada com ciprestes e estrela,</i> 1890</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-91512246836828448662012-02-10T03:52:00.000-08:002012-02-10T04:06:47.126-08:00Dostoiévski na Alemanha<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Existem interrogações que, pelas mais diversas razões, parece-me, ficam relegadas a um segundo plano em nosso pensamento. Entre os motivos pelos quais não nos dedicamos muito a estes assuntos está a impressão enganadora de que as respostas estão entre as mais acessíveis ao nosso conhecimento: um grande engano. Na verdade, em termos de teoria, tais perguntas consistem um mistério diante do qual não canso de me assombrar, por seu caráter esquivo. A rigor, é fato que tais questões estão ao nosso alcance, nos livros de teoria da literatura; contudo, as respostas constituem uma soma de fenômenos que apenas em parte são explicáveis: o que é a literatura? Em que consiste o poder que ela exerce sobre nós a ponto de nos mobilizar de forma tão intensa? Em que consiste o conceito de literariedade? Como pode ser definida nossa relação com os escritores e com um determinado autor em especial? Qual a origem do fascínio dos leitores judeus por um escritor sabidamente antissemita, como Dostoiévski? Essas são algumas das questões suscitadas pela leitura de<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Verão em Baden-Baden, </i>romance de Leonid Tsípkin, escritor russo morto em 1982. As palavras finais do inspirado ensaio de introdução, assinado por Susan Sontag, são no mínimo instigantes: elas nos informam queo leitor emerge do livro “purgado, fortalecido, respirando um pouco mais fundo, agradecido à literatura por aquilo que ela pode abrigar e exemplificar”. Por experiências anteriores relativas a romances com base em vidas de escritores, tendemos a desconfiar. Contudo, o testemunho de Sontag, crítica sempre tão lúcida quanto sincera, tem tudo para parecer acima de qualquer suspeita. E assim, tendo apenas uma vaga ideiasobre o que esperar, mergulhamos na leitura. </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://1.bp.blogspot.com/-J5Acp9y7_xA/TzUDqV1_KOI/AAAAAAAAAH8/ErARTOdUToA/s1600/ver%C3%A3o+em.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; cssfloat: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" sda="true" src="http://1.bp.blogspot.com/-J5Acp9y7_xA/TzUDqV1_KOI/AAAAAAAAAH8/ErARTOdUToA/s1600/ver%C3%A3o+em.jpg" /></a></div><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"></span><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Leitor apaixonado de Dostoiévski, Tsípkin constrói seu romance em torno do grande autor russo e de sua jovem esposa Anna Grigorievna, mais especificamente a partir do ano de 1867, no verão que passam na cidade balnear de Baden-Baden, acompanhando o casal até o ano da morte de Dostoiévski, em 1881. Tornamo-nos testemunhas do drama vivido pelo autor de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Crime e castigo</i> diante de uma força que ele próprio reconhece superior a si mesmo: a roleta; do amor intenso entre o escritor e Anna, além das constantes ameaças da epilepsia. Em um tempo paralelo, um século depois dos episódios envolvendo os Dostoiévski, Tsípkin, em primeira pessoa, nos faz um relato fragmentado, mas extremamente eloquente de sua própria viagem na tentativa de refazer a trajetória de seus dois personagens, numa peregrinação no tempo e no espaço, passando pelas casas em que eles viveram e, por último, à casa onde o grande escritor russo viveu seus últimos anos. É comum, no romance, o narrador privilegiar o ponto de vista de Anna Grigorievna, e é através do seu olhar que observamos os pungentes momentos finais da vida deste que foi, ao lado de Tolstoi e Tchékhov, um dos maiores escritores russos do século XIX e, sem o menor exagero, de toda a literatura.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://4.bp.blogspot.com/-oKUOK6oB4P4/TzUEg-Y76hI/AAAAAAAAAIM/yY8V5QX0HWI/s1600/dostoi%C3%A9vski,+1872.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" sda="true" src="http://4.bp.blogspot.com/-oKUOK6oB4P4/TzUEg-Y76hI/AAAAAAAAAIM/yY8V5QX0HWI/s1600/dostoi%C3%A9vski,+1872.jpg" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Longe de nos fornecer respostas prontas ou fórmulas para as interrogações sugeridas por sua obra, Tsípkin oferece-nos algo melhor do que isso: amplia os limites de nossa visão através de um dos melhores exemplos do que conhecemos por literatura, mostrando, a partir de seu próprio modo de agir, a maneira como somos movidos a buscar respostas de forma ininterrupta, de obra em obra, círculo em que de repente nos deparamos com uma obra que parece ter como base nossa própria ânsia de conhecimento, de sentido e de beleza através de uma das formas mais elevadas de arte. Ao colocar <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Verão em Baden-Baden</i> “entre as realizações mais belas, arrebatadoras e originais de um século de ficção e paraficção”, Sontag, em seu entusiasmo, está sendo fiel à sua própria impressão, que, terminada a leitura, se torna também a nossa. É realmente difícil ficar impassível em relação aos fatos narrados, à fragilidade dos personagens, que, por sua vez, refletem nossas próprias limitações, por mais que estas pareçam às vezes enganadoramente contornáveis. Eis aí uma obra para todos os públicos, não apenas amantes de Dostoiévski ou de literatura russa.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"> Dostoiévski: retrato a óleo de 1872</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"></div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-85172821729503703842012-02-03T02:24:00.000-08:002012-02-03T02:31:58.341-08:00Anacronismos: a noção de casa em tempos líquido-modernos<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">É frequente, em nossas leituras, depararmo-nos com filósofos que nos exortam a sermos tão simples quanto possível, contentando-nos com pouco e tendo hábitos com base em virtudes como a modéstia e a humildade. Tais pensadores defendem a ideia de que para viver não precisamos mais do que do mínimo – ou, ao contrário do que normalmente acreditamos, que temos necessidade mesmo de muito menos do que estamos habituados a crer. A ordem do dia, segundo suas palavras, baseia-se no desapego a bens e objetos materiais, bem como a pessoas: seria uma maneira de sofrer menos com as perdas, dizem-nos, no que não estão errados. Difícil é colocar esses ensinamentos em prática. Mesmo que essas assertivas se percam nos milênios, ainda há quem as defenda hoje. Quanto a mim, até pouco tempo sempre tive a impressão de realmente precisar de muito pouco no cotidiano. Porém, um exame rápido, porém sincero, foi suficiente para me mostrar o quanto estava enganado, evidenciando que essa minha suposta independência em relação ao material não passava mesmo disso: uma impressão. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Há dias atrás, folheando as páginas de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Vida líquida,</i> de Zygmunt Bauman, deparei-me com inúmeras passagens sublinhadas a lápis. Como muitos livros já se passaram depois da leitura dessa obra, a maior parte dos trechos me soou com um ar de novidade – lembrando-me mais uma vez que o aprendizado se dá mesmo através da releitura atenta, o que por si só justifica o viver cercado de livros e de partituras, algo que, por sua vez, já de início coloca em xeque a ideia de tanta simplicidade. Em certo ponto, o sociólogo polonês define as características das pessoas possuidoras das “chances mais amplas de vitória” nisso que ele chama de mundo líquido-moderno: “Pessoas que se consideram em casa em muitos lugares, mas em nenhum deles em particular. Tão leves, lépidas e voláteis quanto o comércio e as finanças cada vez mais globais e extraterritoriais que as assistiram no parto e que sustentam sua existência de nômades”. Não posso deixar de me espantar com o que para mim se assemelha a um paradoxo: pergunto-me, a propósito, que noção de vitória é essa que exige o preço de considerar-se em casa em tantos lugares e ao mesmo tempo em nenhum, o que a meus ouvidos soa antes de tudo como desconforto. E, entre desavisado e despreocupado , mas nem um pouco surpreso, descubro o quanto estou alheio ao que se considera válido nesse tempo em que se deve aprender a “andar sobre areia movediça”, tema do sexto capítulo da referida obra. A essa descoberta acrescenta-se a constatação de algo que eu já sabia, mas que a vida nunca cansa de me recordar: excetuadas certas vantagens da modernidade, sinto-me em casa mesmo é no anacronismo, ou, mais especificamente, na conservação de hábitos hoje tidos como ultrapassados. E eu, que me considerava até certo ponto um sujeito simples, percebo-me agora, para meu próprio espanto, cheio de manias – não sei como considerar de outra maneira o culto a certos usos e valores em vários aspectos extintos para muitos de meus concidadãos. </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://3.bp.blogspot.com/-zkjYQckxVg4/TyuxhY2DDEI/AAAAAAAAAHE/yIDuscm2n3k/s1600/Friedrich.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="240" sda="true" src="http://3.bp.blogspot.com/-zkjYQckxVg4/TyuxhY2DDEI/AAAAAAAAAHE/yIDuscm2n3k/s320/Friedrich.jpg" width="320" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Muitos desses apegos têm origem na valorização da cultura de todas as épocas e nos hábitos da leitura, da escrita e da prática da música. Creio não se tratar de culto à matéria propriamente dita, uma vez que o que me mobiliza é mais o conteúdo do que o seu suporte, embora um não seja nada sem o outro. Em grande parte, esse apreço pode ser definido como uma reverência à herança de meus antepassados. Por mais que a nossa noção de casa como lar vá sofrendo alterações mais que naturais com o passar do tempo, a ideia, no cerne, permanece inalterada. Como descendente de alemães, o amor à família e à história dos ancestrais, bem como ao seu legado, é mais que essencial, diria quase visceral. Creio que foi Nathaniel Hawthorne, na introdução ao seu romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A letra escarlate,</i> quem melhor definiu o sentimento de pertencimento que nos liga a algum lugar específico: “Essa longa ligação de uma família com o lugar de seu nascimento e sepultamento cria um parentesco entre o ser humano e a localidade que independe, em grande medida, de algum atrativo do cenário ou das circunstâncias morais que cercam o homem. Não se trata de amor, mas de instinto”. Pouco importa o fato de meus antepassados estarem sepultados a muitos quilômetros da cidade onde vivo e, retrocedendo alguns séculos no tempo, no distante povoado de Halsenbach, Alemanha. Desse modo, nossa casa acaba se tornando indissociável àquilo a que costumamos chamar, cientes de nossa pequenez, nossa história, e a concepção de casa, mesmo não perdendo seu aspecto tão centrado no caráter espacial, mostra-nos algo em que antes não acreditávamos: que nosso <i style="mso-bidi-font-style: normal;">lar, </i>apesar de tudo, pode sim mudar de endereço. Quanto à saudade, ou nostalgia, creio tratar-se de um sentimento que, de uma forma ou de outra, ocupa um lugar à parte e constante na trajetória de cada um. Se ele está sempre presente, talvez seja a confirmação de que lar é antes de tudo lealdade à nossa trajetória. E se a rigor nossas <i style="mso-bidi-font-style: normal;">raízes</i> estão a muitos quilômetros do local onde agora vivemos, descobrimos que, nessa analogia com o reino vegetal, acabamos por desenvolver novos laços que, em termos de desapego, se não ocupam o lugar dos anteriores no espaço, esses novos laços afetivos nos mostram, todavia, que é muito mais fácil do que em princípio acreditávamos desenvolver um sentimento de vínculo com o que há anos atrás não passava de um território estranho. E através desse novo sentimento percebemos que, de certa forma, as inclinações de nossos afetos não deixam de ser, até certo ponto, independentes. De uma maneira distinta do que antes supúnhamos, mas, em todo caso, desapegados – por mais que me doa escrever isso.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">À medida que avançamos nos anos, aprendemos também que sentir-se em casa diz respeito, em grande medida, à memória, esta tida aqui como a soma de uma vivência feita de trabalho, estudo, relações de amizade e vínculos que apenas a morte se revela capaz de romper. Em uma escala que em momento algum podemos ignorar, somos constituídos também de momentos difíceis e de perdas. Se há alguma verdade na afirmação de que é o ontem que faz de nós o que hoje somos, não há motivo melhor para reservar, em nossa vida, um lugar de grande honra para a memória, diga ela respeito a nós mesmos, seja ela referente ao nome de quem já nos deixou ou mesmo à cultura. E, por esse motivo, mesmo com os pés no presente e pensamento no futuro, nossa nova casa se torna também lugar de devoção. Nesse sentido, convém lembrar uma frase da romancista Marguerite Yourcenar, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Memórias de Adriano</i>: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas”. São palavras que, por virem ao encontro de algo que já vivenciamos, trazem um certo conforto, daquela espécie de confirmação por escrito de uma verdade que já intuíamos, mas para cuja expressão não encontramos as palavras. Essa frase corrobora também o que já foi dito acima, mas de uma maneira diferente: os lugares de nascimento não se restringem a um só, e eles constituem algo impossível de quantificar. Isso depende acima de tudo das vivências que vamos acumulando ao longo do tempo e, principalmente, do referido olhar sobre nós mesmos. E, se observarmos com um pouco mais de atenção, veremos que a identificação de casa com memória é mais profunda do que inicialmente suspeitamos, e transcende em muito a contingência da matéria. Não se trata de um lugar, tampouco de um momento, mas de um estado de alma, através do qual percebemos algo semelhante a uma completude, diria mesmo plenitude: é quando percebemos que nossa história, somada aos conteúdos que assimilamos ao longo da vida, seja através dos livros ou de experiências vivenciadas e de convivência com amigos e familiares, se torna uma coisa só, sem lugar definido que não seja em nós mesmos, em nossa história, pensamentos, crenças e, mais do que tudo, em nossas recordações. Algo como uma fusão, diria, da qual poucas vezes temos uma noção mais exata. Esse aspecto me traz à mente diversas imagens; como exemplos, menciono a torre da casa em Tübingen onde Hölderlin viveu seus últimos 36 anos de vida, privado da razão, e a lírica contemplação da natureza nas pinturas de Caspar David Friedrich.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://4.bp.blogspot.com/-ziENcuXEwdk/Tyux39m4omI/AAAAAAAAAHM/RzimtkF5fXo/s1600/torre+de+H%C3%B6lderlin.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" sda="true" src="http://4.bp.blogspot.com/-ziENcuXEwdk/Tyux39m4omI/AAAAAAAAAHM/RzimtkF5fXo/s1600/torre+de+H%C3%B6lderlin.jpg" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Mas voltemos por um instante à lição filosófica do início deste texto. Por mais que, prestando ouvidos aos filósofos, façamos do desapego uma religião ou uma questão de honra, chegará um momento em que nos veremos na impossibilidade de abrir mão de uma coisa em especial. Ignoro se isso consiste em uma nova fusão, transubstanciação ou transcendência que seja, da qual não estaremos conscientes, e que, quando ocorrer, mesmo que seja a confirmação dos conteúdos já assimilados, já não fará mesmo diferença alguma. Desse momento em diante, não restarão mais que palavras e terra, elementos que sempre me pareceram irmãos, ou terra e silêncio, o que, em última análise, revela-se a mesma coisa. Existe um poema de Friedrich Leopold Graf zu Stolberg, escrito no auge daquele romantismo lírico e contemplativo dos alemães, cujo final gostaria de relembrar aqui: “A Mãe Terra”: “Ela nos acolhe, pequenos e grandes, a Mãe Terra, em seu regaço; se a olhássemos em sua face, não temeríamos jamais o seu abraço”.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Caspar David Friedrich<em>: A walk at dusk</em>, 1835 </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Casa da torre de Hölderlin, Tübingen</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-3307724055359812142012-01-26T23:39:00.000-08:002012-01-27T00:04:42.381-08:00A virgem e o menino: afastamentos e aproximações<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://4.bp.blogspot.com/-COjysdba8Sg/TyJSISWXdRI/AAAAAAAAAG0/SXSNrtOyZK0/s1600/a-virgem-o-menino-jesus-e-santa-ana.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" gda="true" height="320" src="http://4.bp.blogspot.com/-COjysdba8Sg/TyJSISWXdRI/AAAAAAAAAG0/SXSNrtOyZK0/s320/a-virgem-o-menino-jesus-e-santa-ana.jpg" width="207" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Entre tantos grandes momentos do filme <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Elizabeth,</i> de Shekhar Kapur, de 1998, existe uma cena em particular cuja riqueza nunca deixou de me causar admiração. É perto do final, e, ao lado do seu conselheiro e chefe de espionagem Francis Walsingham, depois de intensas lutas contra o catolicismo, objetivando tornar o protestantismo a religião oficial da Inglaterra, a rainha tem diante de si uma imagem de Maria. Sua dificuldade consiste em entender o que tantos devotos viram nessa figura, que os mobilizou a ponto de não se importarem em perder a vida, desde que seu direito à fé católica fosse preservado. A direção da resposta é apontada por Walsingham: certamente os que morreram experimentaram nas madonas uma espécie de consolo que não encontraram em outra parte. Na cena seguinte, a última do filme, a corte está reunida e entra Elizabeth. Transfigurada, entre desumanizada e deificada, ela caminha por entre os presentes, que se ajoelham em profunda reverência. Antes de ocupar o trono, ela se dirige a um dos conselheiros e diz: “Veja; agora eu sou uma virgem”. Percebe-se nessa veneração e também na rainha algo próprio das monarquias absolutistas: a visão do soberano como uma criatura próxima à divindade, sentimento comum no final da Idade Média; uma espécie de sentimento de segurança que a Igreja, em crise depois da Reforma, começava a ter dificuldades em oferecer.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Interessante é observar que, passados tantos anos, a Virgem, como é normalmente chamada pelos católicos, depois de ser por séculos uma das principais fontes de inspiração para pintores de várias nacionalidades, volta a ser tema de discussões que, como seria de se esperar, não conduzem a lugar algum e que não oferecem qualquer possibilidade de conciliação, mesmo porque não há a mínima boa vontade entre os contendores. De um lado, os evangélicos, que veem na adoração a essas imagens uma transgressão aos mandamentos cristãos: a idolatria, ou seja, o culto a falsos ídolos. Se no século XVI, nos anos que se seguiram à Reforma, os iconoclastas literalmente destruíam imagens, hoje os seus herdeiros não perdem oportunidade de macular de todas as formas possíveis aquela que para os católicos não é menos que a mãe do próprio Deus, na sua forma humana. Não é exagero algum – na verdade, é dizer o mínimo - afirmar que na visão dos evangélicos Maria ocupa um lugar inferior ao de Maria Madalena, fazendo parte das hostes inimigas a serem combatidas e vencidas, ao custo de muita difamação e oração. Talvez não tivessem em relação a ela tantas reservas se não vissem eles próprios o poder de apelo de uma madona de Leonardo da Vinci ou de Giotto. Para os católicos, ela continua sendo o que sempre foi em sua tradição: a mulher escolhida por Deus para dar à luz o Salvador, por meio de uma concepção sem pecado, e que acompanhou o filho até o seu trágico final.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">A mim não interessa saber quem está com a razão, se é que alguém a possui. Meu objetivo é observar, mesmo que rapidamente, o que essas imagens possuem de tão eloquente a ponto de causarem reações tão antagônicas como a adoração por parte de uns e, do ponto de vista dos evangélicos, promessas de fogo eterno a quem as cultua. O que sei é que as artes visuais, como a pintura e a escultura, seriam hoje indizivelmente mais pobres se não fosse essa forma de evangelização, ou propaganda, para falar mais honestamente. Em seu livro <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Religião para ateus </i>(Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011), o filósofo e escritor Alain de Botton examina diversos aspectos que considera válidos nas principais religiões, elementos que, fora de seu âmbito de origem, são inexistentes, no que, por vários motivos, os ateus saem empobrecidos. Entre as proposições de De Botton, está a valorização da arte. Nesse sentido, e como prova material, contundente, de que as religiões mais afastam as pessoas do que propriamente as aproximam, o que era seu objetivo inicial, estão as estátuas em relevo da catedral de São Martinho, em Utrecht, destruídas por iconoclastas no século XVI. Somos levados a crer que, caso fossem inofensivas ou mesmo pouco expressivas, não teriam sido destruídas. Para ilustrar o poder de tais imagens, o autor evoca uma tradição que vigorou em Roma entre os séculos XVI e XIX, acerca de uma irmandade que se informava a respeito dos condenados a caminho da forca para, momentos antes de sua execução, colocar-lhes diante dos olhos pequenas tábuas ilustrando geralmente a crucificação de Jesus ou a Virgem com o menino, na tentativa de proporcionar-lhes algum alívio em suas horas derradeiras. Segundo De Botton, “é difícil conceber um exemplo mais extremo de crença na capacidade redentora das imagens, e, contudo, a irmandade estava apenas realizando uma missão com a qual a arte cristã sempre teve um compromisso: colocar diante de nós exemplos das mais importantes ideias nas ocasiões difíceis, a fim de nos ajudar a viver e a morrer”. </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://4.bp.blogspot.com/-k0OvMJ2r2nA/TyJShpqYpBI/AAAAAAAAAG8/zzUA3s8TFqk/s1600/280px-UtrechtIconoclasm.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" gda="true" height="320" src="http://4.bp.blogspot.com/-k0OvMJ2r2nA/TyJShpqYpBI/AAAAAAAAAG8/zzUA3s8TFqk/s320/280px-UtrechtIconoclasm.jpg" width="240" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">(Há tempos atrás, refletindo a respeito do fanatismo religioso, cheguei à conclusão de que o tamanho da fé é proporcional à extensão do desespero, mas sei que, sobre esse assunto, qualquer certeza será sempre tão suspeita quanto as incertezas, dependendo do lado em que se está. Sei apenas que é difícil permanecer neutro em relação ao tema quando se observa o quanto a crença se apodera e estabelece sua hegemonia na mente daqueles que creem, de forma a torná-los muitas vezes cegos mesmo para os aspectos mais básicos da vida e não deixando espaço para mais nada. É curioso observar também outro aspecto: se para os cristãos o temor a Deus é o princípio da sabedoria, para os filósofos dos primórdios do cristianismo a sapiência estaria justamente em abrir mão das ilusões de imortalidade e fazer as pazes com o que, segundo sua crença, temos de mais irreversível: a finitude <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>[justamente o que, em minha pequena opinião, faz de nós e de nossas vidas algo glorioso]. Nisso residiria, segundo os cristãos, o “orgulho” próprio dos pensadores. Mas já começo a fugir ao assunto inicialmente proposto).</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Em seu livro, Alain de Botton defende a ideia de que, acima do conteúdo veiculado pela arte religiosa, mais importante é saber o que ela diz de nossas necessidades humanamente mais básicas, valores geralmente ignorados como indignos pela filosofia, mas de cuja expressão, de uma forma ou de outra, depende nosso bem-estar e nossa paz de espírito, mesmo que não sejamos seguidores de nenhuma religião. Pode-se perguntar, a respeito disso, o que obras como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La pietà </i>ou <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A virgem, o menino e Santa Ana</i> nos dizem para além de qualquer crença, e descobrimos que nelas há uma expressividade que as torna únicas e de valor inestimável não para a arte em si, mas no que elas são capazes de nos dizer, independentemente de seu significado religioso. Basta para isso saber admirá-las. Conforme o filósofo, tudo é uma questão de ponto de vista. Entre poucas obras de arte, elas estão entre as poucas ainda capazes de falar à criança que existe eternamente em nós, procurando insuflar-lhe algum alento em momentos dolorosos. No caso em questão, trata-se ainda de lições que, em sua maior parte, já assimilamos, mas que, por uma questão de distração, vivemos esquecendo. Eis aí a função de pinturas e esculturas: não nos deixar esquecer de que causas como o amor e a fraternidade estão sempre – ou deveriam estar – no centro da humanidade, e não na periferia, para onde as relegamos, distraídos muitas vezes pelas causas mais nobres e por nossas melhores intenções.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Leonardo da Vinci: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A virgem, o menino e Santa Ana</i></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Relevos da Catedral de São Martinho, Utrecht</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
</div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-51491775886395862062012-01-20T07:51:00.000-08:002012-01-20T19:55:29.514-08:00Linhas de chegada<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Geralmente, ao iniciar um texto, sinto um certo receio que, mesmo sendo passageiro, incomoda um pouco na sua brevidade. Hoje não é diferente. Coisa que, desnecessário é dizê-lo, não mais me surpreende. O que causa surpresa é o ineditismo, o imprevisto, e não a rotina, constante, leal em sua previsibilidade. O temor de hoje em relação ao tema escolhido não poderia ser mais eloquente. Pois, quando me proponho escrever sobre nossas buscas de todo dia – pelo que quer que seja, entre nossas metas particulares, intransferíveis -, percebo agora a incerteza, maior em relação a outros temas, quanto a saber encontrar as palavras adequadas, além de um sentimento que é vago apenas enquanto os objetos de minha procura permanecem, ao menos por enquanto, nesse início de texto, indefinidos. É hábito dizer que, quando se persegue algum objetivo, convém não colocá-lo na linha do horizonte, posto que, à medida que avançamos, a linha de chegada, em consequência, também se retrai à nossa frente. A respeito do caminho que percorremos para nos tornarmos – e nos mantermos - cidadãos da pós-modernidade, o sociólogo Zygmunt Bauman, em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A arte da vida,</i> expõe com singular clareza essa questão: “É como se não existisse um destino final pré-ordenado, uma linha de chegada predeterminada ao longo das estradas que percorremos, incluindo a que supostamente conduz aos ‘novos seres humanos’”. Por seu caráter material, trata-se de uma espécie de cidadania antes adquirida do que conquistada, e podemos usar como exemplo desse fato qualquer produto do setor eletroeletrônico e sua constante substituição por aparelhos novos, não necessariamente aperfeiçoados e portanto mais úteis, mas, por assim dizer, mais modernos. O que alcançamos hoje amanhã já estará ultrapassado, não esquecendo que, numa sociedade líquido-consumista, seres humanos também passam a ser considerados como similares a qualquer objeto de consumo e, por extensão, descartáveis no momento em que deixam de acompanhar o jogo da cadeira: ninguém quer deixar de participar da brincadeira que se tornou, nos últimos anos, a “construção” da condição de indivíduo. </div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Praticamente em todas as épocas, a literatura espelhou fielmente essa busca sem fim. Como exemplo, podemos mencionar um trecho bíblico de surpreendente pessimismo, em se tratando de um livro sagrado: “Vaidade das vaidades”, diz o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eclesiastes</i>, “vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao seu lugar; em seguida se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos (...). O que foi é e será; o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol”. Muitos séculos depois, surgiria um exemplo clássico da insatisfação: Madame Bovary, a personagem do memorável romance de Flaubert. Emma, que na juventude nutrira sua imaginação com romances açucarados, acaba por desenvolver, a partir deles, uma ideia equivocada da vida e da sociedade, e sua tentativa de escalada social termina malograda. Trata-se da típica personagem que valoriza tudo que não possui e não valoriza nada do que tem. Quando sabe que a casa em que vive seria levada a hasta pública, em função de seus gastos desordenados visando ao luxo, nem sequer tomando conhecimento do marido e da filha, a personagem toma arsênico e acaba morrendo sem perceber a mais básica e, na aparência, mais irremediável das verdades: o ser humano é insaciável por natureza. Tal como Messalina, poderia revelar sua aceitação do trágico final: “Eu morro, mas morro insaciada”. Essa obra, em posição de privilegiado destaque na história da literatura, deixou como parte de sua herança uma palavra que tenta definir essa demanda ambiciosa e desmedida, levada ao grau extremo de histeria: bovarismo, coisa que, em nossos dias, tenho a impressão de que se tornou regra, em vez de exceção. Gostaria imensamente de estar equivocado.</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Quanto a mim, não me é difícil expor, em linhas gerais, em que constituem minhas expectativas em médio prazo, ao menos enquanto as palavras me forem fiéis. Poderia começar com o desejo da continuidade de algo em que me considero um cidadão plenamente realizado – embora nesse adjetivo exista algo de imobilidade que não se aplica a mim: hábitos tais como a dedicação ao trabalho diário, à leitura, à música e aos ensaios, à escrita, aos amigos, às viagens, à aquisição constante de novos conhecimentos e experiências. E, a partir disso, colaborar de algum modo e da melhor maneira possível, dentro de minhas limitações, para o aprimoramento da sociedade ou, ao menos, das poucas pessoas de um círculo mais restrito, o que se pode considerar obrigação básica não apenas para quem estudou em instituição federal, mas para qualquer um que almeje o grau de cidadão. Isso inclui também, em outras palavras, aceitar quem não aceita nossas diferenças, nossas limitações e as muitas imperfeições, que, por maiores que sejam nossos esforços, sempre existirão. </div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">A questão exposta acima envolve mais uma vez tudo que diz respeito à formação do que se chama identidade. Acerca desse conceito, Bauman formula algumas indagações muito pertinentes: “Quem sou eu? Qual o meu lugar entre os outros – entre aqueles que conheço, entre aqueles de que tenho informação e aqueles de que até agora nunca ouvi falar? Quais são as ameaças que tornam inseguro este meu lugar? Quem está por trás das ameaças? Que tipo de medidas defensivas deveria eu tomar a fim de desabilitar essas pessoas e assim me colocar a salvo de tais ameaças?”. Creio que a resposta talvez seja muito mais simples do que pareça, e a questão pode ser resumida de maneira até muito simples: desde que tenhamos consciência de estarmos desempenhando da melhor maneira possível os papéis mais básicos que a sociedade e a vida nos legaram, estando em dia com nossas obrigações, o que basta é a autoaceitação e o pouco de paz de consciência que logramos alcançar. Nesse caso, não prevalece a opinião de Sartre, para quem o inferno são os outros: “L’enfer, c’est les autres”. Antes pelo contrário: esse universo dos outros constitui o início de uma série de deveres. </div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://3.bp.blogspot.com/-2j9e3Cz-J2w/TxmLLHxDVbI/AAAAAAAAAGs/v3neX9IVeEA/s1600/s%25C3%25A1ndor+m%25C3%25A1rai.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" nfa="true" src="http://3.bp.blogspot.com/-2j9e3Cz-J2w/TxmLLHxDVbI/AAAAAAAAAGs/v3neX9IVeEA/s1600/s%25C3%25A1ndor+m%25C3%25A1rai.jpg" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Este texto, mesmo que construído à base de digressões casuais, não estaria completo se não houvesse ainda um outro ponto, ao qual, se não fizesse alusão, não haveria a necessária sinceridade do autor para consigo mesmo, alicerce de qualquer progresso, por pequeno que seja. Esse viés me é sugerido por Sándor Márai, em seu romance <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Libertação.</i> A protagonista, Erzsébet, vive na Budapeste da década de 1940, nos sangrentos meses da invasão de tropas inimigas. Dela dependem seu pai, cientista de renome que, por motivos políticos, é perseguido pela Gestapo, além de diversos outros refugiados. Enquanto procura em desespero por um novo abrigo, ela caminha pelas ruas da cidade sitiada: “Sob a luz da lua, nas ruas escuras, por toda parte havia canhões, caminhões de carga, soldados vagavam à espera. Esperavam por alguma coisa. Esperavam pelo cerco, por certos acontecimentos que dariam sentido a seu preparo e a sua existência. (...) Os grupos estavam taciturnos, sombrios. Todos esperavam numa prontidão impotente, os soldados, os canhões, os tanques, as batalhas, as pessoas, nos porões e nas casas às escuras, a cidade inteira; porque alguma coisa tinha se realizado, chegara a hora”. O trecho não poderia ser mais claro e sintético em relação tanto ao papel exercido por Erszébet quanto ao ofício dos soldados. Se por um lado dela dependem a vida e a salvação dos refugiados, os soldados, ansiosos, esperam pela hora de desempenhar as funções para as quais se prepararam durante anos. Em comum, a protagonista e os soldados têm a característica de esperar pelo que trará um maior significado às suas existências. Ela, salvando; os soldados, por sua vez, capturando e matando. Mesmo que não vivamos em tempo de guerra, o exemplo não deixa de ser ilustrativo. Se não é óbvio, ao menos deveria ser claro que todos esperam por momentos em que suas vidas passem não apenas a ter um sentido fundamental para si mesmas, mas, em grau não menos elevado, para outras pessoas. Creio mesmo que seja muito mais do que isso. É algo que não vem de uma hora para outra, mas um pouco por dia, através de algo que fazemos, uma palavra que dizemos, ouvimos ou escrevemos, uma opinião expressada, um livro lido, uma viagem... Por mais impotentes que sejamos. É o momento em que sonhos e aspirações pessoais dividem seu lugar com uma obrigação moral, ética, para com nossos semelhantes, sem o que nada, absolutamente nada, teria sentido ou razão de ser. Contudo, para o bem ou para o mal, isso é apenas uma opinião, e não exatamente a realidade. </div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Evidentemente, quando essas metas forem alcançadas, outras surgirão em seu lugar. Creio que seja óbvio: o momento da morte de um desejo é o instante exato em que o satisfazemos. Todavia, conforme já expus acima, um dos “tesouros” encontrados na caixa de Pandora é a insaciabilidade de nossos desejos e ambições. Mas isso é detalhe. O importante é jamais, em momento algum, suspender a busca. Se nada desejamos neste mundo, já morremos para os outros e, sobretudo, para nós mesmos. (E tenho a impressão de que o mundo está repleto de seres que já desistiram, no sentido que sua ausência de aspirações nos permite observar: pessoas, principalmente as mais jovens, que não desejam coisa alguma e para quem tudo tanto faz). Há também o entusiasmo, elemento indispensável para que qualquer vida seja não apenas interessante, mas vida em plenitude. Conforme a frase de Balzac, “o homem começa a morrer quando perde o entusiasmo”. E, no pouco que me é dado ver, creio que o romancista não poderia estar mais certo. A propósito, em grego, entusiasmo tem um significado muito peculiar: “estar possuído por um deus”.</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Uma voz em surdina me diz que estou longe, muito longe, de ter esgotado o assunto, em suas inúmeras, talvez infinitas possibilidades. Mas estaria sendo insincero se afirmasse saber o que terei omitido. Mas deixo para pensar nisso amanhã, talvez. Por hoje, chega. E agora, para encerrar, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Clair de Lune.</i></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;">Fotografia: Sándor Márai</div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4900429714013252118.post-64522294048141765522012-01-13T02:56:00.000-08:002012-01-13T02:56:21.333-08:00As personas e a questão do sentido<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Há muito tempo o assunto já se tornou lugar-comum, mas nem por isso perdeu o interesse e a importância: de todas as questões debatidas na antropologia, uma das mais instigantes continua sendo a maneira de diferenciar o homem das demais espécies. Diversas são as formas de ilustrar a peculiaridade dos humanos: de animal que ri, espécie perfectível segundo Rousseau, e no entanto o único capaz de planejar a morte de outros de sua espécie, até a tradicional caracterização do animal racional, essas definições, através de suas diferenças e na inexistência de consenso, acabam talvez dizendo mais de quem as defende do que da espécie humana em si. Particularmente, entre as tantas possibilidades, minha preferência recai sobre algumas que me parecem mais lúcidas e que não deixam margem para erros, como ilusões ou esperanças. Entre tais modos de ver, me parece especialmente digno de crédito o que distingue o homem como o único animal consciente da própria existência, bem como de sua finitude, ou, em outras palavras, do caráter inevitável do fim. Igualmente valiosa é a denominação segundo a qual o ser humano se sobressai por se sentir impelido a procurar sentido em tudo que o cerca e em tudo que vive, coisa que em nada difere da atribuição propriamente dita de sentido à vida e ao seu papel de criatura no mundo. Já se disse inclusive que o “sentido é a nossa droga pesada”, sentença que lembra outras, em especial a identificação de religião como ópio do povo. Seria talvez equivocado dizer que tal droga seja nociva no sentido mais imediato. Contudo, argumenta-se, o hábito humano de procurar significado em tudo que vivencia acaba por afastá-lo da realidade última da vida e do mundo, que, para muitos pensadores, é o de não ter sentido algum. De certa maneira, somos como crianças grandes a usarem <i style="mso-bidi-font-style: normal;">personas,</i> isto é, máscaras que nos especializamos em fabricar e aperfeiçoar ao longo de nossa existência, e a que muitos chamam <i style="mso-bidi-font-style: normal;">identidade.</i></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Creio não ser o único a ver na infância uma gama quase infindável de possibilidades de vivência, isto no sentido de experiências imediatas, permitidas pela maior flexibilidade de trânsito entre os universos da ficção e da realidade. Um bom exemplo é viver pela manhã o papel do menino comportado que não falta à aula e que, na hora da chamada, responde ao ouvir a pronúncia de um nome particular, cuja função é também integrá-lo no seio de uma família semelhante a tantas outras e, ao mesmo tempo, única. O desempenho desse papel no turno da manhã em nada impede que à tarde o mesmo menino protagonize as mais fantásticas aventuras, já atendendo pelo nome dos heróis de suas histórias prediletas, não raro possuidores de peculiares superpoderes. Sendo a imaginação fértil, não há maiores problemas em não dispor de uma caverna nas cercanias para enfrentar os perigos representados por este espaço em especial, como o ogro monstruoso, o dragão cuspidor de fogo ou mesmo uma das tantas bruxas a povoarem os pesadelos típicos desse período da vida, com ou sem vassoura voadora. Nessas brincadeiras perdidas em remotas tardes de uma cidade que existe apenas em minha memória, preferia quase sempre brincar sozinho, por uma razão muito simples: a presença de meninos mais crescidos muitas vezes colocava em dúvida o que, para o bom andamento da brincadeira, não podia ser questionado: a veracidade, mesmo que momentânea, de nossos papéis. Brincando entre dois, sempre chegava mais cedo o momento que eu buscava ao máximo retardar: a hora de, terminada a brincadeira, retirar as máscaras e voltar a ser o que éramos pela manhã e o que voltaríamos a ser à noite, meninos obedientes atendendo aos apelos das mães que, no limiar entre o fim da tarde e o início de noite, nos chamavam para jantar. Cedo ou tarde, era necessário dar ouvidos às vozes desestabilizadoras e, por bem ou por mal, voltar à realidade.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Passadas décadas, é impossível deixar de comparar tais brincadeiras aos aspectos mais mecânicos da sociedade, bem como à artificialidade tantas vezes cega com que se busca seguir os mais diversos costumes ou tradições, esses tendo, entre tantos objetivos propalados, a função de verificar se todos os membros da comunidade estão cumprindo seus papéis de acordo com o esperado de cada um. Que todos precisamos de ficção, em pequenas ou grandes doses, dependendo do caso, é indiscutível. A grande diferença entre o modo de vivê-las reside no fato de alguns indivíduos saberem do caráter fictício mesmo da realidade mais próxima, enquanto outros entregam-se de corpo e alma ao que acreditam ser verdades absolutas. Para que essa empreitada seja efetiva, torna-se necessária a adesão de todos, portando suas <i style="mso-bidi-font-style: normal;">personas</i>, que, na vida em sociedade, ganham outro nome, a saber, individualidade. Percebe-se, a partir da desenvoltura com que cada um usa sua máscara, se a lição do faz-de-conta da infância foi bem assimilada. A diferença está nas formas de ficção: os sentidos do mundo dos adultos, muitas vezes mantidos à força da exclusão de quem questiona, são mais elaborados, mais resistentes aos ventos e às vozes contrárias. Mesmo os filósofos que dedicaram suas vidas à desconstrução do sentido foram, em muitos casos, exemplos clássicos de personagem com função bem estabelecida.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="http://1.bp.blogspot.com/-rBNC9qWVGcA/TxAL6eGxd8I/AAAAAAAAAGY/Y1WXv04e7_8/s1600/Nietzsche+em+1882.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" kba="true" src="http://1.bp.blogspot.com/-rBNC9qWVGcA/TxAL6eGxd8I/AAAAAAAAAGY/Y1WXv04e7_8/s1600/Nietzsche+em+1882.jpg" /></a></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Existem diversos exemplos de momentos em que os papéis se confundem e o portador da máscara se vê de maneira imprevista no papel de desconstrutor, enquanto este assume como que acidentalmente os preceitos que tanto fez para desmentir. Talvez eu esteja equivocado, mas creio que parte da essência mais pura do ser humano, da mais legítima, talvez se encontre mesmo no limiar dessa inversão entre uma postura e outra, na dúvida que às vezes se instaura, instante que pode não durar mais que alguns poucos minutos, ou, às vezes, durar a vida inteira. Em todo caso, creio que já disse o bastante – ao menos é o que minha impressão diz; mais exatamente, a intuição de que, em alguns momentos, mais vale guardar a sinceridade para nosso próprio – e econômico – uso, lição cujo aprendizado me é especialmente difícil. Mas há uma imagem que me vem à mente e que gostaria de deixar para o leitor. Trata-se de um momento da vida de Friedrich Nietzsche: em Turim, no ano de 1889, o filósofo, que não via com bons olhos o sentimento da piedade, no sentido cristão da palavra – da piedade de um ser humano por outro -, deparou-se com um homem espancando brutalmente seu cavalo. Em lágrimas que lhe corriam abundantes por sobre a face, abraçou a cabeça do cavalo e beijou-lhe inúmeras vezes o focinho. Pouco tempo depois, Nietzsche foi levado a um sanatório, primeiro na Basileia, depois em Weimar, onde veio a falecer em agosto de 1900.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Curioso, acreditei, na minha ingenuidade, que através da leitura de algumas de suas obras iria encontrar a origem desse desequilíbrio. Acerca dessa interrogação, permaneço na dúvida até hoje. Mas, de certa forma, encontrei o que buscava: algo muito além de um pensamento apenas “humano, demasiado humano”. Seja como for, vale lembrar as palavras de Emil Cioran: “Um livro que, após haver demolido tudo, não se destrói a si mesmo, exasperou-nos em vão”. A pergunta que fica é o que o próprio Nietzsche teria pensado dessa frase; talvez dissesse que, quando alguém se exaspera, seja por qual motivo for, nunca é em vão, e sim por uma questão vital para a conservação da lucidez.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Nietzsche em 1882</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 10pt; text-align: justify;"><br />
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</div>Luciano Mallmannhttp://www.blogger.com/profile/12504316457945574262noreply@blogger.com2