sábado, 18 de fevereiro de 2012

Lição ancestral de humildade

Não importa o que se diga nem quem o diga, mas o fato é que existem pessoas, e elas talvez sejam a grande maioria, que são superiores e distinguem-se em especial pela dupla notabilidade de estarem acima de tudo e de terem sempre razão. E eu, que não passo de um reles amontoador de linhas que não almeja ser outra coisa além disso, admiro-as muito e fico-lhes imensamente grato por dispensarem-me de estar certo sobre alguma coisa na vida, mesmo que seja pela mais insignificante das questiúnculas. Não que deseje de algum modo comparar-me a elas; apenas pensava cá com os meus botõezinhos o quanto tais criaturas são bondosas e mesmo gentis por deixarem a nós, os insignificantes, habitarem o mesmo mundo que elas, o qual, bem o sabemos, pertence-lhes em cada centímetro, assim como os planetas em redor, bem como o sol. É esforço inútil querer um pouco de sua atenção; toda ela está comprometida com suas próprias e urgentes necessidades, às suas causas que são realmente primeiras em todos os sentidos. No máximo, o que conseguiremos é um olhar de condescendência, não de quem se apieda, mas de quem se digna, embora não mais que por um instante, a olhar para baixo e ver-nos em nossa pequenez para, logo em seguida, observarem uma vez mais o quanto são fabulosas, coisa de que não se cansam de admirar. Quando sofrem, quando se preocupam, tais pessoas, temos que estar de acordo com elas quanto ao fato de que suas dores e misérias são as maiores de que se tem notícia desde Édipo e persignar-nos com sua triste sorte. “Se nenhum deus quer se manifestar na terra, sejamos nós próprios deuses”, diz um antigo poema alemão, como que profetizando que um dia o mundo se povoaria de deuses, cada um mais magnífico que o outro em potência e ato. E a nós, mortais, não resta muito mais que concordar com as palavras de Emil Cioran: “Cada um é para si mesmo um dogma supremo; nenhuma teologia protege seu deus como nós protegemos nosso eu; e este eu, se o assediamos com dúvidas e o colocamos em questão, é apenas por uma falsa elegância de nosso orgulho: a causa está ganha de antemão”. Que Deus me proteja do grau tão absoluto de tais seres: quero continuar a exercer meu trabalho e, nas horas livres, dedicar-me ao ofício, a eles indiferente, de juntar palavras e a dedicar-me a meus livros, pelo simples fato de não desejar felicidade maior nem mais completa nesse mundo.
E, enquanto me distraio pensando nestas palavras, lembro-me do que dizem as gerações mais antigas. Nem preciso ir muito longe para colher exemplos: basta ouvir minha mãe, que, pelo próprio hábito de ficar calada, a observar, sempre teve muito a dizer, embora prefira sempre a quietude. Conta ela que, na sua infância e adolescência, como não havia televisão, o passatempo de todas as noites, após o jantar, era sentar-se à frente da casa em que morava com os meus avós e, com olhos fixos, atentos e encantados, contemplar as estrelas. Diz ela que é como se naquele tempo houvesse mais dessas formas nebulosas e brilhantes, pois o céu de sua infância, costuma dizer-me, sabendo de minhas intenções de escrevinhador, era tal que palavra alguma lhe faria jus. E me ocorre que os astros, entristecidos pelo descaso hodierno dos homens-deuses, refugiaram-se em outras galáxias, onde talvez ainda haja quem lhes dê atenção. Mas naqueles tempos, fosse inverno ou verão, era hábito passar horas com os olhos no firmamento. Meus bisavós, filhos de imigrantes e que viviam também da agricultura, quando em visita também se juntavam aos observadores do infinito. Sentados em cadeiras de palha, formavam uma plateia silenciosa e reverente, que se sabia testemunha de um espetáculo de beleza sem rival em termos de grandiosidade e que, se fosse instada a descrever o que via, preferiria silenciar a recorrer à inutilidade das palavras, por mais que os vocábulos correspondentes sempre me tenham soado de modo particularmente belo: die schoenen Sterne, as belas estrelas. Recordar os dias de trabalho e as noites de descanso e encantamento de meus antepassados me trouxe à lembrança um fragmento imortal que poderia dar testemunho daqueles dias: “A terra respira fundo em repouso e sono. Todos os desejos transformaram-se agora em sonhos. Os homens, fatigados, retornam às casas para encontrar no sono a felicidade perdida e para aprender novamente a juventude”. Ao tomar nota dessas palavras, recordo-me de um poeta que, num conto de Jorge Luis Borges, diz que “o jornalista escreve para o esquecimento e que o desejo dele era escrever para a memória e o tempo”. A ilusão, enquanto dura, parece sempre doce. Amargos são os despertares: saber que não importa se somos poetas, jornalistas ou simples amontoadores de palavras; o fato é que escrevemos todos para o olvido.

Lavravam a terra, meus avós, bisavós e várias gerações que os precederam, e, como que seguindo intuitivamente uma receita de humildade prescrita por filósofos, dedicavam as horas da noite à contemplação de um céu que lhes aliviava o cansaço do dia e também da existência, um céu que, a julgar pelo que se diz, não é mais o mesmo. E hoje, ao escrever sobre eles e suas noites, sinto como se ainda há pouco tivesse deixado o cabo da enxada. E, como que temporariamente privado de memória e de passado, componho estas notas desconexas em outro idioma, tão diverso daquele de origem. Munido apenas de palavras, a única coisa de que disponho, manifesto o desejo inútil de que os meus contemporâneos se despojem da sua fantasia de deuses para revestir-se novamente de sua condição original de mortais, e, assim como em um passado não tão remoto, passemos todos a observar o firmamento estrelado. Todos calados e, acima de tudo, pacificados. Porque os astros nos dizem, em seu silencioso fulgor, de nossas limitações, apontando-nos um caminho de humildade e talvez até de virtude. E que, através da simples contemplação por alguns poucos minutos, não nos esqueçamos de quem somos, do que somos e não percamos de vista nossas origens, em algum ponto sempre modestas. Não fosse assim, ninguém teria imigrado. Ao domínio das noites estreladas pertence o poder de mostrar a cada um o que é e não deixar que nenhum ser humano se julgue mais do que isso, um ser que, na eterna noite dos tempos, feitas as contas, sequer terá existido e que, se pensar um pouco no que vê ao erguer os olhos acima da linha do horizonte, verá que todas as dores, assim como as glórias, são passageiras. “O homem é a medida de todas as coisas”, dizia o bom Protágoras. Tudo é uma questão de ponto de vista. Entre todas as questões, importa não esquecer jamais que, entre o céu e a terra, depois de algumas noites, na verdade não muitas, não restarão muitas coisas, e a filosofia será mais vã do que jamais foi algum dia. Para o bem ou para o mal, “para todo o sempre, eternamente... eternamente...”.
Vincent Van Gogh: Estrada com ciprestes e estrela, 1890




sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Dostoiévski na Alemanha

Existem interrogações que, pelas mais diversas razões, parece-me, ficam relegadas a um segundo plano em nosso pensamento. Entre os motivos pelos quais não nos dedicamos muito a estes assuntos está a impressão enganadora de que as respostas estão entre as mais acessíveis ao nosso conhecimento: um grande engano. Na verdade, em termos de teoria, tais perguntas consistem um mistério diante do qual não canso de me assombrar, por seu caráter esquivo. A rigor, é fato que tais questões estão ao nosso alcance, nos livros de teoria da literatura; contudo, as respostas constituem uma soma de fenômenos que apenas em parte são explicáveis: o que é a literatura? Em que consiste o poder que ela exerce sobre nós a ponto de nos mobilizar de forma tão intensa? Em que consiste o conceito de literariedade? Como pode ser definida nossa relação com os escritores e com um determinado autor em especial? Qual a origem do fascínio dos leitores judeus por um escritor sabidamente antissemita, como Dostoiévski? Essas são algumas das questões suscitadas pela leitura deVerão em Baden-Baden, romance de Leonid Tsípkin, escritor russo morto em 1982. As palavras finais do inspirado ensaio de introdução, assinado por Susan Sontag, são no mínimo instigantes: elas nos informam queo leitor emerge do livro “purgado, fortalecido, respirando um pouco mais fundo, agradecido à literatura por aquilo que ela pode abrigar e exemplificar”. Por experiências anteriores relativas a romances com base em vidas de escritores, tendemos a desconfiar. Contudo, o testemunho de Sontag, crítica sempre tão lúcida quanto sincera, tem tudo para parecer acima de qualquer suspeita. E assim, tendo apenas uma vaga ideiasobre o que esperar, mergulhamos na leitura.

Leitor apaixonado de Dostoiévski, Tsípkin constrói seu romance em torno do grande autor russo e de sua jovem esposa Anna Grigorievna, mais especificamente a partir do ano de 1867, no verão que passam na cidade balnear de Baden-Baden, acompanhando o casal até o ano da morte de Dostoiévski, em 1881. Tornamo-nos testemunhas do drama vivido pelo autor de Crime e castigo diante de uma força que ele próprio reconhece superior a si mesmo: a roleta; do amor intenso entre o escritor e Anna, além das constantes ameaças da epilepsia. Em um tempo paralelo, um século depois dos episódios envolvendo os Dostoiévski, Tsípkin, em primeira pessoa, nos faz um relato fragmentado, mas extremamente eloquente de sua própria viagem na tentativa de refazer a trajetória de seus dois personagens, numa peregrinação no tempo e no espaço, passando pelas casas em que eles viveram e, por último, à casa onde o grande escritor russo viveu seus últimos anos. É comum, no romance, o narrador privilegiar o ponto de vista de Anna Grigorievna, e é através do seu olhar que observamos os pungentes momentos finais da vida deste que foi, ao lado de Tolstoi e Tchékhov, um dos maiores escritores russos do século XIX e, sem o menor exagero, de toda a literatura.
Longe de nos fornecer respostas prontas ou fórmulas para as interrogações sugeridas por sua obra, Tsípkin oferece-nos algo melhor do que isso: amplia os limites de nossa visão através de um dos melhores exemplos do que conhecemos por literatura, mostrando, a partir de seu próprio modo de agir, a maneira como somos movidos a buscar respostas de forma ininterrupta, de obra em obra, círculo em que de repente nos deparamos com uma obra que parece ter como base nossa própria ânsia de conhecimento, de sentido e de beleza através de uma das formas mais elevadas de arte. Ao colocar Verão em Baden-Baden “entre as realizações mais belas, arrebatadoras e originais de um século de ficção e paraficção”, Sontag, em seu entusiasmo, está sendo fiel à sua própria impressão, que, terminada a leitura, se torna também a nossa. É realmente difícil ficar impassível em relação aos fatos narrados, à fragilidade dos personagens, que, por sua vez, refletem nossas próprias limitações, por mais que estas pareçam às vezes enganadoramente contornáveis. Eis aí uma obra para todos os públicos, não apenas amantes de Dostoiévski ou de literatura russa.
 Dostoiévski: retrato a óleo de 1872

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Anacronismos: a noção de casa em tempos líquido-modernos

É frequente, em nossas leituras, depararmo-nos com filósofos que nos exortam a sermos tão simples quanto possível, contentando-nos com pouco e tendo hábitos com base em virtudes como a modéstia e a humildade. Tais pensadores defendem a ideia de que para viver não precisamos mais do que do mínimo – ou, ao contrário do que normalmente acreditamos, que temos necessidade mesmo de muito menos do que estamos habituados a crer. A ordem do dia, segundo suas palavras, baseia-se no desapego a bens e objetos materiais, bem como a pessoas: seria uma maneira de sofrer menos com as perdas, dizem-nos, no que não estão errados. Difícil é colocar esses ensinamentos em prática. Mesmo que essas assertivas se percam nos milênios, ainda há quem as defenda hoje. Quanto a mim, até pouco tempo sempre tive a impressão de realmente precisar de muito pouco no cotidiano. Porém, um exame rápido, porém sincero, foi suficiente para me mostrar o quanto estava enganado, evidenciando que essa minha suposta independência em relação ao material não passava mesmo disso: uma impressão.
Há dias atrás, folheando as páginas de Vida líquida, de Zygmunt Bauman, deparei-me com inúmeras passagens sublinhadas a lápis. Como muitos livros já se passaram depois da leitura dessa obra, a maior parte dos trechos me soou com um ar de novidade – lembrando-me mais uma vez que o aprendizado se dá mesmo através da releitura atenta, o que por si só justifica o viver cercado de livros e de partituras, algo que, por sua vez, já de início coloca em xeque a ideia de tanta simplicidade. Em certo ponto, o sociólogo polonês define as características das pessoas possuidoras das “chances mais amplas de vitória” nisso que ele chama de mundo líquido-moderno: “Pessoas que se consideram em casa em muitos lugares, mas em nenhum deles em particular. Tão leves, lépidas e voláteis quanto o comércio e as finanças cada vez mais globais e extraterritoriais que as assistiram no parto e que sustentam sua existência de nômades”. Não posso deixar de me espantar com o que para mim se assemelha a um paradoxo: pergunto-me, a propósito, que noção de vitória é essa que exige o preço de considerar-se em casa em tantos lugares e ao mesmo tempo em nenhum, o que a meus ouvidos soa antes de tudo como desconforto. E, entre desavisado e despreocupado , mas nem um pouco surpreso, descubro o quanto estou alheio ao que se considera válido nesse tempo em que se deve aprender a “andar sobre areia movediça”, tema do sexto capítulo da referida obra. A essa descoberta acrescenta-se a constatação de algo que eu já sabia, mas que a vida nunca cansa de me recordar: excetuadas certas vantagens da modernidade, sinto-me em casa mesmo é no anacronismo, ou, mais especificamente, na conservação de hábitos hoje tidos como ultrapassados. E eu, que me considerava até certo ponto um sujeito simples, percebo-me agora, para meu próprio espanto, cheio de manias – não sei como considerar de outra maneira o culto a certos usos e valores em vários aspectos extintos para muitos de meus concidadãos.
Muitos desses apegos têm origem na valorização da cultura de todas as épocas e nos hábitos da leitura, da escrita e da prática da música. Creio não se tratar de culto à matéria propriamente dita, uma vez que o que me mobiliza é mais o conteúdo do que o seu suporte, embora um não seja nada sem o outro. Em grande parte, esse apreço pode ser definido como uma reverência à herança de meus antepassados. Por mais que a nossa noção de casa como lar vá sofrendo alterações mais que naturais com o passar do tempo, a ideia, no cerne, permanece inalterada. Como descendente de alemães, o amor à família e à história dos ancestrais, bem como ao seu legado, é mais que essencial, diria quase visceral. Creio que foi Nathaniel Hawthorne, na introdução ao seu romance A letra escarlate, quem melhor definiu o sentimento de pertencimento que nos liga a algum lugar específico: “Essa longa ligação de uma família com o lugar de seu nascimento e sepultamento cria um parentesco entre o ser humano e a localidade que independe, em grande medida, de algum atrativo do cenário ou das circunstâncias morais que cercam o homem. Não se trata de amor, mas de instinto”. Pouco importa o fato de meus antepassados estarem sepultados a muitos quilômetros da cidade onde vivo e, retrocedendo alguns séculos no tempo, no distante povoado de Halsenbach, Alemanha. Desse modo, nossa casa acaba se tornando indissociável àquilo a que costumamos chamar, cientes de nossa pequenez, nossa história, e a concepção de casa, mesmo não perdendo seu aspecto tão centrado no caráter espacial, mostra-nos algo em que antes não acreditávamos: que nosso lar, apesar de tudo, pode sim mudar de endereço. Quanto à saudade, ou nostalgia, creio tratar-se de um sentimento que, de uma forma ou de outra, ocupa um lugar à parte e constante na trajetória de cada um. Se ele está sempre presente, talvez seja a confirmação de que lar é antes de tudo lealdade à nossa trajetória. E se a rigor nossas raízes estão a muitos quilômetros do local onde agora vivemos, descobrimos que, nessa analogia com o reino vegetal, acabamos por desenvolver novos laços que, em termos de desapego, se não ocupam o lugar dos anteriores no espaço, esses novos laços afetivos nos mostram, todavia, que é muito mais fácil do que em princípio acreditávamos desenvolver um sentimento de vínculo com o que há anos atrás não passava de um território estranho. E através desse novo sentimento percebemos que, de certa forma, as inclinações de nossos afetos não deixam de ser, até certo ponto, independentes. De uma maneira distinta do que antes supúnhamos, mas, em todo caso, desapegados – por mais que me doa escrever isso.
À medida que avançamos nos anos, aprendemos também que sentir-se em casa diz respeito, em grande medida, à memória, esta tida aqui como a soma de uma vivência feita de trabalho, estudo, relações de amizade e vínculos que apenas a morte se revela capaz de romper. Em uma escala que em momento algum podemos ignorar, somos constituídos também de momentos difíceis e de perdas. Se há alguma verdade na afirmação de que é o ontem que faz de nós o que hoje somos, não há motivo melhor para reservar, em nossa vida, um lugar de grande honra para a memória, diga ela respeito a nós mesmos, seja ela referente ao nome de quem já nos deixou ou mesmo à cultura. E, por esse motivo, mesmo com os pés no presente e pensamento no futuro, nossa nova casa se torna também lugar de devoção. Nesse sentido, convém lembrar uma frase da romancista Marguerite Yourcenar, em Memórias de Adriano: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas”. São palavras que, por virem ao encontro de algo que já vivenciamos, trazem um certo conforto, daquela espécie de confirmação por escrito de uma verdade que já intuíamos, mas para cuja expressão não encontramos as palavras. Essa frase corrobora também o que já foi dito acima, mas de uma maneira diferente: os lugares de nascimento não se restringem a um só, e eles constituem algo impossível de quantificar. Isso depende acima de tudo das vivências que vamos acumulando ao longo do tempo e, principalmente, do referido olhar sobre nós mesmos. E, se observarmos com um pouco mais de atenção, veremos que a identificação de casa com memória é mais profunda do que inicialmente suspeitamos, e transcende em muito a contingência da matéria. Não se trata de um lugar, tampouco de um momento, mas de um estado de alma, através do qual percebemos algo semelhante a uma completude, diria mesmo plenitude: é quando percebemos que nossa história, somada aos conteúdos que assimilamos ao longo da vida, seja através dos livros ou de experiências vivenciadas e de convivência com amigos e familiares, se torna uma coisa só, sem lugar definido que não seja em nós mesmos, em nossa história, pensamentos, crenças e, mais do que tudo, em nossas recordações. Algo como uma fusão, diria, da qual poucas vezes temos uma noção mais exata. Esse aspecto me traz à mente diversas imagens; como exemplos, menciono a torre da casa em Tübingen onde Hölderlin viveu seus últimos 36 anos de vida, privado da razão, e a lírica contemplação da natureza nas pinturas de Caspar David Friedrich.
Mas voltemos por um instante à lição filosófica do início deste texto. Por mais que, prestando ouvidos aos filósofos, façamos do desapego uma religião ou uma questão de honra, chegará um momento em que nos veremos na impossibilidade de abrir mão de uma coisa em especial. Ignoro se isso consiste em uma nova fusão, transubstanciação ou transcendência que seja, da qual não estaremos conscientes, e que, quando ocorrer, mesmo que seja a confirmação dos conteúdos já assimilados, já não fará mesmo diferença alguma. Desse momento em diante, não restarão mais que palavras e terra, elementos que sempre me pareceram irmãos, ou terra e silêncio, o que, em última análise, revela-se a mesma coisa. Existe um poema de Friedrich Leopold Graf zu Stolberg, escrito no auge daquele romantismo lírico e contemplativo dos alemães, cujo final gostaria de relembrar aqui: “A Mãe Terra”: “Ela nos acolhe, pequenos e grandes, a Mãe Terra, em seu regaço; se a olhássemos em sua face, não temeríamos jamais o seu abraço”.

Caspar David Friedrich: A walk at dusk, 1835 
Casa da torre de Hölderlin, Tübingen