sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Anacronismos: a noção de casa em tempos líquido-modernos

É frequente, em nossas leituras, depararmo-nos com filósofos que nos exortam a sermos tão simples quanto possível, contentando-nos com pouco e tendo hábitos com base em virtudes como a modéstia e a humildade. Tais pensadores defendem a ideia de que para viver não precisamos mais do que do mínimo – ou, ao contrário do que normalmente acreditamos, que temos necessidade mesmo de muito menos do que estamos habituados a crer. A ordem do dia, segundo suas palavras, baseia-se no desapego a bens e objetos materiais, bem como a pessoas: seria uma maneira de sofrer menos com as perdas, dizem-nos, no que não estão errados. Difícil é colocar esses ensinamentos em prática. Mesmo que essas assertivas se percam nos milênios, ainda há quem as defenda hoje. Quanto a mim, até pouco tempo sempre tive a impressão de realmente precisar de muito pouco no cotidiano. Porém, um exame rápido, porém sincero, foi suficiente para me mostrar o quanto estava enganado, evidenciando que essa minha suposta independência em relação ao material não passava mesmo disso: uma impressão.
Há dias atrás, folheando as páginas de Vida líquida, de Zygmunt Bauman, deparei-me com inúmeras passagens sublinhadas a lápis. Como muitos livros já se passaram depois da leitura dessa obra, a maior parte dos trechos me soou com um ar de novidade – lembrando-me mais uma vez que o aprendizado se dá mesmo através da releitura atenta, o que por si só justifica o viver cercado de livros e de partituras, algo que, por sua vez, já de início coloca em xeque a ideia de tanta simplicidade. Em certo ponto, o sociólogo polonês define as características das pessoas possuidoras das “chances mais amplas de vitória” nisso que ele chama de mundo líquido-moderno: “Pessoas que se consideram em casa em muitos lugares, mas em nenhum deles em particular. Tão leves, lépidas e voláteis quanto o comércio e as finanças cada vez mais globais e extraterritoriais que as assistiram no parto e que sustentam sua existência de nômades”. Não posso deixar de me espantar com o que para mim se assemelha a um paradoxo: pergunto-me, a propósito, que noção de vitória é essa que exige o preço de considerar-se em casa em tantos lugares e ao mesmo tempo em nenhum, o que a meus ouvidos soa antes de tudo como desconforto. E, entre desavisado e despreocupado , mas nem um pouco surpreso, descubro o quanto estou alheio ao que se considera válido nesse tempo em que se deve aprender a “andar sobre areia movediça”, tema do sexto capítulo da referida obra. A essa descoberta acrescenta-se a constatação de algo que eu já sabia, mas que a vida nunca cansa de me recordar: excetuadas certas vantagens da modernidade, sinto-me em casa mesmo é no anacronismo, ou, mais especificamente, na conservação de hábitos hoje tidos como ultrapassados. E eu, que me considerava até certo ponto um sujeito simples, percebo-me agora, para meu próprio espanto, cheio de manias – não sei como considerar de outra maneira o culto a certos usos e valores em vários aspectos extintos para muitos de meus concidadãos.
Muitos desses apegos têm origem na valorização da cultura de todas as épocas e nos hábitos da leitura, da escrita e da prática da música. Creio não se tratar de culto à matéria propriamente dita, uma vez que o que me mobiliza é mais o conteúdo do que o seu suporte, embora um não seja nada sem o outro. Em grande parte, esse apreço pode ser definido como uma reverência à herança de meus antepassados. Por mais que a nossa noção de casa como lar vá sofrendo alterações mais que naturais com o passar do tempo, a ideia, no cerne, permanece inalterada. Como descendente de alemães, o amor à família e à história dos ancestrais, bem como ao seu legado, é mais que essencial, diria quase visceral. Creio que foi Nathaniel Hawthorne, na introdução ao seu romance A letra escarlate, quem melhor definiu o sentimento de pertencimento que nos liga a algum lugar específico: “Essa longa ligação de uma família com o lugar de seu nascimento e sepultamento cria um parentesco entre o ser humano e a localidade que independe, em grande medida, de algum atrativo do cenário ou das circunstâncias morais que cercam o homem. Não se trata de amor, mas de instinto”. Pouco importa o fato de meus antepassados estarem sepultados a muitos quilômetros da cidade onde vivo e, retrocedendo alguns séculos no tempo, no distante povoado de Halsenbach, Alemanha. Desse modo, nossa casa acaba se tornando indissociável àquilo a que costumamos chamar, cientes de nossa pequenez, nossa história, e a concepção de casa, mesmo não perdendo seu aspecto tão centrado no caráter espacial, mostra-nos algo em que antes não acreditávamos: que nosso lar, apesar de tudo, pode sim mudar de endereço. Quanto à saudade, ou nostalgia, creio tratar-se de um sentimento que, de uma forma ou de outra, ocupa um lugar à parte e constante na trajetória de cada um. Se ele está sempre presente, talvez seja a confirmação de que lar é antes de tudo lealdade à nossa trajetória. E se a rigor nossas raízes estão a muitos quilômetros do local onde agora vivemos, descobrimos que, nessa analogia com o reino vegetal, acabamos por desenvolver novos laços que, em termos de desapego, se não ocupam o lugar dos anteriores no espaço, esses novos laços afetivos nos mostram, todavia, que é muito mais fácil do que em princípio acreditávamos desenvolver um sentimento de vínculo com o que há anos atrás não passava de um território estranho. E através desse novo sentimento percebemos que, de certa forma, as inclinações de nossos afetos não deixam de ser, até certo ponto, independentes. De uma maneira distinta do que antes supúnhamos, mas, em todo caso, desapegados – por mais que me doa escrever isso.
À medida que avançamos nos anos, aprendemos também que sentir-se em casa diz respeito, em grande medida, à memória, esta tida aqui como a soma de uma vivência feita de trabalho, estudo, relações de amizade e vínculos que apenas a morte se revela capaz de romper. Em uma escala que em momento algum podemos ignorar, somos constituídos também de momentos difíceis e de perdas. Se há alguma verdade na afirmação de que é o ontem que faz de nós o que hoje somos, não há motivo melhor para reservar, em nossa vida, um lugar de grande honra para a memória, diga ela respeito a nós mesmos, seja ela referente ao nome de quem já nos deixou ou mesmo à cultura. E, por esse motivo, mesmo com os pés no presente e pensamento no futuro, nossa nova casa se torna também lugar de devoção. Nesse sentido, convém lembrar uma frase da romancista Marguerite Yourcenar, em Memórias de Adriano: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas”. São palavras que, por virem ao encontro de algo que já vivenciamos, trazem um certo conforto, daquela espécie de confirmação por escrito de uma verdade que já intuíamos, mas para cuja expressão não encontramos as palavras. Essa frase corrobora também o que já foi dito acima, mas de uma maneira diferente: os lugares de nascimento não se restringem a um só, e eles constituem algo impossível de quantificar. Isso depende acima de tudo das vivências que vamos acumulando ao longo do tempo e, principalmente, do referido olhar sobre nós mesmos. E, se observarmos com um pouco mais de atenção, veremos que a identificação de casa com memória é mais profunda do que inicialmente suspeitamos, e transcende em muito a contingência da matéria. Não se trata de um lugar, tampouco de um momento, mas de um estado de alma, através do qual percebemos algo semelhante a uma completude, diria mesmo plenitude: é quando percebemos que nossa história, somada aos conteúdos que assimilamos ao longo da vida, seja através dos livros ou de experiências vivenciadas e de convivência com amigos e familiares, se torna uma coisa só, sem lugar definido que não seja em nós mesmos, em nossa história, pensamentos, crenças e, mais do que tudo, em nossas recordações. Algo como uma fusão, diria, da qual poucas vezes temos uma noção mais exata. Esse aspecto me traz à mente diversas imagens; como exemplos, menciono a torre da casa em Tübingen onde Hölderlin viveu seus últimos 36 anos de vida, privado da razão, e a lírica contemplação da natureza nas pinturas de Caspar David Friedrich.
Mas voltemos por um instante à lição filosófica do início deste texto. Por mais que, prestando ouvidos aos filósofos, façamos do desapego uma religião ou uma questão de honra, chegará um momento em que nos veremos na impossibilidade de abrir mão de uma coisa em especial. Ignoro se isso consiste em uma nova fusão, transubstanciação ou transcendência que seja, da qual não estaremos conscientes, e que, quando ocorrer, mesmo que seja a confirmação dos conteúdos já assimilados, já não fará mesmo diferença alguma. Desse momento em diante, não restarão mais que palavras e terra, elementos que sempre me pareceram irmãos, ou terra e silêncio, o que, em última análise, revela-se a mesma coisa. Existe um poema de Friedrich Leopold Graf zu Stolberg, escrito no auge daquele romantismo lírico e contemplativo dos alemães, cujo final gostaria de relembrar aqui: “A Mãe Terra”: “Ela nos acolhe, pequenos e grandes, a Mãe Terra, em seu regaço; se a olhássemos em sua face, não temeríamos jamais o seu abraço”.

Caspar David Friedrich: A walk at dusk, 1835 
Casa da torre de Hölderlin, Tübingen





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