quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A virgem e o menino: afastamentos e aproximações

Entre tantos grandes momentos do filme Elizabeth, de Shekhar Kapur, de 1998, existe uma cena em particular cuja riqueza nunca deixou de me causar admiração. É perto do final, e, ao lado do seu conselheiro e chefe de espionagem Francis Walsingham, depois de intensas lutas contra o catolicismo, objetivando tornar o protestantismo a religião oficial da Inglaterra, a rainha tem diante de si uma imagem de Maria. Sua dificuldade consiste em entender o que tantos devotos viram nessa figura, que os mobilizou a ponto de não se importarem em perder a vida, desde que seu direito à fé católica fosse preservado. A direção da resposta é apontada por Walsingham: certamente os que morreram experimentaram nas madonas uma espécie de consolo que não encontraram em outra parte. Na cena seguinte, a última do filme, a corte está reunida e entra Elizabeth. Transfigurada, entre desumanizada e deificada, ela caminha por entre os presentes, que se ajoelham em profunda reverência. Antes de ocupar o trono, ela se dirige a um dos conselheiros e diz: “Veja; agora eu sou uma virgem”. Percebe-se nessa veneração e também na rainha algo próprio das monarquias absolutistas: a visão do soberano como uma criatura próxima à divindade, sentimento comum no final da Idade Média; uma espécie de sentimento de segurança que a Igreja, em crise depois da Reforma, começava a ter dificuldades em oferecer.
Interessante é observar que, passados tantos anos, a Virgem, como é normalmente chamada pelos católicos, depois de ser por séculos uma das principais fontes de inspiração para pintores de várias nacionalidades, volta a ser tema de discussões que, como seria de se esperar, não conduzem a lugar algum e que não oferecem qualquer possibilidade de conciliação, mesmo porque não há a mínima boa vontade entre os contendores. De um lado, os evangélicos, que veem na adoração a essas imagens uma transgressão aos mandamentos cristãos: a idolatria, ou seja, o culto a falsos ídolos. Se no século XVI, nos anos que se seguiram à Reforma, os iconoclastas literalmente destruíam imagens, hoje os seus herdeiros não perdem oportunidade de macular de todas as formas possíveis aquela que para os católicos não é menos que a mãe do próprio Deus, na sua forma humana. Não é exagero algum – na verdade, é dizer o mínimo - afirmar que na visão dos evangélicos Maria ocupa um lugar inferior ao de Maria Madalena, fazendo parte das hostes inimigas a serem combatidas e vencidas, ao custo de muita difamação e oração. Talvez não tivessem em relação a ela tantas reservas se não vissem eles próprios o poder de apelo de uma madona de Leonardo da Vinci ou de Giotto. Para os católicos, ela continua sendo o que sempre foi em sua tradição: a mulher escolhida por Deus para dar à luz o Salvador, por meio de uma concepção sem pecado, e que acompanhou o filho até o seu trágico final.
A mim não interessa saber quem está com a razão, se é que alguém a possui. Meu objetivo é observar, mesmo que rapidamente, o que essas imagens possuem de tão eloquente a ponto de causarem reações tão antagônicas como a adoração por parte de uns e, do ponto de vista dos evangélicos, promessas de fogo eterno a quem as cultua. O que sei é que as artes visuais, como a pintura e a escultura, seriam hoje indizivelmente mais pobres se não fosse essa forma de evangelização, ou propaganda, para falar mais honestamente. Em seu livro Religião para ateus (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011), o filósofo e escritor Alain de Botton examina diversos aspectos que considera válidos nas principais religiões, elementos que, fora de seu âmbito de origem, são inexistentes, no que, por vários motivos, os ateus saem empobrecidos. Entre as proposições de De Botton, está a valorização da arte. Nesse sentido, e como prova material, contundente, de que as religiões mais afastam as pessoas do que propriamente as aproximam, o que era seu objetivo inicial, estão as estátuas em relevo da catedral de São Martinho, em Utrecht, destruídas por iconoclastas no século XVI. Somos levados a crer que, caso fossem inofensivas ou mesmo pouco expressivas, não teriam sido destruídas. Para ilustrar o poder de tais imagens, o autor evoca uma tradição que vigorou em Roma entre os séculos XVI e XIX, acerca de uma irmandade que se informava a respeito dos condenados a caminho da forca para, momentos antes de sua execução, colocar-lhes diante dos olhos pequenas tábuas ilustrando geralmente a crucificação de Jesus ou a Virgem com o menino, na tentativa de proporcionar-lhes algum alívio em suas horas derradeiras. Segundo De Botton, “é difícil conceber um exemplo mais extremo de crença na capacidade redentora das imagens, e, contudo, a irmandade estava apenas realizando uma missão com a qual a arte cristã sempre teve um compromisso: colocar diante de nós exemplos das mais importantes ideias nas ocasiões difíceis, a fim de nos ajudar a viver e a morrer”.
(Há tempos atrás, refletindo a respeito do fanatismo religioso, cheguei à conclusão de que o tamanho da fé é proporcional à extensão do desespero, mas sei que, sobre esse assunto, qualquer certeza será sempre tão suspeita quanto as incertezas, dependendo do lado em que se está. Sei apenas que é difícil permanecer neutro em relação ao tema quando se observa o quanto a crença se apodera e estabelece sua hegemonia na mente daqueles que creem, de forma a torná-los muitas vezes cegos mesmo para os aspectos mais básicos da vida e não deixando espaço para mais nada. É curioso observar também outro aspecto: se para os cristãos o temor a Deus é o princípio da sabedoria, para os filósofos dos primórdios do cristianismo a sapiência estaria justamente em abrir mão das ilusões de imortalidade e fazer as pazes com o que, segundo sua crença, temos de mais irreversível: a finitude  [justamente o que, em minha pequena opinião, faz de nós e de nossas vidas algo glorioso]. Nisso residiria, segundo os cristãos, o “orgulho” próprio dos pensadores. Mas já começo a fugir ao assunto inicialmente proposto).
Em seu livro, Alain de Botton defende a ideia de que, acima do conteúdo veiculado pela arte religiosa, mais importante é saber o que ela diz de nossas necessidades humanamente mais básicas, valores geralmente ignorados como indignos pela filosofia, mas de cuja expressão, de uma forma ou de outra, depende nosso bem-estar e nossa paz de espírito, mesmo que não sejamos seguidores de nenhuma religião. Pode-se perguntar, a respeito disso, o que obras como La pietà ou A virgem, o menino e Santa Ana nos dizem para além de qualquer crença, e descobrimos que nelas há uma expressividade que as torna únicas e de valor inestimável não para a arte em si, mas no que elas são capazes de nos dizer, independentemente de seu significado religioso. Basta para isso saber admirá-las. Conforme o filósofo, tudo é uma questão de ponto de vista. Entre poucas obras de arte, elas estão entre as poucas ainda capazes de falar à criança que existe eternamente em nós, procurando insuflar-lhe algum alento em momentos dolorosos. No caso em questão, trata-se ainda de lições que, em sua maior parte, já assimilamos, mas que, por uma questão de distração, vivemos esquecendo. Eis aí a função de pinturas e esculturas: não nos deixar esquecer de que causas como o amor e a fraternidade estão sempre – ou deveriam estar – no centro da humanidade, e não na periferia, para onde as relegamos, distraídos muitas vezes pelas causas mais nobres e por nossas melhores intenções.
Leonardo da Vinci: A virgem, o menino e Santa Ana
Relevos da Catedral de São Martinho, Utrecht



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