sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Linhas de chegada

Geralmente, ao iniciar um texto, sinto um certo receio que, mesmo sendo passageiro, incomoda um pouco na sua brevidade. Hoje não é diferente. Coisa que, desnecessário é dizê-lo, não mais me surpreende. O que causa surpresa é o ineditismo, o imprevisto, e não a rotina, constante, leal em sua previsibilidade. O temor de hoje em relação ao tema escolhido não poderia ser mais eloquente. Pois, quando me proponho escrever sobre nossas buscas de todo dia – pelo que quer que seja, entre nossas metas particulares, intransferíveis -, percebo agora a incerteza, maior em relação a outros temas, quanto a saber encontrar as palavras adequadas, além de um sentimento que é vago apenas enquanto os objetos de minha procura permanecem, ao menos por enquanto, nesse início de texto, indefinidos. É hábito dizer que, quando se persegue algum objetivo, convém não colocá-lo na linha do horizonte, posto que, à medida que avançamos, a linha de chegada, em consequência, também se retrai à nossa frente. A respeito do caminho que percorremos para nos tornarmos – e nos mantermos - cidadãos da pós-modernidade, o sociólogo Zygmunt Bauman, em A arte da vida, expõe com singular clareza essa questão: “É como se não existisse um destino final pré-ordenado, uma linha de chegada predeterminada ao longo das estradas que percorremos, incluindo a que supostamente conduz aos ‘novos seres humanos’”. Por seu caráter material, trata-se de uma espécie de cidadania antes adquirida do que conquistada, e podemos usar como exemplo desse fato qualquer produto do setor eletroeletrônico e sua constante substituição por aparelhos novos, não necessariamente aperfeiçoados e portanto mais úteis, mas, por assim dizer, mais modernos. O que alcançamos hoje amanhã já estará ultrapassado, não esquecendo que, numa sociedade líquido-consumista, seres humanos também passam a ser considerados como similares a qualquer objeto de consumo e, por extensão, descartáveis no momento em que deixam de acompanhar o jogo da cadeira: ninguém quer deixar de participar da brincadeira que se tornou, nos últimos anos, a “construção” da condição de indivíduo.

Praticamente em todas as épocas, a literatura espelhou fielmente essa busca sem fim. Como exemplo, podemos mencionar um trecho bíblico de surpreendente pessimismo, em se tratando de um livro sagrado: “Vaidade das vaidades”, diz o Eclesiastes, “vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar ao seu lugar; em seguida se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos (...). O que foi é e será; o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol”. Muitos séculos depois, surgiria um exemplo clássico da insatisfação: Madame Bovary, a personagem do memorável romance de Flaubert. Emma, que na juventude nutrira sua imaginação com romances açucarados, acaba por desenvolver, a partir deles, uma ideia equivocada da vida e da sociedade, e sua tentativa de escalada social termina malograda. Trata-se da típica personagem que valoriza tudo que não possui e não valoriza nada do que tem. Quando sabe que a casa em que vive seria levada a hasta pública, em função de seus gastos desordenados visando ao luxo, nem sequer tomando conhecimento do marido e da filha, a personagem toma arsênico e acaba morrendo sem perceber a mais básica e, na aparência, mais irremediável das verdades: o ser humano é insaciável por natureza. Tal como Messalina, poderia revelar sua aceitação do trágico final: “Eu morro, mas morro insaciada”. Essa obra, em posição de privilegiado destaque na história da literatura, deixou como parte de sua herança uma palavra que tenta definir essa demanda ambiciosa e desmedida, levada ao grau extremo de histeria: bovarismo, coisa que, em nossos dias, tenho a impressão de que se tornou regra, em vez de exceção. Gostaria imensamente de estar equivocado.

Quanto a mim, não me é difícil expor, em linhas gerais, em que constituem minhas expectativas em médio prazo, ao menos enquanto as palavras me forem fiéis. Poderia começar com o desejo da continuidade de algo em que me considero um cidadão plenamente realizado – embora nesse adjetivo exista algo de imobilidade que não se aplica a mim: hábitos tais como a dedicação ao trabalho diário, à leitura, à música e aos ensaios, à escrita, aos amigos, às viagens, à aquisição constante de novos conhecimentos e experiências. E, a partir disso, colaborar de algum modo e da melhor maneira possível, dentro de minhas limitações, para o aprimoramento da sociedade ou, ao menos, das poucas pessoas de um círculo mais restrito, o que se pode considerar obrigação básica não apenas para quem estudou em instituição federal, mas para qualquer um que almeje o grau de cidadão. Isso inclui também, em outras palavras, aceitar quem não aceita nossas diferenças, nossas limitações e as muitas imperfeições, que, por maiores que sejam nossos esforços, sempre existirão.

A questão exposta acima envolve mais uma vez tudo que diz respeito à formação do que se chama identidade. Acerca desse conceito, Bauman formula algumas indagações muito pertinentes: “Quem sou eu? Qual o meu lugar entre os outros – entre aqueles que conheço, entre aqueles de que tenho informação e aqueles de que até agora nunca ouvi falar? Quais são as ameaças que tornam inseguro este meu lugar? Quem está por trás das ameaças? Que tipo de medidas defensivas deveria eu tomar a fim de desabilitar essas pessoas e assim me colocar a salvo de tais ameaças?”. Creio que a resposta talvez seja muito mais simples do que pareça, e a questão pode ser resumida de maneira até muito simples: desde que tenhamos consciência de estarmos desempenhando da melhor maneira possível os papéis mais básicos que a sociedade e a vida nos legaram, estando em dia com nossas obrigações, o que basta é a autoaceitação e o pouco de paz de consciência que logramos alcançar. Nesse caso, não prevalece a opinião de Sartre, para quem o inferno são os outros: “L’enfer, c’est les autres”. Antes pelo contrário: esse universo dos outros constitui o início de uma série de deveres.

Este texto, mesmo que construído à base de digressões casuais, não estaria completo se não houvesse ainda um outro ponto, ao qual, se não fizesse alusão, não haveria a necessária sinceridade do autor para consigo mesmo, alicerce de qualquer progresso, por pequeno que seja. Esse viés me é sugerido por Sándor Márai, em seu romance Libertação. A protagonista, Erzsébet, vive na Budapeste da década de 1940, nos sangrentos meses da invasão de tropas inimigas. Dela dependem seu pai, cientista de renome que, por motivos políticos, é perseguido pela Gestapo, além de diversos outros refugiados. Enquanto procura em desespero por um novo abrigo, ela caminha pelas ruas da cidade sitiada: “Sob a luz da lua, nas ruas escuras, por toda parte havia canhões, caminhões de carga, soldados vagavam à espera. Esperavam por alguma coisa. Esperavam pelo cerco, por certos acontecimentos que dariam sentido a seu preparo e a sua existência. (...) Os grupos estavam taciturnos, sombrios. Todos esperavam numa prontidão impotente, os soldados, os canhões, os tanques, as batalhas, as pessoas, nos porões e nas casas às escuras, a cidade inteira; porque alguma coisa tinha se realizado, chegara a hora”. O trecho não poderia ser mais claro e sintético em relação tanto ao papel exercido por Erszébet quanto ao ofício dos soldados. Se por um lado dela dependem a vida e a salvação dos refugiados, os soldados, ansiosos, esperam pela hora de desempenhar as funções para as quais se prepararam durante anos. Em comum, a protagonista e os soldados têm a característica de esperar pelo que trará um maior significado às suas existências. Ela, salvando; os soldados, por sua vez, capturando e matando. Mesmo que não vivamos em tempo de guerra, o exemplo não deixa de ser ilustrativo. Se não é óbvio, ao menos deveria ser claro que todos esperam por momentos em que suas vidas passem não apenas a ter um sentido fundamental para si mesmas, mas, em grau não menos elevado, para outras pessoas. Creio mesmo que seja muito mais do que isso. É algo que não vem de uma hora para outra, mas um pouco por dia, através de algo que fazemos, uma palavra que dizemos, ouvimos ou escrevemos, uma opinião expressada, um livro lido, uma viagem... Por mais impotentes que sejamos. É o momento em que sonhos e aspirações pessoais dividem seu lugar com uma obrigação moral, ética, para com nossos semelhantes, sem o que nada, absolutamente nada, teria sentido ou razão de ser. Contudo, para o bem ou para o mal, isso é apenas uma opinião, e não exatamente a realidade.

Evidentemente, quando essas metas forem alcançadas, outras surgirão em seu lugar. Creio que seja óbvio: o momento da morte de um desejo é o instante exato em que o satisfazemos. Todavia, conforme já expus acima, um dos “tesouros” encontrados na caixa de Pandora é a insaciabilidade de nossos desejos e ambições. Mas isso é detalhe. O importante é jamais, em momento algum, suspender a busca. Se nada desejamos neste mundo, já morremos para os outros e, sobretudo, para nós mesmos. (E tenho a impressão de que o mundo está repleto de seres que já desistiram, no sentido que sua ausência de aspirações nos permite observar: pessoas, principalmente as mais jovens, que não desejam coisa alguma e para quem tudo tanto faz). Há também o entusiasmo, elemento indispensável para que qualquer vida seja não apenas interessante, mas vida em plenitude. Conforme a frase de Balzac, “o homem começa a morrer quando perde o entusiasmo”. E, no pouco que me é dado ver, creio que o romancista não poderia estar mais certo. A propósito, em grego, entusiasmo tem um significado muito peculiar: “estar possuído por um deus”.

Uma voz em surdina me diz que estou longe, muito longe, de ter esgotado o assunto, em suas inúmeras, talvez infinitas possibilidades. Mas estaria sendo insincero se afirmasse saber o que terei omitido. Mas deixo para pensar nisso amanhã, talvez. Por hoje, chega. E agora, para encerrar, Clair de Lune.

Fotografia: Sándor Márai

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