segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia de Finados: o que se pode fazer pelos mortos?

Sempre me pareceu um tanto ambígua a existência, ou a necessidade de haver, no calendário, um dia para lembrar dos mortos. Da mesma maneira como a criação de uma lei proibindo matar só tem sentido para um povo potencialmente homicida, o Dia de Finados parece significar que saudade é coisa que se sente com hora marcada, ou, no outro extremo, existe apenas para que os vivos não se esqueçam de seus mortos. Em resumo, parece típico da única espécie que tem consciência da própria finitude e, por isso mesmo, não sabe como agir diante dos mortos e, por extensão, da morte em si.

Contudo, a instituição do 2 de novembro como Dia de Finados parece sugerir que a crença na imortalidade da alma sobrepujou todos os limites impostos pela ciência e pela Filosofia. Nessa data, diversos hábitos, tais como levar flores aos túmulos, limpá-los, acender uma vela ou mesmo simplesmente visitá-los parecem sugerir a certeza de que tais gestos são a última coisa que se pode fazer pelos falecidos. E sempre há os que nem questionam o significado dessas homenagens: apenas as respeitam por tradição, ou simplesmente obedecem-nas porque quase todos o fazem. De fato, essa é uma data em que todos os cemitérios parecem tornar-se verdadeiros jardins: o que mais se pode oferecer aos mortos além de flores, essência da natureza e, no caso, um símbolo da brevidade da vida?

No entanto, essa singela e simbólica homenagem cede lugar a outros questionamentos. Quais outros tributos poderíamos prestar àqueles que, antes de nós, foram conhecer a resposta ao grande enigma da morte? O que mais podemos fazer por eles além de seguir cegamente usos que o tempo e a tradição estabeleceram? As respostas podem ser muitas, mas dependem, basicamente, da consciência de cada um. Algumas delas poderiam vir, por exemplo, da negação, do ceticismo: nada mais podemos fazer pelos nossos entes queridos, além do que tradicionalmente já se faz. Outra resposta possível é a seguinte: o que podíamos fazer por eles já fizemos em vida e tais ações exigem verbos no passado. Ter sido um bom filho, um bom pai, um bom amigo, um bom aluno etc. Orar, segundo os católicos, é outra alternativa.

 Em seu romance O filósofo e o lobo, Mark Rowlands nos traz uma preciosa reflexão: “Mas existe outra forma, mais profunda e importante, de nos lembrarmos: uma forma de lembrança que ninguém jamais pensou em honrar com um nome. Trata-se da recordação de um passado que se imprimiu em nós, em nosso caráter e na vida que levamos – e que molda esse caráter. Não temos, normalmente, consciência dessas lembranças; muitas vezes nem são coisas que estão em nosso consciente. São elas, mais que qualquer outra coisa, que fazem de nós o que somos. Essas lembranças se manifestam nas decisões que tomamos, nos atos que praticamos e na vida que levamos. É em nossas vidas, e não, fundamentalmente, em nossas experiências conscientes, que encontramos as lembranças dos que se foram. Nossa consciência é instável, não é digna do trabalho de se lembrar. O modo mais importante de se lembrar de alguém é ser a pessoa em que este alguém nos transformou – pelo menos em parte – e viver a vida que ele nos ajudou a moldar (...). Levarmos uma vida que ele ajudou a moldar não é apenas um modo de nos lembrarmos dele; é como honramos sua memória”.

Ilustração:
Albrecht Dürer: Melancolia

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Algumas considerações

Muito já se discutiu a respeito do que consistiria o ato de escrever, e tanto a quantidade quanto a qualidade dessas opiniões intimidam quem deseja se atrever a acrescentar algo mais a esse verdadeiro legado sobre um legado anterior. Entre tudo que se escreveu, existe a carta de um escritor a um jovem poeta ensinando-nos sobre algo com que, na prática, já nos havíamos defrontado e que diz respeito àquilo que não se produziu por mero capricho, por uma simples vontade distraída de rabiscar algo, mas que teve origem numa necessidade quase visceral, como se o que surgisse em forma de palavras já tivesse vida plena e apenas ansiasse por vir à luz. A despeito disso, ou exatamente em razão do tom imperioso que às vezes caracteriza esse ato, receio ter de concordar, submisso ante tais palavras. Essa noção de algo já preexistente e pleno de vida a querer brotar traz à memória outra ideia: há quem compare a escrita a adentrar uma caverna completamente escura, sem qualquer recurso para iluminar o caminho, e voltar de lá trazendo algo em mãos, obtido através da única arma de que se dispõe: as palavras. Em outras vezes, as frases surgem prontas como que de um outro mundo, revestidas de uma voz que não é a nossa, mas à qual devemos nos submeter e registrar. Para ter paz, não nos resta senão obedecê-la. Percebe-se dessa forma que se trata de um processo no qual não nos cabe muita escolha: não é a nossa opinião que interessa, e sim das vozes que ouvimos.

Existe uma frase bastante conhecida de Liev Tolstoi que gostaria de recordar aqui, por ver nela um desafio maior a ser alcançado um dia, objetivo do qual me encontro extremamente distante: “Não há grandeza quando não há simplicidade”. A própria frase parece sintetizar na forma o que diz em conteúdo: eis a grandeza de um mestre. Em outro contexto, o autor de Anna Karênina nos mostra o que caracteriza sua simplicidade: “Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”. Ao mesmo tempo em que nos revela humildemente sua grandiosidade, Tolstoi nos aponta nosso próprio lugar no mundo. Mesmo assim, existe um resto de ambição nessa frase que me incomoda: longe estou da presunção de querer ser universal. E, se fosse olhar minha própria história, constataria ter vivido em tantas cidades que, feitas as contas, acabo sendo de lugar nenhum, por mais significativo que seja o fato de ter escolhido Candelária como meu chão, cidade amada, cuja história tanto me encanta e que neste espaço gostaria de recordar. Porém, por lealdade a Schubert, gostaria de fazê-lo como um viandante, aquele que, mesmo vivendo há muitos anos na cidade, sente nitidamente estar apenas de passagem e cuja estadia responde pelo nome do provisório. Não saberia fazer de outra maneira. A isso, soma-se outro aspecto: o resto de fidelidade que tenho para com as outras cidades que me acolheram me levam a amar não somente este município, mas a estender meu apego à terra como elemento, a amada terra, elemento que nos dá vida e que depois nos acolhe maternalmente em seu regaço.
Por obra do acaso ou não, a cidade que hoje conhecemos como Candelária começou com uma simples estrada – a Estrada do Botucaraí. Uma picada, não mais do que isso, uma via de acesso, lugar por onde se precisa passar para chegar a outro. Não o destino em si, mas um caminho. E as avenidas que hoje conhecemos como Pereira Rego e Getúlio Vargas, em outros tempos, não eram mais que um pequeno trecho dessa estrada. Seria certamente um exagero dizer que isso, de algum modo, nos define, mas talvez o fato diga alguma coisa sobre a nossa condição de cidadãos, moradores que somos de uma antiga vereda. Caminhantes? Peregrinos? Ou seria excesso de imaginação? Talvez a simplicidade universal de nossa condição, do parentesco entre terra e palavras e da terra em si esteja na impressão que ela nos traz, mesmo viandantes, de pertencermos a um todo maior e que foge a qualquer tentativa de definição mais exata. Trata-se da famosa sensação de pertencimento, de que muitos se sentem privados. Quanto aos candelarienses, talvez baste vislumbrar os contornos do Botucaraí para que nos tornemos sentimentais a ponto de perceber um pulsar em ritmo diferente do coração. O vínculo com a terra, mais cedo ou mais tarde, se revela sempre soberano, e se ainda acreditamos desconhecer a resposta, o próprio elemento primordial se encarrega de responder ao que em nós é um silencioso e respeitoso reconhecimento de que algumas coisas não somos nós que decidimos.
Em 1907, o compositor austríaco Gustav Mahler, influenciado pela precoce morte da filha, de apenas quatro anos, começou a musicar um ciclo de antigos poemas chineses, criando uma grande obra para solistas e orquestra, intitulada A Canção da Terra. Trata-se de uma das páginas de maior profundidade e de transcendente beleza do repertório erudito. Como que sentindo a proximidade da própria morte e ciente de que a amada terra voltaria a florescer para ele apenas poucas vezes, Mahler deu à última peça o nome de O Adeus. A partitura descreve uma comovente despedida entre dois amigos e a expressão do desejo de voltar à terra natal para ali viver os últimos dias. Os versos finais, significativamente, são do próprio compositor: “Em toda parte, a amada terra floresce e fica novamente verde! Em toda parte, para sempre, os horizontes serão azuis e brilhantes! Para todo o sempre... Em toda parte... Eternamente... Eternamente...”.

Ilustrações
Caspar David Friedrich: O viajante acima de um mar de nuvens, óleo, 1818
Candelária e o Botucaraí: foto de Odete Jochims
Gustav Mahler em 1892

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Leitura: felicidade clandestina ou conquistada?

Entre os diversos tipos de leitores, existe uma espécie que pode ser reconhecida a grandes distâncias. Não se trata daqueles que leem por obrigação, por acaso ou ocasionalmente. Falo daqueles que têm na leitura não um hábito, mas um vício do qual não podem prescindir sem que sua rotina seja com isso não apenas completamente abalada, mas levada à total inviabilidade. São aqueles que fazem da leitura algo como que uma missão de vida, tarefa à qual se dedicarão enquanto restar neles um sopro que seja de vida, não se importando com os reveses às vezes da realidade mais imediata, favorável ou não: nada conseguirá distraí-los de sua missão. Para esse público, não obstante a variedade de gostos ou demais distinções entre as inúmeras possíveis, o livro como objeto pode ser definido por palavras que talvez encontrem eco em cada um, em diferentes graus; trata-se de uma expressão usada num texto sobre Clarice, não lembro agora por quem: promessa de felicidade. No seu conto “Felicidade clandestina”, a personagem é deliberada e impiedosamente submetida a uma indizível tortura antes de ver realizado seu simples desejo de receber um livro em empréstimo. Terminada a espera, a narradora conclui: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. Interpretações à parte, a frase encerra uma realidade que todo leitor por vocação conhece bem: o crescimento e o amadurecimento na companhia desses objetos tão amados, que na verdade pouco ou nada têm em comum com os demais objetos, tanto da infância quanto da vida adulta: neles estão contidos nada menos que o trabalho – muitas vezes de uma vida inteira - de nossos autores preferidos. Se se fizessem tentativas, perderia-se a conta na impossível tarefa de contar as horas passadas dessa forma, definida por Proust como “dias que tenhamos deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido”. É possível que nesses dias “não vividos” estejam algumas das horas que vivemos mais plenamente e de forma mais intensa.
Muitas vezes me interrogo em que consiste essa devoção fiel aos escritores de todas as épocas e lugares. Quanto mais me pergunto, menos seguro fico em relação à resposta. Mesmo assim não me dou por vencido, e, por mais que me veja tentado a reconhecer que a leitura é um verdadeiro mistério, não aceito de bom grado as respostas prontas. E, por mais que eu deteste cair no lugar-comum, esse interrogar incessante me leva a considerar que o desejo de ler é uma dessas pulsões de satisfação momentânea, que se saciam parcialmente e que depois se refazem, renovadas pelo próprio ato diário de as alimentar. Assim como ocorre com as demais pulsões, lemos para sobreviver, ou para tornar a vida possível. Mas a semelhança acaba aí. A nossa necessidade de alimentos é algo previsível; com os livros, existe uma diferença, e esta diz respeito ao grau de insaciabilidade que, com o passar do tempo, se desenvolve em nós. Um livro leva a outro, assim como a resposta a uma dúvida gera outra dúvida, a ser sanada, ou não, conforme o nosso grau de resistência ao que essa voracidade tem de inelutável. Mas dessa sede impossível de ser saciada torno a falar depois.
Já se disse que a leitura exprime uma inconformidade com a nossa realidade, e, através do mergulho nas páginas dos livros, colocamo-nos a procurar um universo que nos convenha mais do que este que temos à nossa volta. Pode ser. Mas, entre os mais diferentes leitores, vejo muitos que nada têm dessa tal inconformidade. Antes pelo contrário: é por amor à vida, às pessoas e ao real que dedicam as horas aos livros, no desejo de saber sempre mais a respeito de tudo – emprego essa palavra com o que ela possui de mais absoluto. É essa busca pelo conhecimento que possibilita ao leitor uma visão panorâmica de todas as eras, mesmo as que já sucumbiram diante do tempo. Entregar-se de corpo e alma a um livro tem isso de inigualável: os segredos, a sabedoria, a suma do pensamento de todos os tempos está ali, acessível, como que numa esfera à parte dentro de nosso mundo, à qual temos livre acesso. Todas as épocas coexistem sem atritos; cessam as guerras e mesmo os povos inimigos depõem as armas para ficarem lado a lado, para sempre pacificados.
Também muito já se repetiu que ler possibilita viver diversas vidas, em vez de apenas uma. E é com a flexibilidade de verdadeiros atores que vivemos, por assim dizer, os mais variados papéis, e não raro com mais intensidade do que aquela com que vivenciamos nossa própria rotina, aquela que ninguém jamais poderá cumprir em nosso lugar. Entrega sem reservas ao que constitui o outro talvez seja uma expressão adequada para definir essa capacidade que temos de vivenciar outras existências, respirar em outras atmosferas com a mesma naturalidade como a que temos quando nos encontramos em nosso próprio elemento. E isso com a tal ânsia insaciável que deixei em suspenso acima, para retomá-la aqui: mais especificamente, o que é mesmo que buscamos nesse deixar-se viver pelos outros? Uma possível resposta está acima, disfarçada, através de uma palavra repleta dos mais variados significados: o absoluto.  “Repleta” talvez não seja a palavra exata; “prenhe” talvez seja melhor, por simbolizar as peripécias futuras por que passaremos em nossa vida de leitores. O filósofo André Comte-Sponville fornece-nos uma bela síntese do que estaria representado pelo absoluto: “uma espécie de salvação, ali onde tudo se funde, ali onde tudo forma apenas um: a eternidade no presente, a vida na morte, o amor na solidão, a serenidade no desespero...”.
A felicidade, para a personagem de Clarice, era clandestina porque veio através de um livro emprestado. Contudo, a satisfação que experimentamos na leitura mesmo de livros alheios constitui um grau elaborado de nossa condição de cidadãos de um mundo sempre em mutação, próprio a seres cuja gênese não acaba jamais e vem a ser interrompida apenas pela nossa morte. Vivemos nos formando, tornando-nos algo que foge à nossa mais acurada capacidade de definição e mesmo de percepção, fundindo-nos a esse eterno absoluto descrito acima. Sim, é verdade que somos mortais e que nossas horas estão contadas; neste mundo sim, é fato que somos clandestinos. Todavia, mesmo assim, não importa o que pertence a quem: a felicidade que alcançamos como leitores é genuinamente nossa, e de mais ninguém – embora, como toda grande felicidade, sempre se deseja compartilhá-la -, tão mais legítima quanto mais nos dedicamos nessa busca incessante de viver tanto experiências nossas como as alheias. Egoísmo, individualismo, opinam alguns. Contudo, como poderia haver egoísmo num desejo que, por ser fusão, transformação, evolução, revela mais amor ao próximo que a nós mesmos? Talvez seja oportuno retomar a frase de Proust, e concluir que as horas que vivemos mais intensamente foram justamente aquelas que vivemos sob outros nomes, em outras esferas, num esquecimento total – e absoluto.  Muitas vezes, precisamos ser outros para sermos mais fiéis a nós mesmos, no que temos de mais característico. E isso é algo que não sei definir, mas que tem relação com outro aspecto que nos distingue dos outros animais: a vocação que temos para jamais nos darmos por satisfeitos, buscando sempre além o que às vezes pode estar adormecido em nós mesmos, à simples espera de ser despertado para ser vivido em seu devido tempo.
Ilustração:
Pierre-Auguste Renoir: A leitora, óleo sobre tela, 1875

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Dos improvisos

Se para falar das contemplações precisei recuar no tempo e voltar à infância, para falar dos improvisos creio que seja necessário, além desse mesmo retorno, um esforço extra no que tange à memória dos estados de espírito, igualmente de dias distantes. A tarefa me é facilitada pelo fato de, já naquele período, ter tido a rara felicidade de haver encontrado seres que me possibilitaram a vivência de momentos únicos; se não os lembrasse, seria menos humano quem aqui escreve. Nenhuma diferença faz o fato de que essas criaturas que tanta riqueza e intensidade me trouxeram não estivessem mais vivos no momento em que me foram apresentados, pela voz grave de um locutor de rádio. Não se tratava de uma emissora como essas que passam os dias a tocar apenas as músicas mais pedidas e as que mais vendem. Salvo o programa “A hora do Jazz”, a rádio da Ufrgs tocava apenas música erudita. Que a audiência fosse mínima e que naquela programação eu pouco encontrava sobre o que conversar com meus colegas de escola, pouco importava. Até onde eu saiba, ou até prova em contrário – a gente nunca sabe -, ninguém é julgado pelas músicas que ouve e, se é, a condenação fala mais de quem julga do que do gosto de quem é assim avaliado.
Pois bem: há muitos anos, numa determinada tarde, um desses momentos em que já não se espera mais nada para o dia, o locutor anuncia os Improvisos opus 90, de Franz Schubert. Lembro de haver lido, naqueles dias, sobre os esforços e as dificuldades de ninguém menos que Beethoven na tarefa da criação, sobre suas crises de impaciência e insatisfação quanto aos resultados obtidos, e me pareceu estranho aquela palavra – improviso - ser aplicada à música. Pois o que assim se denomina é algo feito na hora, sem preparo prévio. Para exemplificar a simplicidade que a palavra improviso sugere, basta dizer que o dicionário não lhe traz sinônimos, ao não menos em uma palavra equivalente. Mas não importa. As quatro peças de Schubert, ouvidas sucessivamente, somam cerca de vinte e sete, vinte e oito minutos, e nem é preciso dizer que de improviso só trazem o nome. De modo particular, a terceira e a quarta peça são possuidoras de uma beleza que nenhuma palavra, por mais eloquente que seja, é capaz de descrever. O que me colocou diante de um paradoxo, tanto musical como linguístico: sendo a mais requintada simplicidade de que eu tinha notícia, o dicionário a tratava com reserva e parcimônia; o que se daria então no caso de uma beleza sem paralelos? Cheguei a uma conclusão que na época considerei provisória, mas que hoje, tendo-se passado décadas, continua em vigor, ao menos para mim: não procurar descrever o fenômeno da música através de palavras. Ainda mais quando se trata de Schubert.
Essa é uma regra que procuro seguir até hoje. Em todo caso, não estarei violando minha própria interdição se buscar expressar algo não da música em si, mas do significado representado pela audição daquelas quatro peças em uma tarde tão distante no tempo, mas tão viva na memória. Sei dos limites das palavras, do valor do silêncio. Mais ainda, sei dos limites de minha própria capacidade quanto à expressão, verbal ou não, e tenho consciência de estar adentrando um território em que definições, descrições e mesmo lembranças se tornam difusas, indistintas. Mas talvez esteja aí, nessa região obscura, em que os significados se confundem e se interpenetram, a origem de uma palavra sinônima de que o dicionário nos privou. O que se procura fazer além dessas fronteiras sempre indeterminadas talvez pertença sempre ao campo da improvisação, não esquecendo também o quanto os nossos dias têm de improvisado, de imprevisto, de soluções e resoluções tomadas muitas vezes às pressas, sem que se tenha tempo ou mesmo lucidez para refletir a respeito dos rumos de acontecimentos, e, em escala não mais modesta, de sentimentos e de consequências. Os Improvisos de Schubert, naquela tarde reencontrada toda vez que torno a ouvi-los, talvez tenham tido significado não muito diferente da ária Uma furtiva lagrima para Macabéa, em A hora da estrela: a intuição da possibilidade de uma existência em tudo mais elevada. Talvez também a consciência de que, assim como nosso ouvido, nossos outros sentidos podem também ser habituados a voos mais altos, a esferas espiritualmente mais etéreas. Não sei por que o grande compositor vienense escolheu nome tão modesto para peças tão bem-acabadas, que hoje estão à altura de outras obras-primas do repertório pianístico. Mas conheço suficientemente a alma de Schubert para saber que tudo nele era modéstia, eclipsado que se via pelos vultos de Beethoven e de Mozart, em quem, a despeito dele mesmo, tudo é divino. E basta isso para lembrar o quanto a história da música pode ser cruel para com seus maiores gênios. O tempo, se não pode reparar as injustiças, ao menos pode resolver a questão da indiferença e da ignorância.
Sendo os improvisos de Schubert, tal como se procurou demonstrar acima, de uma beleza tão excepcional, pode parecer arrogância usar aqui a mesma palavra para designar esses rascunhos, frutos o mais das vezes do acaso. Todavia, tenho consciência de que as peças do compositor vienense, assim como suas sonatas, sinfonias e canções, foram feitas para a eternidade. Mas, sabendo-me mortal, talvez seja mesmo por ter a exata noção de minha transitoriedade o que me tenha levado a escolher tal nome para isso que, por mais que eu fizer, não passarão de rascunhos que, de eternidade, possuem apenas a imperfeição. O que busco é uma espécie de justaposição: a matéria perecível colocada ao lado de algo de caráter mais durável, como as paredes, digamos, da Abadia de Westminster. Enquanto elas não me esmagarem, estarei feliz, mesmo ciente de que tudo nesse mundo, até o rochedo, é passageiro, e que não dispomos mais do que do momento presente, para todo o sempre e constantemente tornando-se passado. Nesse escoar sem fim, enquanto não escoamos também nós, tratemos de escrever um pouco e obter, desse modo, se não a salvação, ao menos a impressão, transitória, como tudo o mais, e a despeito de nossa pequenez, a impressão de que colaboramos em alguma coisa que seja para mudar, por mínimo que seja, a paisagem à nossa volta.

Das contemplações

Uma das primeiras imagens que me surgem evocadas pela palavra contemplação é a pintura de Caspar David Friedrich, “Homem e mulher contemplando a lua”, da década de 1830. Não saberia dizer quando a vi pela primeira vez, mas era ainda criança. Foi aproximadamente na mesma época em que, tendo perdido um familiar querido, postava-me à janela da sala de minha casa, antes do anoitecer, e ficava a espiar as nuvens em seus tons cambiantes entre o róseo, o alaranjado e uns restos de azul, para conseguir surpreender um movimento que não fosse o lento deslocar-se dessas belas e instigantes formas nebulosas. Isso porque, na minha imaginação e com base no que me haviam dito, era lá, por entre as nuvens, que os mortos passavam a viver depois de irem-se deste mundo, e ali permaneciam, contemplando, por sua vez, a terra de uma maneira diversa daquela como a haviam conhecido. Segundo a crença que me foi ensinada, ali ficavam em um estado de beatitude que, naquele momento, longe estava de causar-me inveja. Antes pelo contrário: aquela ausência de atividade e de uma espécie de vida mais instintiva me causava arrepios. Mesmo assim, e de qualquer modo, era necessário comportar-me bem, pois eles, para quem o tempo passara a ser eterno e possivelmente não tinham mesmo nada melhor a fazer, com certeza não perdiam um detalhe dos acontecimentos cá de baixo.
Anterior a esse referido contemplar, um outro mundo havia já semeado em mim raízes definitivas: as palavras. Dou meu testemunho de fé a respeito do que se diz: é verdade que tudo começa com um sim. Em suas diversas classes gramaticais, as palavras, como acontece com todos, acompanharam-me desde que aprendi a olhar o mundo, mas foi a partir de sua forma escrita que elas fizeram em mim sua obra. Se dessas sementes brotou algo bom é coisa que ignoro até hoje. Lembro-me de haver questionado, certa vez, a respeito do traço definitivo que a leitura constante nos traz aos poucos, com o transcorrer dos anos. Em meus pensamentos, interrogava-me o que seria preferível, caso pudéssemos escolher: uma felicidade ignara ou uma inquietação elevada? Nunca perdi a esperança de um dia encontrar uma resposta. Em todo caso, do ler e do reler nasceu o amor aos livros, tanto ao suporte como ao conteúdo, e à obra dos grandes autores, em especial por obras cujo valor já foi comprovado pelo mais implacável dos juízes: o passar do anos e, muitas vezes, dos séculos, sem que o poder de impacto de sua leitura tenha sido abalado o mínimo que seja.
As palavras acima talvez transmitam a falsa ideia de uma postura inativa perante o mundo e seus acontecimentos. Nada poderia ser menos verdadeiro, e o simples fato de estar constantemente receptivo às diversas manifestações do gênio humano é prova mais que cabal de um posicionamento, ou, em outras palavras, de uma escolha. Posso dizer em minha defesa que deixar uma obra repercutir com toda sua força em nós é estar sempre pronto para a novidade, para os acontecimentos, e, ao mesmo tempo em que nos colocamos em devoção, significa também não nos perder jamais de nós mesmos. Muito pelo contrário. Há quem diga que a apreciação de uma obra, seja ela literária ou musical, significa em parte incorporá-la a nós, através de uma forma de absorção. As afirmações nesse sentido são numerosas, mas reconhecer sua verdade exige uma arrogância que me desagrada. Contudo, não conheço ninguém que tenha perdido algo ao ler Shakespeare, Proust ou Kafka; a verdade inegável é que viveram, por meio de tais autores, experiências de verdadeira epifania. Da mesma forma, não sei de ninguém que tenha sentido dor nos ouvidos ou nos olhos por contemplar uma pintura de Vermeer ou por ouvir um concerto de Bach. Talvez um início de resposta esteja na já mencionada lua de Friedrich, a eterna musa dos contemplativos: basta olhá-la por alguns poucos segundos, e nem há necessidade de ser lua cheia. O efeito do sol está lá, resplandecendo não apenas sobre ela, mas também sobre as estrelas e asteroides. Sinceramente, à exceção de raros momentos, tenho a forte impressão de que o mundo é um imensurável, inestimável e constante céu estrelado a oferecer-se por inteiro a quem o quiser ver. Responder ou não a esse apelo, perceptível em todos os cantos do planeta, de igual modo a todas as classes sociais, depende única e inteiramente de nós. Basta uma pequena e simples palavra em assentimento.