quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Algumas considerações

Muito já se discutiu a respeito do que consistiria o ato de escrever, e tanto a quantidade quanto a qualidade dessas opiniões intimidam quem deseja se atrever a acrescentar algo mais a esse verdadeiro legado sobre um legado anterior. Entre tudo que se escreveu, existe a carta de um escritor a um jovem poeta ensinando-nos sobre algo com que, na prática, já nos havíamos defrontado e que diz respeito àquilo que não se produziu por mero capricho, por uma simples vontade distraída de rabiscar algo, mas que teve origem numa necessidade quase visceral, como se o que surgisse em forma de palavras já tivesse vida plena e apenas ansiasse por vir à luz. A despeito disso, ou exatamente em razão do tom imperioso que às vezes caracteriza esse ato, receio ter de concordar, submisso ante tais palavras. Essa noção de algo já preexistente e pleno de vida a querer brotar traz à memória outra ideia: há quem compare a escrita a adentrar uma caverna completamente escura, sem qualquer recurso para iluminar o caminho, e voltar de lá trazendo algo em mãos, obtido através da única arma de que se dispõe: as palavras. Em outras vezes, as frases surgem prontas como que de um outro mundo, revestidas de uma voz que não é a nossa, mas à qual devemos nos submeter e registrar. Para ter paz, não nos resta senão obedecê-la. Percebe-se dessa forma que se trata de um processo no qual não nos cabe muita escolha: não é a nossa opinião que interessa, e sim das vozes que ouvimos.

Existe uma frase bastante conhecida de Liev Tolstoi que gostaria de recordar aqui, por ver nela um desafio maior a ser alcançado um dia, objetivo do qual me encontro extremamente distante: “Não há grandeza quando não há simplicidade”. A própria frase parece sintetizar na forma o que diz em conteúdo: eis a grandeza de um mestre. Em outro contexto, o autor de Anna Karênina nos mostra o que caracteriza sua simplicidade: “Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”. Ao mesmo tempo em que nos revela humildemente sua grandiosidade, Tolstoi nos aponta nosso próprio lugar no mundo. Mesmo assim, existe um resto de ambição nessa frase que me incomoda: longe estou da presunção de querer ser universal. E, se fosse olhar minha própria história, constataria ter vivido em tantas cidades que, feitas as contas, acabo sendo de lugar nenhum, por mais significativo que seja o fato de ter escolhido Candelária como meu chão, cidade amada, cuja história tanto me encanta e que neste espaço gostaria de recordar. Porém, por lealdade a Schubert, gostaria de fazê-lo como um viandante, aquele que, mesmo vivendo há muitos anos na cidade, sente nitidamente estar apenas de passagem e cuja estadia responde pelo nome do provisório. Não saberia fazer de outra maneira. A isso, soma-se outro aspecto: o resto de fidelidade que tenho para com as outras cidades que me acolheram me levam a amar não somente este município, mas a estender meu apego à terra como elemento, a amada terra, elemento que nos dá vida e que depois nos acolhe maternalmente em seu regaço.
Por obra do acaso ou não, a cidade que hoje conhecemos como Candelária começou com uma simples estrada – a Estrada do Botucaraí. Uma picada, não mais do que isso, uma via de acesso, lugar por onde se precisa passar para chegar a outro. Não o destino em si, mas um caminho. E as avenidas que hoje conhecemos como Pereira Rego e Getúlio Vargas, em outros tempos, não eram mais que um pequeno trecho dessa estrada. Seria certamente um exagero dizer que isso, de algum modo, nos define, mas talvez o fato diga alguma coisa sobre a nossa condição de cidadãos, moradores que somos de uma antiga vereda. Caminhantes? Peregrinos? Ou seria excesso de imaginação? Talvez a simplicidade universal de nossa condição, do parentesco entre terra e palavras e da terra em si esteja na impressão que ela nos traz, mesmo viandantes, de pertencermos a um todo maior e que foge a qualquer tentativa de definição mais exata. Trata-se da famosa sensação de pertencimento, de que muitos se sentem privados. Quanto aos candelarienses, talvez baste vislumbrar os contornos do Botucaraí para que nos tornemos sentimentais a ponto de perceber um pulsar em ritmo diferente do coração. O vínculo com a terra, mais cedo ou mais tarde, se revela sempre soberano, e se ainda acreditamos desconhecer a resposta, o próprio elemento primordial se encarrega de responder ao que em nós é um silencioso e respeitoso reconhecimento de que algumas coisas não somos nós que decidimos.
Em 1907, o compositor austríaco Gustav Mahler, influenciado pela precoce morte da filha, de apenas quatro anos, começou a musicar um ciclo de antigos poemas chineses, criando uma grande obra para solistas e orquestra, intitulada A Canção da Terra. Trata-se de uma das páginas de maior profundidade e de transcendente beleza do repertório erudito. Como que sentindo a proximidade da própria morte e ciente de que a amada terra voltaria a florescer para ele apenas poucas vezes, Mahler deu à última peça o nome de O Adeus. A partitura descreve uma comovente despedida entre dois amigos e a expressão do desejo de voltar à terra natal para ali viver os últimos dias. Os versos finais, significativamente, são do próprio compositor: “Em toda parte, a amada terra floresce e fica novamente verde! Em toda parte, para sempre, os horizontes serão azuis e brilhantes! Para todo o sempre... Em toda parte... Eternamente... Eternamente...”.

Ilustrações
Caspar David Friedrich: O viajante acima de um mar de nuvens, óleo, 1818
Candelária e o Botucaraí: foto de Odete Jochims
Gustav Mahler em 1892

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