quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Das contemplações

Uma das primeiras imagens que me surgem evocadas pela palavra contemplação é a pintura de Caspar David Friedrich, “Homem e mulher contemplando a lua”, da década de 1830. Não saberia dizer quando a vi pela primeira vez, mas era ainda criança. Foi aproximadamente na mesma época em que, tendo perdido um familiar querido, postava-me à janela da sala de minha casa, antes do anoitecer, e ficava a espiar as nuvens em seus tons cambiantes entre o róseo, o alaranjado e uns restos de azul, para conseguir surpreender um movimento que não fosse o lento deslocar-se dessas belas e instigantes formas nebulosas. Isso porque, na minha imaginação e com base no que me haviam dito, era lá, por entre as nuvens, que os mortos passavam a viver depois de irem-se deste mundo, e ali permaneciam, contemplando, por sua vez, a terra de uma maneira diversa daquela como a haviam conhecido. Segundo a crença que me foi ensinada, ali ficavam em um estado de beatitude que, naquele momento, longe estava de causar-me inveja. Antes pelo contrário: aquela ausência de atividade e de uma espécie de vida mais instintiva me causava arrepios. Mesmo assim, e de qualquer modo, era necessário comportar-me bem, pois eles, para quem o tempo passara a ser eterno e possivelmente não tinham mesmo nada melhor a fazer, com certeza não perdiam um detalhe dos acontecimentos cá de baixo.
Anterior a esse referido contemplar, um outro mundo havia já semeado em mim raízes definitivas: as palavras. Dou meu testemunho de fé a respeito do que se diz: é verdade que tudo começa com um sim. Em suas diversas classes gramaticais, as palavras, como acontece com todos, acompanharam-me desde que aprendi a olhar o mundo, mas foi a partir de sua forma escrita que elas fizeram em mim sua obra. Se dessas sementes brotou algo bom é coisa que ignoro até hoje. Lembro-me de haver questionado, certa vez, a respeito do traço definitivo que a leitura constante nos traz aos poucos, com o transcorrer dos anos. Em meus pensamentos, interrogava-me o que seria preferível, caso pudéssemos escolher: uma felicidade ignara ou uma inquietação elevada? Nunca perdi a esperança de um dia encontrar uma resposta. Em todo caso, do ler e do reler nasceu o amor aos livros, tanto ao suporte como ao conteúdo, e à obra dos grandes autores, em especial por obras cujo valor já foi comprovado pelo mais implacável dos juízes: o passar do anos e, muitas vezes, dos séculos, sem que o poder de impacto de sua leitura tenha sido abalado o mínimo que seja.
As palavras acima talvez transmitam a falsa ideia de uma postura inativa perante o mundo e seus acontecimentos. Nada poderia ser menos verdadeiro, e o simples fato de estar constantemente receptivo às diversas manifestações do gênio humano é prova mais que cabal de um posicionamento, ou, em outras palavras, de uma escolha. Posso dizer em minha defesa que deixar uma obra repercutir com toda sua força em nós é estar sempre pronto para a novidade, para os acontecimentos, e, ao mesmo tempo em que nos colocamos em devoção, significa também não nos perder jamais de nós mesmos. Muito pelo contrário. Há quem diga que a apreciação de uma obra, seja ela literária ou musical, significa em parte incorporá-la a nós, através de uma forma de absorção. As afirmações nesse sentido são numerosas, mas reconhecer sua verdade exige uma arrogância que me desagrada. Contudo, não conheço ninguém que tenha perdido algo ao ler Shakespeare, Proust ou Kafka; a verdade inegável é que viveram, por meio de tais autores, experiências de verdadeira epifania. Da mesma forma, não sei de ninguém que tenha sentido dor nos ouvidos ou nos olhos por contemplar uma pintura de Vermeer ou por ouvir um concerto de Bach. Talvez um início de resposta esteja na já mencionada lua de Friedrich, a eterna musa dos contemplativos: basta olhá-la por alguns poucos segundos, e nem há necessidade de ser lua cheia. O efeito do sol está lá, resplandecendo não apenas sobre ela, mas também sobre as estrelas e asteroides. Sinceramente, à exceção de raros momentos, tenho a forte impressão de que o mundo é um imensurável, inestimável e constante céu estrelado a oferecer-se por inteiro a quem o quiser ver. Responder ou não a esse apelo, perceptível em todos os cantos do planeta, de igual modo a todas as classes sociais, depende única e inteiramente de nós. Basta uma pequena e simples palavra em assentimento.

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