sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Leitura: felicidade clandestina ou conquistada?

Entre os diversos tipos de leitores, existe uma espécie que pode ser reconhecida a grandes distâncias. Não se trata daqueles que leem por obrigação, por acaso ou ocasionalmente. Falo daqueles que têm na leitura não um hábito, mas um vício do qual não podem prescindir sem que sua rotina seja com isso não apenas completamente abalada, mas levada à total inviabilidade. São aqueles que fazem da leitura algo como que uma missão de vida, tarefa à qual se dedicarão enquanto restar neles um sopro que seja de vida, não se importando com os reveses às vezes da realidade mais imediata, favorável ou não: nada conseguirá distraí-los de sua missão. Para esse público, não obstante a variedade de gostos ou demais distinções entre as inúmeras possíveis, o livro como objeto pode ser definido por palavras que talvez encontrem eco em cada um, em diferentes graus; trata-se de uma expressão usada num texto sobre Clarice, não lembro agora por quem: promessa de felicidade. No seu conto “Felicidade clandestina”, a personagem é deliberada e impiedosamente submetida a uma indizível tortura antes de ver realizado seu simples desejo de receber um livro em empréstimo. Terminada a espera, a narradora conclui: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. Interpretações à parte, a frase encerra uma realidade que todo leitor por vocação conhece bem: o crescimento e o amadurecimento na companhia desses objetos tão amados, que na verdade pouco ou nada têm em comum com os demais objetos, tanto da infância quanto da vida adulta: neles estão contidos nada menos que o trabalho – muitas vezes de uma vida inteira - de nossos autores preferidos. Se se fizessem tentativas, perderia-se a conta na impossível tarefa de contar as horas passadas dessa forma, definida por Proust como “dias que tenhamos deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido”. É possível que nesses dias “não vividos” estejam algumas das horas que vivemos mais plenamente e de forma mais intensa.
Muitas vezes me interrogo em que consiste essa devoção fiel aos escritores de todas as épocas e lugares. Quanto mais me pergunto, menos seguro fico em relação à resposta. Mesmo assim não me dou por vencido, e, por mais que me veja tentado a reconhecer que a leitura é um verdadeiro mistério, não aceito de bom grado as respostas prontas. E, por mais que eu deteste cair no lugar-comum, esse interrogar incessante me leva a considerar que o desejo de ler é uma dessas pulsões de satisfação momentânea, que se saciam parcialmente e que depois se refazem, renovadas pelo próprio ato diário de as alimentar. Assim como ocorre com as demais pulsões, lemos para sobreviver, ou para tornar a vida possível. Mas a semelhança acaba aí. A nossa necessidade de alimentos é algo previsível; com os livros, existe uma diferença, e esta diz respeito ao grau de insaciabilidade que, com o passar do tempo, se desenvolve em nós. Um livro leva a outro, assim como a resposta a uma dúvida gera outra dúvida, a ser sanada, ou não, conforme o nosso grau de resistência ao que essa voracidade tem de inelutável. Mas dessa sede impossível de ser saciada torno a falar depois.
Já se disse que a leitura exprime uma inconformidade com a nossa realidade, e, através do mergulho nas páginas dos livros, colocamo-nos a procurar um universo que nos convenha mais do que este que temos à nossa volta. Pode ser. Mas, entre os mais diferentes leitores, vejo muitos que nada têm dessa tal inconformidade. Antes pelo contrário: é por amor à vida, às pessoas e ao real que dedicam as horas aos livros, no desejo de saber sempre mais a respeito de tudo – emprego essa palavra com o que ela possui de mais absoluto. É essa busca pelo conhecimento que possibilita ao leitor uma visão panorâmica de todas as eras, mesmo as que já sucumbiram diante do tempo. Entregar-se de corpo e alma a um livro tem isso de inigualável: os segredos, a sabedoria, a suma do pensamento de todos os tempos está ali, acessível, como que numa esfera à parte dentro de nosso mundo, à qual temos livre acesso. Todas as épocas coexistem sem atritos; cessam as guerras e mesmo os povos inimigos depõem as armas para ficarem lado a lado, para sempre pacificados.
Também muito já se repetiu que ler possibilita viver diversas vidas, em vez de apenas uma. E é com a flexibilidade de verdadeiros atores que vivemos, por assim dizer, os mais variados papéis, e não raro com mais intensidade do que aquela com que vivenciamos nossa própria rotina, aquela que ninguém jamais poderá cumprir em nosso lugar. Entrega sem reservas ao que constitui o outro talvez seja uma expressão adequada para definir essa capacidade que temos de vivenciar outras existências, respirar em outras atmosferas com a mesma naturalidade como a que temos quando nos encontramos em nosso próprio elemento. E isso com a tal ânsia insaciável que deixei em suspenso acima, para retomá-la aqui: mais especificamente, o que é mesmo que buscamos nesse deixar-se viver pelos outros? Uma possível resposta está acima, disfarçada, através de uma palavra repleta dos mais variados significados: o absoluto.  “Repleta” talvez não seja a palavra exata; “prenhe” talvez seja melhor, por simbolizar as peripécias futuras por que passaremos em nossa vida de leitores. O filósofo André Comte-Sponville fornece-nos uma bela síntese do que estaria representado pelo absoluto: “uma espécie de salvação, ali onde tudo se funde, ali onde tudo forma apenas um: a eternidade no presente, a vida na morte, o amor na solidão, a serenidade no desespero...”.
A felicidade, para a personagem de Clarice, era clandestina porque veio através de um livro emprestado. Contudo, a satisfação que experimentamos na leitura mesmo de livros alheios constitui um grau elaborado de nossa condição de cidadãos de um mundo sempre em mutação, próprio a seres cuja gênese não acaba jamais e vem a ser interrompida apenas pela nossa morte. Vivemos nos formando, tornando-nos algo que foge à nossa mais acurada capacidade de definição e mesmo de percepção, fundindo-nos a esse eterno absoluto descrito acima. Sim, é verdade que somos mortais e que nossas horas estão contadas; neste mundo sim, é fato que somos clandestinos. Todavia, mesmo assim, não importa o que pertence a quem: a felicidade que alcançamos como leitores é genuinamente nossa, e de mais ninguém – embora, como toda grande felicidade, sempre se deseja compartilhá-la -, tão mais legítima quanto mais nos dedicamos nessa busca incessante de viver tanto experiências nossas como as alheias. Egoísmo, individualismo, opinam alguns. Contudo, como poderia haver egoísmo num desejo que, por ser fusão, transformação, evolução, revela mais amor ao próximo que a nós mesmos? Talvez seja oportuno retomar a frase de Proust, e concluir que as horas que vivemos mais intensamente foram justamente aquelas que vivemos sob outros nomes, em outras esferas, num esquecimento total – e absoluto.  Muitas vezes, precisamos ser outros para sermos mais fiéis a nós mesmos, no que temos de mais característico. E isso é algo que não sei definir, mas que tem relação com outro aspecto que nos distingue dos outros animais: a vocação que temos para jamais nos darmos por satisfeitos, buscando sempre além o que às vezes pode estar adormecido em nós mesmos, à simples espera de ser despertado para ser vivido em seu devido tempo.
Ilustração:
Pierre-Auguste Renoir: A leitora, óleo sobre tela, 1875

Um comentário:

  1. Em um sábado de tarde, frio e ensolarado, decidi ficar em casa para tornar-me outra através de boas leituras online, para minha alegria, me deparo com este texto incomum e vibrante. :)

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