quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Dos improvisos

Se para falar das contemplações precisei recuar no tempo e voltar à infância, para falar dos improvisos creio que seja necessário, além desse mesmo retorno, um esforço extra no que tange à memória dos estados de espírito, igualmente de dias distantes. A tarefa me é facilitada pelo fato de, já naquele período, ter tido a rara felicidade de haver encontrado seres que me possibilitaram a vivência de momentos únicos; se não os lembrasse, seria menos humano quem aqui escreve. Nenhuma diferença faz o fato de que essas criaturas que tanta riqueza e intensidade me trouxeram não estivessem mais vivos no momento em que me foram apresentados, pela voz grave de um locutor de rádio. Não se tratava de uma emissora como essas que passam os dias a tocar apenas as músicas mais pedidas e as que mais vendem. Salvo o programa “A hora do Jazz”, a rádio da Ufrgs tocava apenas música erudita. Que a audiência fosse mínima e que naquela programação eu pouco encontrava sobre o que conversar com meus colegas de escola, pouco importava. Até onde eu saiba, ou até prova em contrário – a gente nunca sabe -, ninguém é julgado pelas músicas que ouve e, se é, a condenação fala mais de quem julga do que do gosto de quem é assim avaliado.
Pois bem: há muitos anos, numa determinada tarde, um desses momentos em que já não se espera mais nada para o dia, o locutor anuncia os Improvisos opus 90, de Franz Schubert. Lembro de haver lido, naqueles dias, sobre os esforços e as dificuldades de ninguém menos que Beethoven na tarefa da criação, sobre suas crises de impaciência e insatisfação quanto aos resultados obtidos, e me pareceu estranho aquela palavra – improviso - ser aplicada à música. Pois o que assim se denomina é algo feito na hora, sem preparo prévio. Para exemplificar a simplicidade que a palavra improviso sugere, basta dizer que o dicionário não lhe traz sinônimos, ao não menos em uma palavra equivalente. Mas não importa. As quatro peças de Schubert, ouvidas sucessivamente, somam cerca de vinte e sete, vinte e oito minutos, e nem é preciso dizer que de improviso só trazem o nome. De modo particular, a terceira e a quarta peça são possuidoras de uma beleza que nenhuma palavra, por mais eloquente que seja, é capaz de descrever. O que me colocou diante de um paradoxo, tanto musical como linguístico: sendo a mais requintada simplicidade de que eu tinha notícia, o dicionário a tratava com reserva e parcimônia; o que se daria então no caso de uma beleza sem paralelos? Cheguei a uma conclusão que na época considerei provisória, mas que hoje, tendo-se passado décadas, continua em vigor, ao menos para mim: não procurar descrever o fenômeno da música através de palavras. Ainda mais quando se trata de Schubert.
Essa é uma regra que procuro seguir até hoje. Em todo caso, não estarei violando minha própria interdição se buscar expressar algo não da música em si, mas do significado representado pela audição daquelas quatro peças em uma tarde tão distante no tempo, mas tão viva na memória. Sei dos limites das palavras, do valor do silêncio. Mais ainda, sei dos limites de minha própria capacidade quanto à expressão, verbal ou não, e tenho consciência de estar adentrando um território em que definições, descrições e mesmo lembranças se tornam difusas, indistintas. Mas talvez esteja aí, nessa região obscura, em que os significados se confundem e se interpenetram, a origem de uma palavra sinônima de que o dicionário nos privou. O que se procura fazer além dessas fronteiras sempre indeterminadas talvez pertença sempre ao campo da improvisação, não esquecendo também o quanto os nossos dias têm de improvisado, de imprevisto, de soluções e resoluções tomadas muitas vezes às pressas, sem que se tenha tempo ou mesmo lucidez para refletir a respeito dos rumos de acontecimentos, e, em escala não mais modesta, de sentimentos e de consequências. Os Improvisos de Schubert, naquela tarde reencontrada toda vez que torno a ouvi-los, talvez tenham tido significado não muito diferente da ária Uma furtiva lagrima para Macabéa, em A hora da estrela: a intuição da possibilidade de uma existência em tudo mais elevada. Talvez também a consciência de que, assim como nosso ouvido, nossos outros sentidos podem também ser habituados a voos mais altos, a esferas espiritualmente mais etéreas. Não sei por que o grande compositor vienense escolheu nome tão modesto para peças tão bem-acabadas, que hoje estão à altura de outras obras-primas do repertório pianístico. Mas conheço suficientemente a alma de Schubert para saber que tudo nele era modéstia, eclipsado que se via pelos vultos de Beethoven e de Mozart, em quem, a despeito dele mesmo, tudo é divino. E basta isso para lembrar o quanto a história da música pode ser cruel para com seus maiores gênios. O tempo, se não pode reparar as injustiças, ao menos pode resolver a questão da indiferença e da ignorância.
Sendo os improvisos de Schubert, tal como se procurou demonstrar acima, de uma beleza tão excepcional, pode parecer arrogância usar aqui a mesma palavra para designar esses rascunhos, frutos o mais das vezes do acaso. Todavia, tenho consciência de que as peças do compositor vienense, assim como suas sonatas, sinfonias e canções, foram feitas para a eternidade. Mas, sabendo-me mortal, talvez seja mesmo por ter a exata noção de minha transitoriedade o que me tenha levado a escolher tal nome para isso que, por mais que eu fizer, não passarão de rascunhos que, de eternidade, possuem apenas a imperfeição. O que busco é uma espécie de justaposição: a matéria perecível colocada ao lado de algo de caráter mais durável, como as paredes, digamos, da Abadia de Westminster. Enquanto elas não me esmagarem, estarei feliz, mesmo ciente de que tudo nesse mundo, até o rochedo, é passageiro, e que não dispomos mais do que do momento presente, para todo o sempre e constantemente tornando-se passado. Nesse escoar sem fim, enquanto não escoamos também nós, tratemos de escrever um pouco e obter, desse modo, se não a salvação, ao menos a impressão, transitória, como tudo o mais, e a despeito de nossa pequenez, a impressão de que colaboramos em alguma coisa que seja para mudar, por mínimo que seja, a paisagem à nossa volta.

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