sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Dostoiévski na Alemanha

Existem interrogações que, pelas mais diversas razões, parece-me, ficam relegadas a um segundo plano em nosso pensamento. Entre os motivos pelos quais não nos dedicamos muito a estes assuntos está a impressão enganadora de que as respostas estão entre as mais acessíveis ao nosso conhecimento: um grande engano. Na verdade, em termos de teoria, tais perguntas consistem um mistério diante do qual não canso de me assombrar, por seu caráter esquivo. A rigor, é fato que tais questões estão ao nosso alcance, nos livros de teoria da literatura; contudo, as respostas constituem uma soma de fenômenos que apenas em parte são explicáveis: o que é a literatura? Em que consiste o poder que ela exerce sobre nós a ponto de nos mobilizar de forma tão intensa? Em que consiste o conceito de literariedade? Como pode ser definida nossa relação com os escritores e com um determinado autor em especial? Qual a origem do fascínio dos leitores judeus por um escritor sabidamente antissemita, como Dostoiévski? Essas são algumas das questões suscitadas pela leitura deVerão em Baden-Baden, romance de Leonid Tsípkin, escritor russo morto em 1982. As palavras finais do inspirado ensaio de introdução, assinado por Susan Sontag, são no mínimo instigantes: elas nos informam queo leitor emerge do livro “purgado, fortalecido, respirando um pouco mais fundo, agradecido à literatura por aquilo que ela pode abrigar e exemplificar”. Por experiências anteriores relativas a romances com base em vidas de escritores, tendemos a desconfiar. Contudo, o testemunho de Sontag, crítica sempre tão lúcida quanto sincera, tem tudo para parecer acima de qualquer suspeita. E assim, tendo apenas uma vaga ideiasobre o que esperar, mergulhamos na leitura.

Leitor apaixonado de Dostoiévski, Tsípkin constrói seu romance em torno do grande autor russo e de sua jovem esposa Anna Grigorievna, mais especificamente a partir do ano de 1867, no verão que passam na cidade balnear de Baden-Baden, acompanhando o casal até o ano da morte de Dostoiévski, em 1881. Tornamo-nos testemunhas do drama vivido pelo autor de Crime e castigo diante de uma força que ele próprio reconhece superior a si mesmo: a roleta; do amor intenso entre o escritor e Anna, além das constantes ameaças da epilepsia. Em um tempo paralelo, um século depois dos episódios envolvendo os Dostoiévski, Tsípkin, em primeira pessoa, nos faz um relato fragmentado, mas extremamente eloquente de sua própria viagem na tentativa de refazer a trajetória de seus dois personagens, numa peregrinação no tempo e no espaço, passando pelas casas em que eles viveram e, por último, à casa onde o grande escritor russo viveu seus últimos anos. É comum, no romance, o narrador privilegiar o ponto de vista de Anna Grigorievna, e é através do seu olhar que observamos os pungentes momentos finais da vida deste que foi, ao lado de Tolstoi e Tchékhov, um dos maiores escritores russos do século XIX e, sem o menor exagero, de toda a literatura.
Longe de nos fornecer respostas prontas ou fórmulas para as interrogações sugeridas por sua obra, Tsípkin oferece-nos algo melhor do que isso: amplia os limites de nossa visão através de um dos melhores exemplos do que conhecemos por literatura, mostrando, a partir de seu próprio modo de agir, a maneira como somos movidos a buscar respostas de forma ininterrupta, de obra em obra, círculo em que de repente nos deparamos com uma obra que parece ter como base nossa própria ânsia de conhecimento, de sentido e de beleza através de uma das formas mais elevadas de arte. Ao colocar Verão em Baden-Baden “entre as realizações mais belas, arrebatadoras e originais de um século de ficção e paraficção”, Sontag, em seu entusiasmo, está sendo fiel à sua própria impressão, que, terminada a leitura, se torna também a nossa. É realmente difícil ficar impassível em relação aos fatos narrados, à fragilidade dos personagens, que, por sua vez, refletem nossas próprias limitações, por mais que estas pareçam às vezes enganadoramente contornáveis. Eis aí uma obra para todos os públicos, não apenas amantes de Dostoiévski ou de literatura russa.
 Dostoiévski: retrato a óleo de 1872

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