sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Baudelaire e a infância; sobre a vida própria de certas frases


“A infância é nossa pátria”, dizia Baudelaire. Durante muitos anos conhecia a frase, mas ignorava seu autor, e também não sabia dizer quando a teria ouvido pela primeira vez. De certo modo, acabei associando-a indevidamente com o anonimato. Com o tempo, também de forma equivocada, por desconhecer a origem, além do fato de dizer respeito a um tema universal, passei a considerá-la como um desses provérbios que, não sendo de ninguém especificamente, acabam pertencendo a todo mundo. Enganei-me. Resta saber se a frase diz respeito apenas ao autor ou se é válida para todos. Mas antes disso, uma consideração: já tinha reparado que algumas das frases que memorizamos parecem criar vida própria em nossas mentes. Sei que se trata de falta de uma memória mais exata, mas é como se essas sentenças resolvessem modificar-se por conta própria, alterando-se, adaptando-se a nossas ideias – mesmo quando as contrariam -, misturando-se a outras, criando nuances, até o momento em que resolvemos buscar sua origem e acabar não com as incorreções – seria errôneo considerar desse modo nossas próprias reflexões sobre os temas -, mas com os desvios. E é então que descobrimos que elas guardaram pouca relação com o que eram de início, e, em alguns casos mais raros, tornaram-se seu oposto. Mas voltando à frase de Baudelaire: se a infância é realmente nossa pátria (e creio que o autor de As flores do mal sabia o que dizia), não é difícil imaginar-nos como uma legião de expatriados sonhando com o momento de voltar a uma terra da qual, embora sempre tenha sido nossa, fomos desapossados. A ideia, se de início nos soa estranha, depois parece muito natural e até um pouco óbvia. E, pensando assim, não é preciso muito esforço para ver em cada rosto maduro a fisionomia de um exilado e para interpretar quase todos os livros que lemos como canções de um desterro não apenas forçado, mas mal e mal suportado. Poucos são os exílios voluntários, em que a própria pessoa, depois de ponderar, admite que o melhor seria partir - e mesmo nesses casos, o expatriado passou a viver tristemente com dois corações.
Também não deixa de ser verdade, sob esse ponto de vista, que a partir do momento em que nascemos não cessamos mais de partir. E viajar, nesse caso, seria exilar-se duas vezes. Eis talvez um novo modo de nos definir: somos seres que partem o tempo todo, e que, exageros à parte, já nascem indo-se embora. De pouco adianta que, em pensamento, em projetos ou em sonhos não cessemos de planejar um retorno impossível e de sonhar com a pátria a cada minuto mais distante. É como se a expulsão do paraíso deixasse de ser exceção para tornar-se regra: da perfeição do mundo em que nascemos nos percebemos arrebatados quando menos esperamos, e de pouco valeria interrogar se estamos preparados para isso: no mais das vezes, a vida não nos faz perguntas – ao menos não a esse respeito - e também não nos pede licença. Pergunto-me se existe algo de espontâneo em buscar recriar a pátria no mundo que aos poucos passamos a habitar e a chamar de nosso, tarefa a que nos dedicamos incessantemente em cada dia de nossas vidas; não raras vezes, a tendência é fazer da nossa casa uma versão à nossa maneira das salas de nossos pais ou avós, ancestralidade sempre presente mesmo quando se trata de transgredir e de romper barreiras. E as semelhanças vão um pouco além disso: já se disse anteriormente que ser velho é voltar a ser criança. Poderia-se perguntar se seria isso o paraíso reconquistado; o mais provável é que esse repovoamento não passe de uma tosca compilação de arquétipos imperfeitos, repleto de incapacidades e ao mesmo tempo prenhe de outras mais e que, à medida que o tempo passa, não deixam de se agravar, até o momento em que realmente não faz mais diferença alguma. O que nos salva então é o embarque clandestino na infância de outros seres. Além disso, o que nos resta, então, se do lugar de nossa infância estamos para sempre privados e se toda referência a esse tempo, como é talvez erroneamente considerado, não deixamos jamais de perder? A resposta talvez não seja tão difícil; de todas as lições da infância, talvez a maior seja justamente a que esquecemos com maior presteza: as técnicas do sonho. Talvez seja apenas através dele que podemos vislumbrar, mesmo que com uma verossimilhança mínima, o que está para sempre perdido e o que mesmo na nossa memória cada dia parece servir apenas para ofuscar, tornar obscuro. Dito isso, seria melhor recolhermo-nos na esperança de sonhar, desses sonhos que, raros, situam-nos no nosso verdadeiro lugar. Pouco importa se deles despertamos um tanto desorientados: é próprio da perfeição o deixar-nos por vezes transtornados. E, depois disso, com esse pouco de paz que colhemos quase ao acaso, devidamente armados para um ou dois minutos, o mais acertado talvez seja mesmo tornar a dormir.
Claude Monet: “Un coin d’appartement”, 1875

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