quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Da impossibilidade de contar uma história

Partindo de fatos que me foram relatados, quis por minha vez dar testemunho de meus antepassados. Consultei lápides e epitáfios, certidões e registros, e ouvi relatos que me levaram a uma quantidade considerável de nomes e datas. Porém, em dado momento, a falta de um nome quebrou a continuidade do que mais tarde poderia vir a ser uma genealogia. Por mais que se tratasse de uma simples denominação, era impossível fazer de conta que esse elo não existia, pois não se tratava de simples palavras. Porque, quando transpostas à realidade, não se pode fingir que aos vocábulos não correspondem respiração, plasma, sangue, terra. Em todo caso, mesmo marcando o nome, a partícula incógnita de um elo maior, através de um ponto de interrogação, pus-me a registrar as diversas possibilidades de sequência de uma ancestralidade. Em determinado momento, como era de se esperar, o encadeamento levou a outro continente, mais precisamente ao solo germânico. Uma travessia que, desde o início, sabia ser inevitável.
A partir desse momento, minhas raízes, objeto inicial de minha pesquisa, passaram a abranger outra geografia, uma outra pátria, e se tornaram também as razões que levaram meus antepassados a deixar sua terra natal e partir em viagem rumo a uma aventura sem precedentes na história de seu povo. Depois de deparar-me com um período de franca industrialização, houve tratados iluministas, um contrato social, a desigualdade entre os homens, antecedido de outro sobre a servidão voluntária, numa cadeia que apenas aumentava à medida que recuava nos anos. E minha investigação, de repente, se tornou a história não apenas dos fatos, mas do pensamento e dos homens que escreveram tais tratados. Não demorou para que eu percebesse que, se continuasse a busca, iria chegar ao ponto em que quase sempre se chega quando se deseja descobrir algo com origem no passado: que a multiplicação de dados, de um instante a outro, torna inviável a demarcação exata que delimita o ponto onde termina uma história e o momento em que, sem saber, já estamos em outra, não prevista, mas cuja existência não podemos mais ignorar.
Percebe-se a partir de então, nessa sucessão de descobertas, a profundeza do tempo, através do qual as personalidades, por serem tantas, quase não diferem do anonimato, e os fatos são tão numerosos que somos forçados, por uma questão de ordem prática, a restringir temas e territórios, se não no que concerne à trajetória, ao menos no que diz respeito à identidade. Sobretudo, percebemos também que o objetivo de nossa busca tornou-se o oposto do que tínhamos em mente quando se começou a procura por respostas, e que o nome desconhecido há muito deixou de ter importância, pois a razão maior de nossa investigação deixou de ser o particular e se tornou o universal. Sim, sempre ele, mesmo que já tenha se tornado lugar-comum. E o território que antes tínhamos a intenção de delimitar tornou-se de uma hora para outra mais vasto que nunca – mesmo que se tenha caminhado em um círculo, não se deixou de percorrer um trajeto. Todavia, por mais amplo e por maior que seja a pretensão, é nesse solo que nos reconhecemos em nosso elemento. Trata-se, como se vê, de uma história impossível de ser contada. E nem poderia ser diferente: a julgar por Emil Cioran, “a fonte de nossos atos reside em uma propensão inconsciente a nos considerar o centro, a razão e o resultado do tempo. Nossos reflexos e nosso orgulho transformam em planeta a parcela de carne e consciência que somos. Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. Mas viver é estar cego em relação às suas próprias dimensões...”.
E é com a consciência das dimensões ínfimas que cabem a cada um de nós, posicionando-nos num limiar que possibilita não mais que uma precária visão do conjunto – a única possível -, podemos examinar apenas alguns de seus aspectos, por meio de fragmentos escolhidos, e que chegam a nós como restos de uma aventura entremeada de grandes momentos, e, embora desse passado não tenhamos mais a grandeza heroica, em seu lugar recebemos uma herança mais preciosa que qualquer título. Assim, revestidos de nossa pequenez, estaremos testemunhando sobre o que temos em comum: o legado de nossos antepassados. E, através de seu usufruto, minoramos nossa insignificância, conscientes de que ao menos nisso todas as diferenças desaparecem, caminhos antes opostos passam a convergir e fazem sua obra maior: tornar-nos parceiros de uma mesma jornada.
Ilustração:
Caspar David Friedrich

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