sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma missa para a cidade de Arras

Em 1458, a cidade de Arras, norte da França, enfrentou uma peste que dizimou cerca de um terço de sua população. Os sobreviventes tiveram de lutar, por sua vez, contra um mal tão feroz quanto o anterior: a fome. Como não havia quem se dispusesse a vir de outras cidades para a manutenção de alimentos, não havia um grão de trigo, um grão de arroz, e, como em todo corpo em que se anima um espécime humano há também um germe insuspeitado de loucura, nenhum profeta foi capaz de prever os horrores que se sucederam naqueles dias. O canibalismo foi moeda corrente; registrou-se inclusive o caso de uma mãe que devorou seu filho recém-nascido. A multidão, enlouquecida por uma espécie de clamor do estômago, invadiu até o mais improvável dos locais para calar seu apetite: o cemitério. Passadas a peste e a fome, a vida foi voltando ao normal em Arras, dentro do possível. Porém, em cada habitante ficaria para sempre a marca dos horrores que vira, vivera ou cometera. Três anos depois, um acontecimento banal – a morte de um cavalo - deu início àquilo que entrou para a história como a Vauderie d’Arras. A partir desse fato meramente casual, passou-se a uma campanha de purificação e à busca por possíveis culpados. Procurou-se entre os rogadores de pragas, entre pessoas que conspiravam com o demônio. Não houve dia em que alguém não ia para a fogueira. E, nessa busca, os caçadores olhavam para todas as direções, menos para dentro de si mesmos. Ao final de tudo isso, chega uma autoridade e, com a maior naturalidade, afirma: “O que aconteceu não aconteceu, o que foi não foi!”.

Esses acontecimentos constituem o enredo de Uma missa para a cidade de Arras, do polonês Andrzej Szczypiorski (São Paulo: Estação Liberdade, 2001). Pelo que se pode deduzir, trata-se de uma obra com várias possibilidades de interpretação. À parte as mais comuns, prefiro ressaltar a direção seguida por essa busca por culpados: como se os seres humanos fossem perfeitos, todos os males são atribuídos a causas externas, como influências malignas, pragas etc. Não é preciso observar muito para constatar que, a cada dia, a história de Arras se repete em quase todos os cantos do mundo. Nada pode haver de mais cômodo que cometer um erro, ou mesmo uma atrocidade, e transferir a culpa a forças exteriores e ocultas. É como se o livre-arbítrio tivesse deixado de existir.
Em resumo, é através de acontecimentos como os retratados nessa obra que se vislumbra o abismo que se abre entre o pensamento do povo e a teoria das autoridades e pensadores. Um abismo que parece existir em grande parte apenas para que possamos constatar o tamanho de nossa impotência. E vem-me à mente Carlo Ginzburg e seus Andarilhos do bem e O queijo e os vermes. A respeito do episódio de Arras, é de se perguntar se, em certos casos, não seria a razão tão cega quanto o próprio fanatismo que procura combater.

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