segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia de Finados: o que se pode fazer pelos mortos?

Sempre me pareceu um tanto ambígua a existência, ou a necessidade de haver, no calendário, um dia para lembrar dos mortos. Da mesma maneira como a criação de uma lei proibindo matar só tem sentido para um povo potencialmente homicida, o Dia de Finados parece significar que saudade é coisa que se sente com hora marcada, ou, no outro extremo, existe apenas para que os vivos não se esqueçam de seus mortos. Em resumo, parece típico da única espécie que tem consciência da própria finitude e, por isso mesmo, não sabe como agir diante dos mortos e, por extensão, da morte em si.

Contudo, a instituição do 2 de novembro como Dia de Finados parece sugerir que a crença na imortalidade da alma sobrepujou todos os limites impostos pela ciência e pela Filosofia. Nessa data, diversos hábitos, tais como levar flores aos túmulos, limpá-los, acender uma vela ou mesmo simplesmente visitá-los parecem sugerir a certeza de que tais gestos são a última coisa que se pode fazer pelos falecidos. E sempre há os que nem questionam o significado dessas homenagens: apenas as respeitam por tradição, ou simplesmente obedecem-nas porque quase todos o fazem. De fato, essa é uma data em que todos os cemitérios parecem tornar-se verdadeiros jardins: o que mais se pode oferecer aos mortos além de flores, essência da natureza e, no caso, um símbolo da brevidade da vida?

No entanto, essa singela e simbólica homenagem cede lugar a outros questionamentos. Quais outros tributos poderíamos prestar àqueles que, antes de nós, foram conhecer a resposta ao grande enigma da morte? O que mais podemos fazer por eles além de seguir cegamente usos que o tempo e a tradição estabeleceram? As respostas podem ser muitas, mas dependem, basicamente, da consciência de cada um. Algumas delas poderiam vir, por exemplo, da negação, do ceticismo: nada mais podemos fazer pelos nossos entes queridos, além do que tradicionalmente já se faz. Outra resposta possível é a seguinte: o que podíamos fazer por eles já fizemos em vida e tais ações exigem verbos no passado. Ter sido um bom filho, um bom pai, um bom amigo, um bom aluno etc. Orar, segundo os católicos, é outra alternativa.

 Em seu romance O filósofo e o lobo, Mark Rowlands nos traz uma preciosa reflexão: “Mas existe outra forma, mais profunda e importante, de nos lembrarmos: uma forma de lembrança que ninguém jamais pensou em honrar com um nome. Trata-se da recordação de um passado que se imprimiu em nós, em nosso caráter e na vida que levamos – e que molda esse caráter. Não temos, normalmente, consciência dessas lembranças; muitas vezes nem são coisas que estão em nosso consciente. São elas, mais que qualquer outra coisa, que fazem de nós o que somos. Essas lembranças se manifestam nas decisões que tomamos, nos atos que praticamos e na vida que levamos. É em nossas vidas, e não, fundamentalmente, em nossas experiências conscientes, que encontramos as lembranças dos que se foram. Nossa consciência é instável, não é digna do trabalho de se lembrar. O modo mais importante de se lembrar de alguém é ser a pessoa em que este alguém nos transformou – pelo menos em parte – e viver a vida que ele nos ajudou a moldar (...). Levarmos uma vida que ele ajudou a moldar não é apenas um modo de nos lembrarmos dele; é como honramos sua memória”.

Ilustração:
Albrecht Dürer: Melancolia

2 comentários:

  1. Luciano!

    Essa citação do livro de Rowlands é fantástica. É uma das coisas mais interessantes que li em relação ao sentido de nossas vidas. Deixar (boas) marcas permanentes em outras pessoas é o modo de continuarmos vivendo por muitos anos além de nossa estada terrena.

    Um abraço
    Guilherme

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  2. Guilherme,
    Gosto muito dessa obra; o trecho citado é uma de suas (muitas) pérolas, e ele se torna particularmente comovente, a meu ver, tendo em vista que o autor o escreveu pensando em um animal.
    Agradeço-te pelo comentário!
    Abraço,
    Luciano

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