sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Lições de Proust para mudar sua vida


“Quando se ama um autor, nunca se sabe demais sobre ele”, diz Julian Barnes. Quando esse autor é Marcel Proust, não tenho como discordar. Obras como a biografia de George Painter, ensaios de autores do porte de Walter Benjamin, Samuel Beckett, Georges Bataille e, mais recentemente, Harold Bloom, se a um tempo constituem uma vasta galeria sobre uma outra galeria ainda mais extensa, por outro lado, como que para confirmar a frase acima, parecem sempre insuficientes. Isso porque poucas vezes, na história da literatura, houve paradoxo semelhante: se vida e obra a um só tempo parecem inextricavelmente ligados numa mesma e contínua linguagem, como num fluxo ininterrupto, por outro lado passaram a constituir para sempre dois universos distintos, repletos de inúmeras histórias paralelas: mesmo depois de anos de dedicação tanto à sua biografia quanto à sua obra, Proust jamais cansa de nos encantar, nos surpreender e, acima de tudo, de nos lançar desafios. É por seu intermédio que conhecemos personagens e pessoas a quem passamos a admirar por si mesmas, no que elas possuem de mais individual e por serem também modelos de grandeza, de dedicação e de fidelidade a um homem e a uma causa, a saber, a literatura. Nesse trajeto, travamos contato com Céleste Albaret, a criada que, por oito anos, conviveu diariamente com o escritor, sendo a única a ter acesso à sua intimidade e que, não obstante ter sido assediada por jornalistas e biógrafos quase por toda a sua existência, apenas perto do final de sua longa vida, quando contava já oitenta e dois anos, decidiu-se a dar seu testemunho de um dos autores que mudaram para sempre a história da literatura. Do quanto a escrita de Em busca do tempo perdido deve a essa humilde senhora ficamos cientes no longo relato intitulado Senhor Proust, e, ao final, é impossível deixar de ser grato a alguém que, pelo papel que o acaso lhe reservou, transcendeu em muito a condição de simples criada.
Porém, não é necessário ser um admirador de Proust, esse grande devoto do Tempo e da Memória, para surpreender-se com a inventividade de Como Proust pode mudar sua vida, do filósofo e escritor Alain de Botton (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011). Ao se deparar com tal obra, a primeira interrogação do leitor é quanto ao gênero: não se trata de biografia, nem de crítica literária, tampouco de filosofia. Na ficha catalográfica, a temática consta como sendo “Humor, sátira etc.”. O que é bem verdade: a obra não deixa de ser uma bem-humorada sátira aos eternos livros de autoajuda, inteiramente elaborado tendo as matérias-primas mais diversas: a obra, a correspondência, a vida e depoimentos de amigos do grande escritor francês, tudo tecido com a prosa fluente e lúcida de De Botton, ele mesmo parecendo ter se especializado em desafiar constantemente a rotulação em gêneros. O resultado é um inspirado e cativante guia para o dia a dia, tratando de temas como a leitura, o amor à vida, o sofrimento, a amizade, o amor, entre tantos outros. Uma das muitas virtudes do autor é saber aliar a sabedoria das citações com a riqueza de suas reflexões sobre os temas abordados, sabendo o momento exato tanto de conduzir, com sua prosa, a ordem dos capítulos, introduzi-los e discorrer sobre os assuntos, sem perder a noção quanto ao momento de calar-se para deixar as palavras na voz de Proust.
E é através da voz de Marcel que recebemos orientação a respeito do que, mais exatamente, buscamos tanto em obras como essa como na própria Busca: “Na verdade, todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor de seu próprio eu. O trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade”. Em contraponto a esse trecho, temos o capítulo final, “Como abandonar os livros”: “Transformar [a leitura] em disciplina é atribuir um papel grande demais ao que é apenas um incentivo. Ler está no limiar da vida e pode apresentá-la a nós, mas não a constitui”. E, de acordo com De Botton, “até mesmo os melhores livros merecem ser abandonados”.
Ultimamente, tornou-se hábito das editoras usar as contracapas dos livros como um estímulo para vendas, através de trechos de críticas muitas vezes em tom hiperbólico. No caso em questão, não é preciso desconfiar do teor desses comentários, nos quais também não há qualquer exagero. Como exemplo, podemos citar as palavras de John Updike: “Este livro contém mais interesse humano e inventividade do que a maioria das obras de ficção. Ao enfatizar a capacidade de curar e aconselhar que há em Proust, De Botton nos faz o favor de relê-lo, fornecendo uma destilação doce e lúcida daquele lago vasto e sagrado”.
Conforme André Gide, deve-se valorizar um artista não apenas pelo que é capaz de criar, mas também pelo que é capaz de sacrificar. Em parte, em virtude do recolhimento que a escrita requer, isso se aplica a um elevado número de bons escritores, o que nos leva a amar a literatura como um todo e de um modo particular, especial. Mas quem alguma vez tomou conhecimento da maneira de viver de Proust não deixará de pensar que, ao fazer essa afirmação, Gide aludia especificamente a esse autor; sendo assim, tornamo-nos duplamente gratos àquele que, talvez mais do que qualquer outro, soube fazer da renúncia a condição sine qua non para o surgimento de sua obra, que, como a descreve Walter Benjamin, constitui um “Nilo da linguagem, que transborda nas planícies da verdade, para fertilizá-las”.
Marcel Proust, retrato de Jacques-Émile Blanche, 1892
Céleste Albaret em 1914

5 comentários:

  1. Luciano!

    Estou há tempos pensando em comprar algum livro do Alain de Botton, mas ainda não li nada dele. Vários livros do autor foram lançados recentemente em formato de bolso, como "Religião para ateus" e "Ensaios de amor", além de "Como Proust pode mudar a sua vida", e não vou deixar passar a oportunidade de conhecer as ideias do filósofo.

    Um abraço
    Guilherme

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  2. Guilherme:
    Além dos mencionados, uma boa opção também é "As consolações da filosofia". É mais abrangente, e me despertou a vontade de retomar os originais. Fica a sugestão.
    Abraço!
    Luciano

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  3. Oi, tio Ninho! Tudo bem? Tu recebeste o meu e-mail? Nele falei da minha ideia de ir aí no final de semana. Vocês vão estar em casa? A princípio eu iria com o pai no médico na sexta e já iria direto pra Candelária com ele, mas o médico não vai poder atender na sexta, então a consulta ficou marcada pra amanhã (quarta-feira). Então eu tinha pensado em ir amanhã mesmo junto com o pai mas não vai dar pois a noite vou ter uma janta de despedida da minha chefe e ficaria chato se eu não fosse. Tô pensando em ir sexta de carro com o Ander, pois eu ainda tenho receios de dirigir na rodovia, mas como o Arthur vai dormir aí também teria lugar pra mais dois? Pergunto porque não quero atrapalhar também. Ah, feliz ano novos pra ti, pra vó e os gatos! :) Beijos, Dani.

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  4. Grande coincidencia... iniciei 2012 atacando "No Caminho de Guermantes", com a intenção de completar a leitura de toda a Recherche até o final de 2013... Como é prazeroso ir seguindo o fluxo literário de consciência do autor ao andar dessas páginas da mais sublime literatura universal... Ano passado li "A Montanha Mágica" do Mann e, ao final, fiquei desejando que ele tivesse ido dez vezes além daquelas 800 páginas, que me pareceram tão poucas para tamanho prazer de leitura... Proust, por sua vez, nos oferta suas milhares de páginas na Busca, para nosso agradecido deleite.

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  5. Marcos, como é bom ter notícias tuas... Gostei da expressão “mais sublime literatura universal”, ainda mais por se referir a dois autores de que tanto gosto. Há semanas atrás, tinha a intenção de enviar um texto para o blog Página Virada, para a série “O livro da minha vida”. Tanto Proust como Thomas Mann figuravam entre os possíveis autores a serem abordados. Mas não consegui me habituar à ideia de deixar tantos outros bons escritores de fora. E, como não queria desvirtuar a série, desisti de escrever... Mas o simples fato de pensar a respeito foi muito válido: mostrou o quanto devo à literatura como um todo.
    Espero ter o privilégio de ler comentários teus mais vezes, não subordinados a coincidências.
    Abraço!
    Luciano

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