sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

As personas e a questão do sentido

Há muito tempo o assunto já se tornou lugar-comum, mas nem por isso perdeu o interesse e a importância: de todas as questões debatidas na antropologia, uma das mais instigantes continua sendo a maneira de diferenciar o homem das demais espécies. Diversas são as formas de ilustrar a peculiaridade dos humanos: de animal que ri, espécie perfectível segundo Rousseau, e no entanto o único capaz de planejar a morte de outros de sua espécie, até a tradicional caracterização do animal racional, essas definições, através de suas diferenças e na inexistência de consenso, acabam talvez dizendo mais de quem as defende do que da espécie humana em si. Particularmente, entre as tantas possibilidades, minha preferência recai sobre algumas que me parecem mais lúcidas e que não deixam margem para erros, como ilusões ou esperanças. Entre tais modos de ver, me parece especialmente digno de crédito o que distingue o homem como o único animal consciente da própria existência, bem como de sua finitude, ou, em outras palavras, do caráter inevitável do fim. Igualmente valiosa é a denominação segundo a qual o ser humano se sobressai por se sentir impelido a procurar sentido em tudo que o cerca e em tudo que vive, coisa que em nada difere da atribuição propriamente dita de sentido à vida e ao seu papel de criatura no mundo. Já se disse inclusive que o “sentido é a nossa droga pesada”, sentença que lembra outras, em especial a identificação de religião como ópio do povo. Seria talvez equivocado dizer que tal droga seja nociva no sentido mais imediato. Contudo, argumenta-se, o hábito humano de procurar significado em tudo que vivencia acaba por afastá-lo da realidade última da vida e do mundo, que, para muitos pensadores, é o de não ter sentido algum. De certa maneira, somos como crianças grandes a usarem personas, isto é, máscaras que nos especializamos em fabricar e aperfeiçoar ao longo de nossa existência, e a que muitos chamam identidade.
Creio não ser o único a ver na infância uma gama quase infindável de possibilidades de vivência, isto no sentido de experiências imediatas, permitidas pela maior flexibilidade de trânsito entre os universos da ficção e da realidade. Um bom exemplo é viver pela manhã o papel do menino comportado que não falta à aula e que, na hora da chamada, responde ao ouvir a pronúncia de um nome particular, cuja função é também integrá-lo no seio de uma família semelhante a tantas outras e, ao mesmo tempo, única. O desempenho desse papel no turno da manhã em nada impede que à tarde o mesmo menino protagonize as mais fantásticas aventuras, já atendendo pelo nome dos heróis de suas histórias prediletas, não raro possuidores de peculiares superpoderes. Sendo a imaginação fértil, não há maiores problemas em não dispor de uma caverna nas cercanias para enfrentar os perigos representados por este espaço em especial, como o ogro monstruoso, o dragão cuspidor de fogo ou mesmo uma das tantas bruxas a povoarem os pesadelos típicos desse período da vida, com ou sem vassoura voadora. Nessas brincadeiras perdidas em remotas tardes de uma cidade que existe apenas em minha memória, preferia quase sempre brincar sozinho, por uma razão muito simples: a presença de meninos mais crescidos muitas vezes colocava em dúvida o que, para o bom andamento da brincadeira, não podia ser questionado: a veracidade, mesmo que momentânea, de nossos papéis. Brincando entre dois, sempre chegava mais cedo o momento que eu buscava ao máximo retardar: a hora de, terminada a brincadeira, retirar as máscaras e voltar a ser o que éramos pela manhã e o que voltaríamos a ser à noite, meninos obedientes atendendo aos apelos das mães que, no limiar entre o fim da tarde e o início de noite, nos chamavam para jantar. Cedo ou tarde, era necessário dar ouvidos às vozes desestabilizadoras e, por bem ou por mal, voltar à realidade.
Passadas décadas, é impossível deixar de comparar tais brincadeiras aos aspectos mais mecânicos da sociedade, bem como à artificialidade tantas vezes cega com que se busca seguir os mais diversos costumes ou tradições, esses tendo, entre tantos objetivos propalados, a função de verificar se todos os membros da comunidade estão cumprindo seus papéis de acordo com o esperado de cada um. Que todos precisamos de ficção, em pequenas ou grandes doses, dependendo do caso, é indiscutível. A grande diferença entre o modo de vivê-las reside no fato de alguns indivíduos saberem do caráter fictício mesmo da realidade mais próxima, enquanto outros entregam-se de corpo e alma ao que acreditam ser verdades absolutas. Para que essa empreitada seja efetiva, torna-se necessária a adesão de todos, portando suas personas, que, na vida em sociedade, ganham outro nome, a saber, individualidade. Percebe-se, a partir da desenvoltura com que cada um usa sua máscara, se a lição do faz-de-conta da infância foi bem assimilada. A diferença está nas formas de ficção: os sentidos do mundo dos adultos, muitas vezes mantidos à força da exclusão de quem questiona, são mais elaborados, mais resistentes aos ventos e às vozes contrárias. Mesmo os filósofos que dedicaram suas vidas à desconstrução do sentido foram, em muitos casos, exemplos clássicos de personagem com função bem estabelecida.
Existem diversos exemplos de momentos em que os papéis se confundem e o portador da máscara se vê de maneira imprevista no papel de desconstrutor, enquanto este assume como que acidentalmente os preceitos que tanto fez para desmentir. Talvez eu esteja equivocado, mas creio que parte da essência mais pura do ser humano, da mais legítima, talvez se encontre mesmo no limiar dessa inversão entre uma postura e outra, na dúvida que às vezes se instaura, instante que pode não durar mais que alguns poucos minutos, ou, às vezes, durar a vida inteira. Em todo caso, creio que já disse o bastante – ao menos é o que minha impressão diz; mais exatamente, a intuição de que, em alguns momentos, mais vale guardar a sinceridade para nosso próprio – e econômico – uso, lição cujo aprendizado me é especialmente difícil. Mas há uma imagem que me vem à mente e que gostaria de deixar para o leitor. Trata-se de um momento da vida de Friedrich Nietzsche: em Turim, no ano de 1889, o filósofo, que não via com bons olhos o sentimento da piedade, no sentido cristão da palavra – da piedade de um ser humano por outro -, deparou-se com um homem espancando brutalmente seu cavalo. Em lágrimas que lhe corriam abundantes por sobre a face, abraçou a cabeça do cavalo e beijou-lhe inúmeras vezes o focinho. Pouco tempo depois, Nietzsche foi levado a um sanatório, primeiro na Basileia, depois em Weimar, onde veio a falecer em agosto de 1900.
Curioso, acreditei, na minha ingenuidade, que através da leitura de algumas de suas obras iria encontrar a origem desse desequilíbrio. Acerca dessa interrogação, permaneço na dúvida até hoje. Mas, de certa forma, encontrei o que buscava: algo muito além de um pensamento apenas “humano, demasiado humano”. Seja como for, vale lembrar as palavras de Emil Cioran: “Um livro que, após haver demolido tudo, não se destrói a si mesmo, exasperou-nos em vão”. A pergunta que fica é o que o próprio Nietzsche teria pensado dessa frase; talvez dissesse que, quando alguém se exaspera, seja por qual motivo for, nunca é em vão, e sim por uma questão vital para a conservação da lucidez.
Nietzsche em 1882





2 comentários:

  1. Luciano,

    Seus textos são sempre muito bons, de uma qualidade rara. Parabéns pelo trabalho!
    Quando li seu post, me ocorreram dois pensamentos sobre um assunto que você aborda no início: nossa finitude.
    Irvin Yalom, em "De Frente Para o Sol", escreveu que a ideia de que um dia tudo vai acabar para nós pode nos salvar, pode nos encaminhar para uma vida mais interessante e virtuosa. O argumento de Yalom é simples, mas convincente: temos uma única chance aqui, e é bom fazermos bom proveito dela, fazendo coisas boas e significativas, para nós e para os outros.
    Nessa mesma linha escreve Comte-Sponville. Nossa vida é aqui e agora. Os idealizados paraíso e inferno não existem, a não ser entre nós, e por isso é importante ajustar tudo aqui, no momento presente. Viver sem esperar por milagres, fazendo o que nos é possível a cada dia, eis uma boa receita do filósofo francês, infelizmente praticada por poucos.

    OBS: seria uma grande honra receber um texto seu sobre "O livro de minha vida" em nosso blog.

    Um abraço
    Guilherme

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  2. Guilherme:
    Muito obrigado pelo comentário. Grande honra sinto eu por saber que minhas palavras encontram eco e valem alguma coisa. Tenho pensado muito na distância que separa as grandes questões que nos inquietam e grande maioria das pessoas, preocupadas quase que invariavelmente com futilidades, em um tempo em que diplomas se tornaram objeto de fácil aquisição, deixando-se os estudos aprofundados às moscas. Chego às vezes a pensar que ‘globalização’ é, antes de qualquer coisa, o efeito nocivo que a TV exerce sobre a sociedade, afastando-a da cultura como um todo e, em última instância, de si mesma e de sua essência. Quanto à filosofia de Comte-Sponville, ficaria muito feliz se ao menos seus livros fossem mais conhecidos.
    Será para mim um privilégio enorme participar da série “O livro de minha vida”. A dificuldade estará, creio, em cuidar para que o texto não se torne “Os livros...”.
    Abraço.
    Luciano

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