quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sobre o tempo, esse fugitivo, ou Da beleza, essa também esquiva

De todos os lugares-comuns, esse talvez seja o mais repetido, e creio que já era assim em tempos anteriores a Shakespeare. Não planejava recorrer a ele, mas não fico mais surpreso por me ver outra vez às voltas com temas não planejados, em momentos também inesperados. Creio mesmo que não somos nós que decidimos, a saber, a respeito dos assuntos sobre os quais discorremos. Por serem anteriores a nós, pertencentes a uma tradição milenar, acredito que sejam eles que nos apontam o dedo, determinando sua escolha. A nós não resta senão aquiescer. Ao menos assim tem sido desde que resolvi parar de resistir a esse imperativo que determina a hora e o assunto a registrar, e, se hoje mais uma vez me coloco a postos para grafar o que não sou eu que decido, é no mínimo com certo enfado contrafeito que obedeço, em protesto contra a falta de tema melhor: a fugacidade do tempo – bem sabemos que a brevidade não é do tempo, mas uma coisa de cada vez. Com efeito, tenho a impressão de que ainda há poucos dias, bem poucos, planejava escrever um texto breve em homenagem a três grandes compositores cujos aniversários de morte se avizinhavam: Chopin (17 de outubro), Schubert (19 de novembro) e Mozart (5 de dezembro). A primeira entre essas datas simplesmente passou sem que eu percebesse; entre a segunda e a última, há não muitos dias, via-me já envolvido com os fatos da vida e da morte dessas três personalidades. Três vidas cujo aspecto em comum, ou seja, sua breve duração, me levava a desejar fazer justiça a esses mestres que souberam usar a seu favor todo o pouco tempo que tiveram. E queria fazer-lhes justiça também em razão de outro ponto de contato: o desamparo em que viveram seus últimos dias. E o que era para ser antes de tudo breve tomou proporções que inviabilizaram sua publicação neste espaço. (Também isso não é a primeira vez que acontece: quando mais desejamos fazer justiça à memória de alguém, vivo ou morto, a pretensão ao esmero, essa presunção, acaba nos forçando a relegar o tributo ao esquecimento. Consola-me pensar que a certos personagens da história, se vivos estivessem, seria indiferente ver seus nomes sob a pátina atroz do esquecimento ou saber que ainda há quem se dedique às suas obras).
Isso posto, retorno a esse aspecto fugidio que, não obstante a maneira como organizamos nossa rotina, apodera-se de todo o tempo que nos é dado e o dilacera em fragmentos que, se observados, deixam entrever o que ninguém ignora: que ele, o tempo, é inexistente, e o que se mostra a nós é um fluir ininterrupto, dividido em dias e noites, em diferentes estações que, à força de observarmos as variações e as constantes sucessões  entre o claro e o escuro, os períodos frios e quentes, parecem apontar, no modo contínuo e impassível como se sucedem, que tudo permanece imutável, exceto nós mesmos. Não seria errado concluir que é sob o signo dessa ordem própria ao que pertence à esfera da natureza e da duração, em seu esvair-se, em seu hibernar e reflorescer, que se inscreve aquilo a que se convencionou chamar nossa existência; e o modo como percebemos essa passagem aponta inelutavelmente, de modo inequívoco, para a nossa própria brevidade. E se acaso nos detivermos um pouco mais no exame desse processo, não demoraremos a perceber que esse intervalo que constitui nossa vida, visto sob um ponto de vista mais amplo - o pouco que nos é permitido ver, ou intuir, além de nós mesmos -, não é mais que uma impressão nossa. Breve e fugidia, como sempre são as impressões. 
Dito isso, interrogo: que proveito trará ao mundo debruçar-nos sobre esse ou aquele assunto; que percebamos ou não que passageiros somos nós; que, por pensarmos, existimos, até prova em contrário; que esse pensamento, registrado ou não, em nada irá alterar a ordem das coisas; que, por mais longos que sejam nossos dias, nossa existência sempre terá sido ínfima? Não obstante isso tudo, bem sabemos que, mesmo que ao mundo tanto faz como tanto fez o termos existido ou não, sempre faremos tudo ao nosso alcance por nós mesmos e pelo bem disso a que se chama humanidade, por gigantesca que se mostre nossa impotência. E que, feitas as contas e apesar das circunstâncias que às vezes nos são desfavoráveis, a vida, breve ou não, nos é tudo – e, ao mesmo tempo, nada...
Um filósofo escreveu certa vez que o inferno são os outros (Sartre: Entre quatro paredes). Por mais que eu tenha me esforçado, nunca concordei com essa máxima, e o mais provável mesmo é que não a tenha compreendido. Tendo em mente o título de uma obra recente de Todorov – A beleza salvará o mundo -, ocorreu-me tirar o verbo do futuro e situá-lo no aqui e agora, ao menos no modo como nos é dado vivenciar essa realidade. Por mais que, segundo Hume, “está na mente de quem a contempla”, aquilo que compreendemos por beleza, ou a fruição desse algo em que se reconhece antes de tudo sua inutilidade, possui a meu ver o dom de responder a cada uma das interrogações acima e, se não justificar, ao menos consolar-nos por cada deficiência não do mundo em que vivemos, mas do mundo que criamos. A beleza salva o mundo, sim, e os outros, em vez de inferno, são o veículo dessa salvação, talvez a única que exista. Ao menos foi isso que encontrei nos versos de Adam Zagajewski, que transcrevo a seguir: “Só na beleza criada/ pelos outros existe consolo,/ na música dos outros e nos poemas dos outros./ Os outros não são o inferno,/ se os virmos bem cedo, com/ suas frontes puras, lavadas pelos sonhos./ É por isso que me pergunto que/ palavra usar, ‘ele’, ou ‘você’. Todo ‘ele’/ é uma traição de um certo ‘você’ mas/ em troca o poema de outra pessoa/ oferece a fidelidade de um diálogo sensato”.
Sei que fugi ao assunto inicialmente proposto, e, como justificativa, não posso sequer dizer que foi sem querer. Porém, caso não seguisse a via que se apresentava, não estaria sendo sincero. E, entre as muitas coisas que já não me espantam mais, estão também os caminhos tantas vezes inexplicados que com frequência tomam o rumo, ou o lugar, de nosso pensamento. Ocorreu-me ainda agora: será que fugi mesmo ao assunto ou o tema do princípio não passava de um pretexto para atingir um objetivo antes insuspeitado? Sinceramente, não sei. De qualquer forma, é tarde para pensar numa resposta.

Salvador Dali: Soft watch at moment of first explosion, 1954

2 comentários:

  1. Oi, tio Ninho. Adorei esse teu "espaço". Não vou chamá-lo simplesmente de blog pois a mim pareceu mais o teu quarto (esse papel de parede é ótimo). Li alguns textos e fiquei novamente impressionada com a tua capacidade literária. E fico feliz que tu tenhas se prontificado a dividi-la com alguém (e feito esse favor aos leitores de internet que já não aguentam mais ler tanta baboseira acrescida de agressões à língua portuguesa). Saudades. Dani.

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