sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano novo com bom senso

Nunca soube dizer ao certo os motivos, e mesmo a hipótese que transcrevo a seguir talvez não passe mesmo disso: uma hipótese. O fato é que, há anos atrás, sempre que o ano estava para terminar, eu era tomado por uma nostalgia de proporções nada modestas. Não se comparava à melancolia descrita nos termos de Freud, mas era algo que tornava difícil associar a virada do ano com o humor que normalmente se requer para festas, principalmente de réveillon: uma euforia que, da parte de muitos, sempre me pareceu forçada. (Como se as pessoas se sentissem obrigadas a estar, ou ao menos parecer, intensa e extremamente felizes, sob pena de não serem consideradas convivas à altura da ocasião). Algumas das razões desse estado talvez sirvam de exemplo do quanto certas superstições podem ser nocivas em nossa vida, quando destituídas de um mínimo de bom senso. Como se sabe, o dia 31 de dezembro sempre foi, e continua sendo, uma das datas em que, mais do que qualquer outra, as mentes incautas são bombardeadas pelas mais diversas receitas de como ter sorte no ano novo, desde os três pulinhos com o pé direito, passando pela roupa branca, dando a volta na folha de louro cuidadosamente colocada na carteira, prosseguindo com uma série de medidas que estão longe do fim quando se fala nas sete uvas e nas lentilhas. Quando digo mentes incautas, não deixo de incluir a mim mesmo, que, na infância e adolescência, se a um tempo pouco crédito dava a todos esses rituais, por outro lado, por eventuais erros em sua realização, temia ter um ano desastroso pela frente, unicamente em função de, por exemplo, ter errado de pé ao dar os três pulinhos. Por uma natural falta de vocação para o misticismo, sempre fazia algo de errado nessa série sem fim de mandingas, se é que se pode usar essa palavra. E, para uma mente não muito madura, no caso de se suceder algo ruim num dos trezentos e sessenta e cinco dias subsequentes – mesmo de proporções modestas, algo de ruim, em um número tão longo de dias, sempre acontece -, a culpa, na minha imaginação, era sempre toda minha. Daí a tristeza antecipada já nas noites de réveillon. Além disso, sempre tive a impressão de ver nessas comemorações, por parte das pessoas, uma espécie de desejo ingrato de se livrar o mais rápido possível do ano prestes a findar, como se se tratasse de um fardo, pesado como tudo que se carrega a contragosto, como se nada houvesse nele de boas lembranças e de ricas experiências acumuladas.
Muitos anos se passaram. Se com eles não vieram o bom senso ou a sabedoria, ao menos deixei de acreditar em muitas coisas, afastando-me principalmente dessa tosca compilação de ideias prontas que atende pelo nome de senso comum. O início dessa ruptura se deu por meio da verificação do que havia por trás de textos como “De como filosofar é aprender a morrer”, de Montaigne. Através dessas palavras, o filósofo tinha em mente não necessariamente a morte em si; trata-se de uma espécie de ritual de natureza oposta à daquela descrita acima e que prescreve que devemos, com toda a lucidez de que somos capazes, abrir mão das superstições e, com toda a humildade, selar a paz com a nossa condição de mortais. Não se trata de um gesto de rebeldia, mas antes de tudo uma reconciliação com nós mesmos e com o que temos de mais natural: a finitude. Para muitos, enxergar as coisas dessa maneira é origem de tristezas, o que, na verdade, não constitui senão outro erro: a felicidade está aqui e agora, e vivê-la ou encontrá-la depende mais de nós do que de qualquer outra coisa, de iniciativas, ousadia, método, oportunidades, planejamento e, é claro, de um pouco de sorte.

A partir desse ensaio do grande pensador francês, iniciei uma busca pelo conhecimento não apenas nos livros, mas na observação dos fatos mais corriqueiros da vida. A respeito do além, lembro de haver escrito, há anos atrás, não me lembro onde, que “o vazio que se sucede é o mesmo que antecede”. Dito de maneira mais elaborada, temos a célebre frase de Schopenhauer: “Podemos classificar a vida como um episódio que perturba inutilmente a bem-aventurada tranquilidade do nada”. Foram muitos anos de leituras, vivências, perguntas e respostas, essas sempre de caráter temporário. Se me afastei do pessimismo dessa última citação, não foi exatamente por receio do inevitável, mas por algo que acabei encontrando apenas depois de voltar ao início do caminho, ou seja, a Montaigne: “A vida já me concedeu a oportunidade de encontrar centenas de artesãos e lavradores mais sábios e mais felizes do que muitos reitores”. Eis uma frase que revela uma grande verdade: as grandes respostas, se acaso elas existem, estão é na vivência cotidiana mesmo das vidas tidas como as mais simples, como as nossas próprias, longe das ostentações, com ou sem riqueza, independentemente de crença no sobrenatural. Quando me refiro a essa experiência do dia a dia, tenho em mente uma entrega por inteiro a cada momento, a cada atividade, seja nosso trabalho, seja um momento de lazer ou o diálogo com um amigo. E, entre uma atividade e outra, não esquecer de contemplar, de vez em quando, o pôr do sol, a paisagem à nossa volta, e jamais deixar de apreciar, com especial fervor, as noites estreladas, seja inverno ou verão, e lembrar que, através dessas formas nebulosas, estaremos muitas vezes vislumbrando o que há milhares de anos já deixou de existir e cujo brilho, não obstante isso, continua a nos encantar. Digo isso mesmo ciente de que não existem receitas prontas. O que sei é que, vivendo dessa maneira, tornando cada momento um acontecimento especial, as dúvidas que mais nos instigam e nos tiram o sono acabam se tornando questões secundárias. Contudo, seja qual for a resposta a essas interrogações, uma coisa existe de imutável: o compromisso ético, ou moral, com nossos semelhantes.
Quanto a mim mesmo, posso dizer que minhas averiguações estão longe de terminar, e é esse o meu maior desejo para o ano que se aproxima: poder continuar trabalhando, procurando, pesquisando, vivendo, escrevendo. (E se algo der errado, não será por ter pulado seis em vez de sete ondas no mar ou por não ter lembrado de usar branco na passagem do ano). Para o pouco que conseguir encontrar, sei de antemão que será sempre insuficiente e não mais que provisório. Para a maior parte das questões, as mais desafiadoras, não terei jamais possibilidade de dizer palavra alguma, mesmo que eu não seja completamente agnóstico. E se um dia me perguntarem a respeito de causas primeiras, da existência ou não disso que conhecemos como alma, do futuro ou do além, terei apenas uma réplica. Trata-se, talvez, na história da filosofia, da mais famosa das respostas: “Eu nada sei”. O que me torna apenas sincero, e não sábio.
Vincent Van Gogh: Noite estrelada, 1889

2 comentários:

  1. Oi Luciano!

    Grande texto, parabéns pelas palavras.
    Em relação às superstições, também não as tenho. Dá azar ser supersticioso.

    Um abraço
    Guilherme

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  2. Guilherme,
    muito obrigado pelo comentário. Tuas palavras são sempre um grande incentivo.
    Abraço!
    Luciano

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