sábado, 10 de novembro de 2012

Um ano de "Contemplações"

Quando criei este espaço, tinha em mente apenas de forma um tanto vaga quais eram os meus objetivos primordiais. Confesso que, de início, faltava humildade nos propósitos: era meu desejo abarcar assuntos como livros e literatura, música, filosofia, arte em geral – ou seja, um leque que se revelou vasto demais e que, pela falta de uma maior precisão na abordagem, acabou por tornar obscura a meta inicial, que deveria ser a ênfase na leitura e nos escritores. Posso acrescentar ainda, sobre esse início, outro fato, também relativo a inícios, mas, no caso, aos textos como unidade: sempre que me ponho a escrever algo, é com um sentimento de comoção, em geral por algo lido ou ouvido ou mesmo por algum elemento ainda em germe na ideia e a ser definida na escrita. Essa comoção existe mesmo se o texto em questão acaba permanecendo inacabado, por uma ou outra razão. E creio poder dizer hoje que a intensidade, assim como a experimento, não esteve ausente nessa minha breve jornada, seja nas crônicas – realmente não sei como classificar meus escritos -, seja no todo. Uma comoção com mais perplexidade que eloquência, é verdade, e, por causa disso, também caracterizada pelo tom balbuciante, mais que prolixo em seus esgares, que em conteúdo revela certo parentesco com a mais completa mudez. Não creio estar sendo rígido demais comigo mesmo, mas sincero. Pois, passado pouco mais de um ano, vejo o quanto faz falta um foco mais preciso na escolha e na condução dos assuntos. Creio não ser exagero dizer que, tal como um viajante deslumbrado, deixei-me muitas vezes distrair e fascinar por inúmeros cantares, dos quais me pareceu por bem dar testemunho, e acabei me desviando daquilo que havia tomado como objeto inicial, muito bem resumido por Elias Canetti, que, escrevendo sobre literatura, se referiu a obras “das quais precisamos, de uma outra maneira, certamente, mas não menos que de nosso pão de cada dia, pois seríamos nutridos e sustentados por elas mesmo se nada mais nos restasse, mesmo se nem ao menos soubéssemos o quanto elas nos sustentam, ao mesmo tempo que, em vão, procuram em nossa época por algo que se possa igualar”.
Pois bem: quis dar a conhecer autores, compositores, obras, comentá-los, interpretá-los. Contudo, e talvez esse tenha sido o meu erro, deixei-me conduzir com ânsia talvez exagerada quando procurei tratar de vivê-las, essas obras, e de acomodá-las em minha rotina, ao lado de meus demais afazeres e obrigações. Por outro lado, pergunto-me se a voz daquele que está sob o encanto de determinada melodia, imerso em contemplação, não constituiria talvez um ponto de vista suspeito para descrever tal música, tal canto, tais livros. E, não sabendo viver sem entusiasmo, esse humilde deus interior que habita de forma diferente em cada um de nós, minha voz passou a ser, para mim mesmo, objeto de desconfiança, ou mesmo indigna de crédito, ao menos no que se referia a tais assuntos. Tornou-se necessária então uma pausa, uma tomada de consciência, para buscar lançar sobre as metas uma luz mais precisa, única maneira de distingui-la em meio às sombras. Vem-me à mente a ideia vaga dos peixes, que descobrem a existência da água em que estão mergulhados apenas no momento em que ela lhes falta; de modo semelhante, talvez não sejamos as melhores testemunhas do mundo que nos rodeia.  É verdadeiro o fato de haver comoção nesse deixar levar-se, nessa imersão no elemento poético, na linha melódica; mas, para o leitor, é indispensável que haja objetividade, sob pena de se deixar de saber, de um momento a outro, o que esperar. Por uma série de boas razões, estou muito distante de ver-me como poeta ou escritor; ao examinar o fruto de minha dedicação, vejo antes de tudo o limite, as falhas - sobretudo a presunção na escolha de alguns dos temas - e a grande distância da sonhada simplicidade. Talvez o tempo mude esse meu modo de ver. É nesse ponto, a respeito da necessidade de um norte, e de que esse ponto seja bem definido, que me valho outra vez de Canetti: “O poeta está mais próximo do mundo quando carrega em seu íntimo um caos; no entanto, e este foi o nosso ponto de partida, sente responsabilidade por esse caos – não o aprova, não se sente bem com ele, não se crê importante por ter em si espaço para tanta coisa contraditória e desconexa, mas odeia o caos, e não perde jamais a esperança de dominá-lo em prol dos outros e de si mesmo”. A respeito disso, acrescento: não é necessário ser poeta para ter em si esse estado de aparente desordem: basta ser leitor. Considero-me um sujeito muito feliz pelo privilégio de poder viver em meio a um “caos” de trabalho, livros, animais, música, amigos, letras, textos, e sou muito grato à vida por essa possibilidade. Mesmo que me faça feliz, porém, o caos, seja de que elementos for, é sempre aquela desordem que, de forma completamente diversa daquele universo caótico primordial de que temos uma vaga descrição, se faz de elementos já definidos, mas que, bem ou mal, precisam conter entre si uma certa harmonia, sob pena de esse elemento de instabilidade que às vezes lhe é próprio passar a reger nossos dias, já numa coloração mais obscura. As palavras de ordem parecem ser clareza de objetivos e ajuste de foco – não em mim mesmo, mas nas leituras e nos autores. Mesmo que o eco àquilo que se escreve não seja outro senão o mais absoluto silêncio; trata-se, mais do que nunca, da típica questão de satisfazer antes de tudo a si mesmo.
Há alguns meses, escrevi sobre a maneira como Michelangelo fazia suas esculturas, comparando em seguida seu método à formação de uma voz, através da retirada de tudo que não era forma, sucessivamente, até que não restasse senão a escultura. Ignoro de que maneira nasce a voz que ouvimos ao ler uma obra literária; ignoro também se meus textos, salvo as falhas, possuem qualquer aspecto característico, no sentido de timbre, pois minha maneira de escrever é antes de tudo instintiva. E é dessa intuição que me vem a ideia de que elaboramos nossa tessitura em primeiro lugar lendo, lendo muito, e relendo, até que uma grande multiplicidade de vozes tenha ressonância em nosso silêncio interior. Posso estar errado, mas creio que parte do processo se resuma em buscar conferir um estado de harmonia a essas vozes, embora não lhes retirando de todo os tons dissonantes; e creio que isso se faz sobretudo ouvindo-se a si mesmo. O arranjo das palavras que se elevam desse coro, de seus desajustes e de seu estado inicialmente confuso, comporão nossas linhas. A respeito disso, talvez seja pertinente recordar aqui algumas palavras de Danilo Kis: “Eles jogaram os livros no chão, pisoteando-os e rasgando-os diante de mim. (...) E eu disse que não os rasgassem, pois uma multidão de livros nunca é perigosa, mas um livro só é perigoso; e eu disse que não os rasgassem, pois a leitura de inúmeros livros leva à sabedoria e a leitura de um só, à ignorância armada de loucura e ódio”. Não creio poder dizer a meu respeito que a leitura me tenha trazido alguma sabedoria; não guardo mais esperanças quanto a isso. Pois, se o próprio Montaigne fala da ilusão que vez ou outra temos de que, com a idade, nos tornaremos mais maduros, vemos essa ideia ir por água abaixo quando a idade vem por si, com o tempo, e percebemos que ela, fora os anos a mais, nada nos traz em acréscimo. Segundo o filósofo francês, por mais que estar ciente disso seja um pequeno princípio de conhecimento, não é coisa que valha muito. Contudo, talvez seja suficiente para que não nos enganemos. Em todo caso, e lembrando a maneira como Comte-Sponville encara a esperança, inicio este segundo ano em estado de consciente desespero em relação a melhorar em algo, isso no sentido de que o crescimento, como se sabe, só vem através de muito esforço. E disso não tenho medo. Tampouco a quase inexistência de eco - salvo as exceções que fazem desta uma regra menos penosa - é motivo para maiores desânimos. Pois, por menor que seja nossa contribuição, caso ela seja honesta e sincera, teremos, ao final, um roteiro escrito de nossa jornada, mesmo que esta seja apenas mais uma entre muitos milhões – e mesmo que esse roteiro exista apenas para uso próprio, em função da precária capacidade de nossa sempre ineficiente memória.
Caspar David Friedrich: “Moonrise over the Sea”

2 comentários:

  1. Luciano!

    Parabéns pelo blog, repleto de grandes textos! E tomara que esse espaço continue e atraia cada vez mais leitores.

    Um abraço
    Guilherme

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    1. Obrigado, Guilherme, e agradeço também pelos comentários. Também espero poder continuar lendo tuas sugestões no "Página Virada".
      Abraço,
      Luciano

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