sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Maneiras de escrever: lições de Rilke e Montaigne

Entre tantas páginas que a literatura nos legou a respeito de como escrever, algumas das mais preciosas nos foram deixadas por Rainer Maria Rilke, não exatamente na sua obra literária, mas em suas cartas, que acabaram por constituir um gênero à parte entre tantos outros. O ano era 1903, e o destinatário era o jovem Franz Xaver Kappus. “Procure entrar em si mesmo”, escreve o poeta; “Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte ‘sou’, então construa sua vida de acordo com essa necessidade”. Mais de cem anos se passaram, e é possível que muitos outros séculos se passem; se essas palavras persistiram, é porque elas tiveram entre os seus leitores uma infinidade de jovens aspirantes a poeta, ou mesmo leitores comuns, para quem elas foram de uma utilidade que não foi possível encontrar em outras fontes. Se era de maneira consciente que Rilke escrevia suas cartas para a posteridade, é questão que já perdeu a importância. A verdade é que, de uma forma ou de outra, suas cartas entraram para esse reduzido número de epístolas cujo destinatário maior é a humanidade de todas as épocas, independente do fato de quererem ser escritores ou não.
Muito mais do que outras questões de maior alcance, tais como “como viver, ou ainda “o que podemos esperar da humanidade”, as interrogações sobre como e por que escrever receberam e continuam a receber por parte de escritores, independente de sua nacionalidade, um tratamento especial. É de se acreditar que muitos se detiveram nesta questão pelo fato de elas pertencerem ao reduzido campo em que as respostas ainda fazem sentido. Sobre tudo o mais, ou sobre os aspectos em que a vida se revela mais misteriosa e cheia de interrogações, a melhor alternativa é simplesmente calar-se. E quando há tentativas nesse sentido, dificilmente se trata de palavras possíveis de serem resumidas. Clarice Lispector, também por sua vez procurada por um jovem escritor que lhe havia enviado alguns contos, resumiu seu ensinamento através de um conselho que vale para todos nós, literatos ou não: antes de começar, antes mesmo da primeira palavra, é necessário perder o medo. Não tenho meios para saber que resultado essas palavras tiveram no destino do jovem a quem foram destinadas. Quanto a mim, porém, posso dizer que ao menos creio não ter mais medo nem de viver, nem de escrever. Como diz o título de uma famosa canção, “o medo de amar é o medo de ser livre”, e creio que esse temor sirva também para outras áreas. E quanto à liberdade, mantenho certa reserva, essa justificada por outra canção, segundo a qual “liberdade não é mais que outra palavra para nada a perder”.
Escrita e liberdade foram palavras-chave para o criador do ensaio como gênero, Michel de Montaigne. Interrogação e dúvida talvez fossem dois elos a mais. Segundo Virginia Woolf, o filósofo francês é o exemplo único de escritor que soube, com as palavras, escrever a si mesmo como em um retrato. De acordo com a escritora, é apenas a ele que pertence a capacidade de proceder “este relato de si mesmo, seguindo suas fantasias, dando o mapa completo, o peso, a cor, e o diâmetro da alma em sua desordem, sua poliformia, sua imperfeição”. E, como assinala Virginia, os séculos passam e mais e mais leitores são levados a reconhecer-se nas páginas dos Ensaios, sempre intrigados com o fato de terem sido tão bem descritos tantos séculos antes de nascer. Mas, de forma mais detida, vejamos as palavras do próprio Montaigne, na sua carta ao leitor, a quem apresenta e dedica seu livro: “(...) possam nele encontrar alguns traços do meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. (...) Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu”. Recordo-me de minha reação quando li pela primeira vez alguns de seus ensaios, e, pelo que pude mais tarde comprovar, não foi uma impressão exclusivamente minha, essa de perguntar-me como podia esse homem do século XVI conhecer tão bem a alma dos leitores de todos os tempos. Encontrei uma explicação posterior, em algumas palavras de Ralph Waldo Emerson sobre a arte de escrever. Trata-se de uma escrita que não se produz meramente com tinta sobre papel, mas “escrever como se deposita o orvalho sobre a folha e as estalactites sobre as paredes da gruta, como a carne decorre do sangue e como a fibra lenhosa da árvore se forma a partir da seiva”. Creio que estas palavras colocam fim àquele clichê segundo o qual escrevemos por nos sabermos mortais; salvo os grandes predestinados, escrevemos todos para o olvido.
Sim: escrevemos para o esquecimento, e mesmo assim o fazemos, teimosamente, pois, sendo real a assertiva de Rilke sobre a impossibilidade de viver sem escrever, não temos alternativa. A esperança talvez esteja nas entrelinhas. É nesse ponto que a escrita nos desafia, nos amedronta, nos coloca diante de nós mesmos, tal como acontecia de modo natural com Montaigne. É essencial perder o medo, como aconselhou Clarice; se assim não fosse, as entrelinhas acabariam por dizer, malgrado nós mesmos, tudo o que gostaríamos de calar. É válido recordar aqui o subtítulo de uma obra de Alberto Manguel, A cidade das palavras: “As histórias que contamos para saber quem somos”; um dos tantos modos de ver a literatura é como um inestimável espelho do que somos e também um guia para saber onde estamos e para onde nos dirigimos. Ao menos é com essa curiosidade que sou levado a escrever, independente do fato de ser lido ou não. Ao menos para mim, sem palavras, não haveria cidade, nem casa, tampouco natureza, mas um grande caos. Nossa ordem está mesmo nos livros, nas linhas que se amontoam, independente do crepitar de fogos sagrados e da música do cosmos. Pelo que me é dado observar, este conteúdo está presente também sobretudo no que calamos; sobre essas linhas subliminares, que também encontramos apenas em grandes obras, é interessante o que diz A.D. Sertillanges: “A palavra pesa quando se sente por baixo dela o silêncio, quando ela oculta e deixa adivinhar, por detrás das palavras, um tesouro que ela libera progressivamente como convém, sem precipitação e sem agitação gratuita. O silêncio é o conteúdo secreto das palavras que contam. O que faz o valor de uma alma é a riqueza do que ela não diz”.
Se a mim por minha vez alguém indagasse sobre as razões e desrazões de escrever, não sei o que responderia. Em todo caso, não teria por que não dizer meu próprio pensamento e postura ante meus escritos, postura que me foi legada por Clarice. Interrogada sobre em que sentido ou grau suas obras poderiam alterar a realidade imediata, ela respondeu não ter ilusão alguma: “Não altera em nada”. E, mesmo assim, seríamos imensamente menos ricos se não tivéssemos, entre tantas outras obras, A hora da estrela. Isso, contudo, quanto a Clarice. No meu caso, basta a primeira parte da resposta: não guardo ilusões. Contudo, longe estou de querer desistir; quanto a isso, a lição de Rilke vale por toda a vida, independente do que se faça. E há ainda uma coisa de que não podemos nos esquecer: que, destituída por completo de sua porção de mistério, escrita alguma tem valor.

3 comentários:

  1. Luciano!

    Creio que existem várias razões que fazem das pessoas escritores. Honestamente, eu gostaria de ser um deles.
    Mas há várias razões para sermos leitores, e pensei em duas passagens de Thoreau ao ler o seu texto. Em uma delas, o americano dizia que um bom livro deve fazer com que nós passemos a praticar o que lemos nele, transformando as letras em ações. Em outro trecho, Thoreau exalta o poder da leitura: "muitos homens iniciaram uma nova era em suas vidas a partir da leitura de um livro." É difícil ser mais preciso quando tratamos sobre o quanto é importante ler, e sobre uma boa razão para escrever livros.

    Grande abraço
    Guilherme

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Guilherme,
      Gostei das passagens de Thoreau. Penso que, se é fato que vemos o mundo com olhos lúcidos, devemos isso em grande medida ao que lemos – nunca podemos esquecer nosso débito com os livros.
      Quanto a ser escritor: honestamente, se mais pessoas que assim se intitulam fizessem o belo trabalho que você realiza com seu blog, atualizando-o sempre que pode e escrevendo sempre sobre bons autores, além da preocupação demonstrada quanto aos rumos da educação e à nossa continuidade como seres ditos racionais, estaríamos longe de ter tantos problemas no que tange ao assunto. Não costumo jogar confete à toa, mas creio ser verdade que, se somos limitados quanto a difundir em grande escala o hábito da leitura, é fato que, se não levamos a mais pessoas o hábito da leitura, podemos levar as que já leem a fazê-lo de uma forma mais consciente e crítica. Falo por mim: li muitos dos livros que comentaste no Página Virada, alguns antes, mas a maior parte depois de tomar conhecimento deles no blog.
      Abraço.
      Luciano

      Excluir
    2. Luciano,

      Obrigado pelas palavras de incentivo. Lembrando da velha história do beija-flor que tenta apagar um incêndio florestal levando água em seu bico, creio que nosso trabalho é algo assim: uma gota no oceano. Mas penso que não podemos parar.

      Grande abraço
      Guilherme

      Excluir