segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Das dificuldades de prestar tributo


Dizem que o tempo cura todas as feridas. Faz muito tempo que essa frase me foi dita, em circunstâncias nada comuns. Hoje, passados vários anos, sinto-me duplamente enganado: por quem me disse tais palavras e ao mesmo tempo por mim mesmo, por ter acreditado. De qualquer maneira, perder alguém com quem dividimos a vida desde o momento que nascemos nunca poderá ser definido como algo de que nos desincumbimos com facilidade, pois qualquer dor que sentiremos nesse processo de luto será sempre um desafio às leis da natureza e dos afetos. Quando se trata de ver a morte de um irmão de apenas 30 anos de idade, no auge de sua vitalidade, que, além de ser nosso irmão, era esposo dedicado e pai de um menino de apenas um ano e oito meses, palavra alguma que nos digam tomará o lugar da total ausência de sentido e da precariedade de qualquer esboço de resposta a que tentamos, por teimosia, nos apegar. Embora já tivesse perdido meu pai, creio que, por mais que se tente, nunca estaremos preparados para esses momentos. Nessas ocasiões, costumo dizer, só o silêncio é capaz de simbolizar nosso estado e de fazer ressoar nossa total perplexidade. E esta não é outra senão a mesma de todos os dias, acrescida apenas de três camadas ou mais de absurdo. Existe uma frase segundo a qual o que não tem remédio remediado está, e, por mais que as palavras, nesses tempos difíceis, digam pouco, de uma maneira ou de outra é a elas que nos agarramos quando tudo à nossa volta parece desabar, como se o simples fato de nomear objetos e sentimentos e descrever experiências com a linguagem que todos usam no dia a dia fizesse as coisas, aos poucos, retomarem uma certa aparência, sempre precária, é verdade, de normalidade. E assim, pouco a pouco, o mundo voltava aos eixos, enquanto a realidade prática nos levava a enfrentar decisões e detalhes de que, mesmo pequenos, preferiríamos ser poupados, como escolha de tons de mármore, datas e epitáfios.
Em tais escolhas, geralmente somos confrontados com várias emoções conflitantes, que, dependendo de nossas crenças, ou da falta delas, nos levam a enfrentar por uma última vez não apenas a figura de quem acabamos de nos despedir, mas nossas próprias convicções quanto à morte e, mais do que tudo, quanto ao significado mais imediato de nossa vida. Lembro de ter escrito, certa vez, que a dor da perda é a mais intensa das musas inspiradoras, e se nos vemos impelidos tantas vezes a desafiar a própria lógica do universo e da natureza, empenhamo-nos nessas últimas homenagens não por uma questão de demonstração de poder aquisitivo ou de ostentação, como pretendem alguns, mas como a última coisa ao nosso alcance que podemos fazer, como uma última palavra dirigida àquele que partiu. Por mais que saibamos: é tarde. Foi pensando desse modo que buscamos, meus familiares e eu, imprimir à sepultura de meu irmão algo de sua personalidade: um livro aberto, em mármore, com seu nome e as datas de nascimento e morte; ao lado, uma grande placa em bronze, com algumas palavras em homenagem, além de uma fotografia. Desse modo, aquele que partira tão cedo, emoldurado em metal nobre, lançava-nos seu franco sorriso, literalmente do outro lado, e, à sua direita, um trecho especialmente escolhido e traduzido de Os frutos da terra, de André Gide: “Eu precisava de um pulmão, disse-me a árvore. Então, minha seiva fez-se folha a fim de que com ela eu respirasse. Quando terminei de respirar, o meu fruto caiu, mas não morri por causa disso. O meu fruto contém todo o meu pensamento sobre a vida”.  Feitas essas escolhas, a vida seguiu seu rumo e, com o passar do tempo, o cotidiano pareceu retomar seus ares de normalidade, seja lá o que isso for.
É verdade que todos os anos, em certa data, havia horas difíceis: dia 18 de novembro era aniversário de meu irmão. Quanto ao dia 2 desse mesmo mês, nunca teve grandes significados para mim: saudade não é coisa que se sente com hora marcada. Em vista disso, ia ao cemitério em datas sem relação com as tradições. Na verdade, mesmo que as escolhas referidas acima tenham sido feitas com todo o amor que nos restava, e que ainda resta, vejo os cemitérios mais como um repositório de dados como datas, nomes, e, se fosse fazer uma homenagem, dificilmente me ocorreria ir a uma sepultura, por mais que haja quem diga que tudo que restou do ente querido se encontra lá. Não penso desse modo. A criação da casa de cultura e a rua com seu nome, bem como o lançamento em livro das crônicas de Marco Antônio, se revelaram homenagens muito mais profundas, pois provaram a mim, como relutante revisor, que um ser humano pode ensinar muito a outro mesmo não estando mais ao nosso lado. Mesmo que seja um aprendizado às vezes doloroso.
Foi por preferir ver o que restou de Marco nos passos e conquistas de meu sobrinho Arthur que passei a maior parte desses anos sem ir ao cemitério. Mesmo assim, foi com o máximo espanto que, em 2009, recebi a notícia de que a placa maciça e os caracteres em bronze haviam sido roubados do túmulo. De alguns anos para cá, com o agravamento do uso do crack, visitas desacompanhadas são pouco recomendáveis até mesmo à luz do dia. (Meses depois, os caracteres seriam recolocados, mas em metal mais comum). Em todo caso, independente de causa, a saudade em si, agravada pela notícia do roubo, fez pesar-me a consciência por tantos anos sem uma homenagem mais convencional à memória de quem se foi. E assim, com pesar, fui a uma floricultura e escolhi crisântemos de um branco luminoso e vibrante – dizem que as outras cores não são apropriadas, embora não entenda muito disso.
Foi com a inocência dos distraídos que me dirigi, então, ao Cemitério Municipal, esquecido de um fato óbvio: que ano a ano são muitas as mortes e todos os espaços vão sendo aos poucos preenchidos. Contudo, lembrava-me bem do pequeno monumento erigido em memória do irmão que partiu, mas não contava com um fato inesperado: à medida que avançava por entre os túmulos, percebi haver muitos outros com caracteres roubados, muitos outros túmulos imitados com idêntica representação de livro aberto, de cruz e retrato – todos na mesma situação, faltando nomes e os dados mais básicos. Tomado da mais completa perplexidade, deparei-me com várias possibilidades. Em um daqueles túmulos, jazia um irmão, mas, especificamente, em qual deles? Tratava-se da morte anônima, literalmente. Diante da incerteza, constrangido, deixei as flores sobre um daqueles monumentos multiplicados, provavelmente o errado, olhei em volta e deixei o lugar. À perplexidade das perdas somam-se as premências de quem sobrevive independente de conhecer ou respeitar a memória dos que já não podem se defender.  Convenci-me de que, sob certos aspectos, é verdade que a morte tem o poder de igualar a todos. Qualquer palavra talvez fosse suspeita; em todo caso, sou levado a pensar, embora sem certeza alguma, que as grandes perdas, assim como outros processos gradativos, se deem também aos poucos, aqui e ali, enquanto buscamos reconstruir, mesmo depois de tantos anos, o sentido do que restou.

Caspar David Friedrich: “Cemitério na neve”, 1817

2 comentários:

  1. Luciano,

    Grande texto, apesar de bastante triste.
    Quando leio sobre perdas, duas coisas passam imediatamente pela minha cabeça: 1- isso vai acontecer comigo, não sei quando, então é interessante pensar em como posso fazer de minha vida uma experiência melhor, não só para mim, mas para quem quer que seja; e 2- lembrando de Mark Rowlands, em "O Filósofo e o Lobo", creio que uma boa vida pode ser reconhecida naquilo que deixamos para os outros, não materialmente, mas como os influenciamos positivamente, nas memórias que criamos em amigos e familiares.

    Um abraço e parabéns pela qualidade dos textos de seu blog,
    Guilherme

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    1. Guilherme:
      Existe uma frase segundo a qual "existem pessoas que vivem como se fossem eternas e morrem como se nunca tivessem existido". Desconheço a autoria, mas creio em sua verdade. Depois que encaramos a mortalidade, passamos a ter um fascínio maior pela vida, além de perder o medo de algo que não podemos negar: a finitude.
      Um abraço e obrigado pela apreciação.
      Luciano

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