sexta-feira, 20 de julho de 2012

Algumas palavras sobre o legado de nossos antepassados

“Muitas pessoas olham para o mundo e se perguntam: por quê? Eu penso em coisas que nunca existiram e me pergunto: por que não?”
George Bernard Shaw
A expressão pode até parecer estranha ou pouco adequada ao contexto, mas talvez a melhor maneira de definir o continente europeu à época do início da imigração alemã seja sob a forma de um grande museu de paradoxos. Entre os diversos aspectos a serem considerados, estava o fato de muitos países se encontrarem numa situação de total devastação após as derrotas napoleônicas. A esse respeito, o filósofo Will Durant se interroga por que a primeira metade do século 19 “levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas” na literatura. Na música, esse aspecto pouco afeito à vida e à sua continuidade encontrou vozes altamente expressivas em compositores como Schubert, Schumann, Chopin e o próprio Beethoven em seu período tardio, pós-Nona Sinfonia: a famosa Ode à Alegria, que encerra essa grande obra estreada em 1824, não poderia ter vindo à luz numa atmosfera menos condizente. Na filosofia, o espírito não era outro: Arthur Schopenhauer publicava, em 1818, sua “grande antologia do infortúnio”, intitulada O mundo como vontade e representação, que, poucas décadas após seus surgimento, se converteria em uma das mais importantes vigas de sustentação do pensamento ocidental. Segundo Durant, “por toda a parte, no Continente, a vida tinha que recomeçar do zero, para recuperar dolorosa e lentamente o civilizador excedente econômico que havia sido consumido na guerra”. Também entrou para a história uma frase de Goethe que ilustra e define o estado de ruína desse período: “Agradeço a Deus por não ser jovem em um mundo tão inteiramente liquidado”.  
Se por um lado a situação era consequência da guerra, por outro a miséria era trazida por outra revolução, essa de caráter industrial. De início verificados na Inglaterra, aos poucos os frutos inesperados do progresso e dos avanços tecnológicos se estendiam para o resto da Europa, substituindo a mão de obra humana por máquinas, levando dessa forma milhares de trabalhadores, como luveiros, ferreiros, carpinteiros e tecelões ao desemprego e, em consequência, à miséria. A esses fatores, pode-se acrescentar, a respeito do empobrecimento no campo, as sucessivas divisões hereditárias. Outro motivo causador de descontentamento era o serviço militar obrigatório, que, em tempos de guerra, estendia-se até que a paz fosse restaurada.
Havia também os interesses do Império brasileiro na vinda de imigrantes; não se pode esquecer que a esposa de Dom Pedro I, Leopoldina, era filha do Francisco I, da Áustria. Consciente da situação do país de origem da imperatriz e atendendo de início ao interesse de formar um exército, para depois voltar sua atenção aos camponeses, o governo imperial tratou de criar as condições necessárias para a vinda dos primeiros imigrantes. A primeira leva, como se sabe, aportou nas margens do Rio dos Sinos em 25 de julho de 1824. Inicialmente, eram concedidos a cada um 77 ha de terra, além de ferramentas, gado, sementes, entre outros auxílios. Contudo, sabe-se que tais promessas não foram cumpridas na totalidade dos casos. Bastante difundida é a seguinte frase, repetida a muitos dos alemães que aqui chegavam: “Aqui está a terra. De agora em diante, vire-se”.
Conhecidos por um grande sentimento de apego às raízes e à cultura de seu idioma, o chamado germanismo, a imigração em princípio pode ter parecido uma ideia absurda a muitos alemães da época. Contudo, diante de um quadro amplamente desfavorável, parece natural que recomeçar a vida em outro país, na chamada “Terra da liberdade”, tenha sido visto como o único ponto luminoso no horizonte. A frase do dramaturgo Bernard Shaw, na epígrafe, dependendo do contexto em que for observada, sugere que muitas vezes os grandes momentos da história nascem exatamente de seu aspecto de total absurdo, em meio a momentos da mais absoluta calamidade, para a qual não existe solução senão no impensável. Do contrário, como entender que tantos homens e mulheres de todas as idades tenham concordado em despedir-se para sempre de sua terra de origem, de seu passado, de seus familiares, para embarcar em uma aventura que não era o fim das dificuldades, mas o começo de uma outra grande saga?
Hoje, passados quase dois séculos, não falta quem afirme que tal visão heroica do ato desses desbravadores não é fiel, e sim exagerada, romântica, pois de fato não havia alternativa para o caso de desejar-se prosseguir e continuar a tarefa designada a todos, que é viver. Todavia, um fato é consensual entre os descendentes de imigrantes: todos que buscam no passado as origens da família e sua história encontrarão basicamente fome e miséria. Pouco numerosas são, entre os imigrantes, as partículas sinônimas de nobreza, tal como von ou, de uso ainda mais raro, van; caso houvesse, seu uso se perdeu, entre muitos outros costumes. Mas a verdade inegável é que quem buscar se inteirar do seu passado e de suas raízes encontrará, salvo raras exceções, uma outra espécie de nobreza, aquela que não vem de berço, mas que costuma nascer aos poucos e em silêncio, não apenas em momentos extremos, mas também na simples vivência do cotidiano; uma forma de nobreza que permanece quase sempre inadvertida para quem realmente a possui e que guarda grande parentesco com a simplicidade. Ela surge através da maneira como se encara a vida, na postura ante seus constantes desafios, fazendo e escrevendo, no exercício de responder diariamente aos ditames do destino, através do trabalho, da abnegação e da ousadia, a sua e a nossa história.



Tal modo de ver pode levar-nos a questionar o valor e a real efetividade de nossas atitudes em relação ao passado, mais exatamente no que fazemos para preservá-lo e honrá-lo. Trata-se de uma questão que leva a pensar mais uma vez em Goethe. De acordo com uma frase sua, “O legado de teus antepassados só se torna teu através dos teus próprios méritos”. Eis algo em que pensar, não apenas nesta data de 25 de julho, mas em todos os outros dias.
Pedro Weingärtner: Tempora Mutantur, 1898
Angelica Kauffman: retrato de Johann Wolfgang von Goethe, 1775

Um comentário:

  1. Lendo tal texto, veio-me à mente certa passagem de Goethe – fui à estante procurar o meu exemplar – da novela baseada em um momento de sua própria vida, Werther, presente na carta que data de 21 de agosto, a qual refere-se, no contexto da obra, ao desespero do personagem em relação ao seu profundo interesse por Charlotte. Embora, isoladamente, tal citação possa ser entendida e encarada como mais uma manifestação de Goethe que demonstra toda uma dolorosa constatação em relação ao que “a história de nossos antepassados” nos lega internamente, por mais que, muitas vezes, a maioria de nós não possa sequer perceber, quanto mais sentir:

    “Tudo, tudo desapareceu! Nem um vestígio do mundo passa! Nem uma pulsação do meu sentir desse tempo. Sou como um fantasma que voltasse ao seu magnífico castelo, construído quando príncipe poderoso e por ele legado na hora extrema a um filho querido, e das riquezas amontoadas nesse soberbo edifício apenas viesse encontrar cinzas, escombros, ruínas...” Essa metáfora de ruínas pode muito bem ser interpretada como ao que te referes: “a verdade inegável é que quem buscar se inteirar do seu passado e de suas raízes...”, pois o tal castelo do passado, construído com afinco e com todas as problemáticas e dificuldades, deram origem ao que somos, embora, possamos vislumbrar apenas os seus escombros em meio à poeira temporal.

    E é na epígrafe, de autoria do Bernard Shaw, presente no texto, que verificamos o quanto a necessidade da invenção, da criação se dá em momentos de crise, em momentos críticos como esses todos citados, nos quais foi mister partir de onde eram oriundos para começar do zero, passando por todos os tipos de privação e, dessa forma, “o impensável” passa a ser vivenciado, já que as alternativas de sobrevivência não condizem exatamente com aquilo que todos eles esperavam, partindo de uma situação tenebrosa, e ao chegar vivenciando momentos de calamidade, de “fome e miséria”, como bem foi citado no texto.

    O esforço desmedido daqueles que optaram pela vida, mesmo que esta tenha sido complicada e cheia de tramas desvantajosas para os que aqui chegavam, propiciou a existência de muitos no porvir, e de que forma “agradecemos”? Nos regozijamos no agora com o que foi a quimera dos prístinos seres dos quais somos oriundos.

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